JESSÉ SOUZA - A Tolice da Inteligência Brasileira: ou como o país se deixa manipular pela elite




CAPÍTULO 2

Um teatro de espelhos do patrimonialismo brasileiro

Confiança/racionalidade × corrupção/afeto


RACISMO VELADO do “culturalismo científico” opõe e separa como configurações qualitativa e substancialmente diferentes as sociedades consideradas “avançadas” e as ditas “atrasadas”, ou, como manda o politicamente correto, as “sociedades em desenvolvimento”. Essa oposição é construída simultaneamente na dimensão cognitiva e moral, ou seja, as sociedades avançadas – e por extensão seus membros – são percebidos como mais “racionais”, isto é, o dado cognitivo, assim como “moralmente superiores”, o dado moral. Como essas categorias só são compreensíveis na relação especular e dual com suas oposições binárias, as sociedades atrasadas, as latino-americanas no nosso caso, têm então que ser construídas como negatividade tanto na esfera cognitiva quanto na esfera moral. E é precisamente o que acontece na realidade. Assim, para fazer a oposição especular perfeita, as sociedades latino-americanas são percebidas por todas as versões hegemônicas desse culturalismo como “afetivas e passionais” e, consequentemente, corruptas, dado que supostamente “personalistas”, como se houvesse sociedades “impessoais”.

Tendo em vista que o afeto e a emoção são percebidos na hierarquia moral ocidental como o “outro negativo” da razão de Platão,7 e a doutrina platônica da virtude foi transformada no caminho cristão da salvação, essa doutrina tornou-se a base cotidiana e inconsciente de toda a ética ocidental. Quando Santo Agostinho, no começo de nossa era, interpreta a virtude cristã como controle dos afetos pelo “espírito”, cristaliza a forma como primeiro a Igreja e depois todos nós “avaliaremos” o mundo. Em grande parte, como resultante da própria ideia da dominação dos afetos, temos também a ideia de uma suposta orientação “particularista” (a famosa preferência “pessoal” em vez de o domínio da “impessoalidade”) do comportamento das sociedades latino-americanas, que as tornariam essencialmente corruptas. A corrupção ou a desconfiança generalizada também seria, claro, um apanágio dos habitantes dessas mesmas sociedades.

Como essa oposição é criada e legitimada “cientificamente” e o que isso tem a ver com a obra weberiana? Max Weber oferece os conceitos centrais por meio dos quais foram pensados e tornados vida prática essa divisão racista entre “gente” superior, das sociedades avançadas, e “subgente” inferior, das sociedades latino-americanas e periféricas. Mais do que isso, Weber é uma espécie de “chave mestra” que nos permite abrir o registro profundo desse “racismo científico” dominante, ainda que até hoje inarticulado, mas, por isso mesmo, “naturalizado” e aceito por todos no âmbito científico e na esfera prática e cotidiana de todas as sociedades modernas.8

Na impossibilidade de tratar de todos os elementos que explicam essa conexão, escolherei os mais representativos e importantes de modo a tornar convincente e plausível meu argumento. Tomemos então três obras que reproduzem com fidelidade o que acabamos de dizer: nos Estados Unidos, os trabalhos de Talcott Parsons, o mais importante sociólogo norte-americano do século XX; e, no Brasil, as obras de Gilberto Freyre e Sérgio Buarque, os fundadores da moderna sociologia brasileira.

Weber foi utilizado por Talcott Parsons, a partir dos anos 1930, para criar uma imagem idealizada da sociedade norte-americana, especialmente na construção de seus “pattern variables” (padrões variáveis), que se tornou o eixo fundamental de toda a “teoria da modernização”, influente ainda hoje, mesmo com outras roupagens. E foi empregado por teóricos latinoamericanos, também a partir dos anos 1930, para a construção de uma interpretação “orientalizada” da América Latina.9 O conceito central dessa versão ainda dominante foi o de “patrimonialismo”, retirado de modo ahistórico e sem rigor analítico da obra weberiana, como veremos em maior detalhe a seguir.

Ambas as construções são como espelhos que refletem uma à outra. À construção do predomínio do “primitivo”, “pessoal” e “corrupto”, como marcas da sociedade patrimonialista, temos a afirmação da “modernidade”, “impessoalidade” e “confiança” típicas das sociedades centrais. Esse quadro vigora até hoje nas hegemônicas “ciências da ordem” praticamente sem críticas. Esse ponto é fundamental, posto que permite demonstrar que, a partir de um fundamento comum – uma leitura unilateral da tese weberiana da especificidade do Ocidente – pôde se constituir uma leitura hegemônica das ciências sociais contemporâneas, cujo núcleo é um “equivalente funcional” do racismo científico sem disfarces antes dominantes. O que outrora era legitimado como diferença racial e biológica passa a ser obtido pela noção de “estoque cultural” – em um caso, o das sociedades do Atlântico Norte, cognitiva e moralmente superior, e, no exemplo das sociedades latinoamericanas, cognitiva e moralmente inferior.

É importante sempre notar que não são apenas as sociedades que são “inferiores” nos dois aspectos decisivos da moralidade dominante, o cognitivo e o moral. Também os “habitantes” dessas sociedades passam a ser vistos como potencialmente corruptos e indignos de confiança, basta ver a representação dos mexicanos na imensa maioria dos “faroestes” norteamericanos.

Mas isso ainda não é o mais importante. Atualmente parte-se do princípio de que a “teoria da modernização” morreu no final da década de 1960,10 quando alguns de seus arautos mais importantes passaram a criticar de forma decidida alguns pressupostos centrais dessa teoria.11 Isso simplesmente não é verdade. Os pressupostos do “racismo cultural” da teoria da modernização continuam a operar até hoje em literalmente todas as grandes teorias sociais que pretendem lidar com a sociedade mundial. Algumas indicações acerca disso serão feitas na segunda parte deste livro.

E como o que é discutido nos jornais, na televisão, nas universidades, nos tribunais e nos parlamentos é sempre alguma forma de repetição mais simplificada da produção de pensadores influentes, conhecer esses argumentos “intelectuais” é entender de que modo o mundo funciona. No mundo cotidiano essas ideias parecem não ter autoria e ser tão “naturais” como ter-se duas pernas e dois olhos. Por conta disso, resgatar sua gênese perdida é o mesmo que recuperar o sentido mais profundo de nossas ações e avaliações no mundo.

De que maneira se inicia o “racismo culturalista” dominante e como ele se desdobra em uma versão central e outra periférica? O culturalismo, que passa a ser a leitura dominante nas ciências sociais norte-americanas com a crítica ao “racismo científico”, em boa parte devido ao prestígio da obra de Franz Boas12 na primeira metade do século XX, não começa com Parsons. Mas Parsons constrói a síntese mais coerente do ponto de vista teórico e mais influente do ponto de vista pragmático/político.

A questão básica da sociologia para Parsons é perceber como a ação social pode ser integrada por meio de valores compartilhados socialmente. Nesse sentido, perceber como os valores sociais orientam a ação prática é o objetivo maior da ciência social. A construção das “pattern variables”, levada a cabo por Parsons e Edward Shills em Toward a general theory of action,13 espelhava precisamente pares dicotômicos de orientações valorativas que permitiriam determinar o sentido da ação social em qualquer contexto. Os polos dessas variáveis refletiam precisamente os opostos que estamos discutindo aqui, como as oposições entre racional, impessoal e universal, de um lado, e afetivo, personalista e particularista, de outro.

A importância deste esquema para as ciências sociais norte-americanas, e depois para toda a ciência social do pós-guerra, foi retumbante. Não existia praticamente nenhuma área das ciências sociais que não fosse dominada pela procura da demonstração empírica da validade teórica universal dessas categorias.14 No começo, o aspecto mais importante era simplesmente legitimar científica e politicamente – com farto financiamento das agências estatais norte-americanas nos Estados Unidos e fora dele – a superioridade norte-americana em relação a todas as outras sociedades.15 Isso incluía tanto sociedades europeias quanto muito especialmente as do terceiro mundo, de modo a transformar a sociedade norte-americana do pós-guerra em modelo absoluto, concreto e realizado de todas as promessas da modernidade ocidental. A oposição moderno/tradicional utilizada por Weber para explicar a gênese da singularidade do Ocidente e o “aparecimento do capitalismo apenas no Ocidente”, no contexto de seus estudos sobre as grandes religiões mundiais, foi utilizada para o estudo dos “entraves para a expansão do capitalismo em escala global”.

Toda a ambiguidade de Max Weber em relação ao capitalismo – produtor de seres humanos amesquinhados precisamente nas dimensões cognitiva e moral (os especialistas sem espírito e homens do prazer sem coração) – e à própria sociedade norte-americana – seu texto nunca comentado pelos culturalistas sobre a hipocrisia como marca indelével da “confiança” interpessoal utilitária do protestantismo norte-americano16 – foi cuidadosa e intencionalmente posta de lado. Houve um esforço deliberado e consciente para a retirada de todas as ambiguidades da obra weberiana para o uso pragmático e apologético de suas categorias para a percepção da sociedade concreta norte-americana do pós-guerra como exemplo acabado de perfeição.17 Foi a partir desse esforço “científico”, politicamente financiado, que toda a hierarquia mundial passou a ter o exemplo concreto norte-americano como modelo máximo, com todas as outras sociedades sendo percebidas como versões mais ou menos imperfeitas desse modelo.

Os efeitos “políticos” desse modelo tornado hegemônico de pensar o mundo são fáceis de serem identificados. Primeiro, o efeito conservador e de acomodação “para dentro”, dado que, se os Estados Unidos já são o perfeito exemplo de modernidade realizada, então não existe nenhuma mudança desejável para a própria sociedade norte-americana. Segundo, visto que a modernidade é percebida como um conjunto unitário e homogêneo de orientações valorativas, todas apenas positivas, então a legitimação científica da dominação fática dos Estados Unidos se torna completa. Novamente, porque a repetição na ciência pode ter a mesma importância que tem na música: esse esquema interpretativo geral não é apenas norte-americano, muito menos limitado ao período do pós-guerra, como é sempre muito repetido. Depois da recuperação europeia a partir dos anos 1960 e 1970, esse esquema continuou a ser utilizado apesar das críticas às suas categorias principais. A única diferença é que se usa agora a palavra “Ocidente” como algo restrito às sociedades do “Atlântico Norte”, ou seja, Europa ocidental e Estados Unidos/Canadá. É por isso que – fato que sempre surpreende alguns latino-americanos –, nesses lugares, se fala do Brasil e da América Latina não só como não integrantes do Ocidente, mas também como perfeito exemplo do “orientalizado” oposto ao Ocidente.

Mas que a ciência hegemônica e não crítica nas sociedades afluentes legitime seu próprio poder fático não é muito de se admirar. Afinal, a ciência crítica, aquela que explicita e critica seus pressupostos, é minoritária em todo lugar. O que causa mais espanto, no entanto, é o fato de que precisamente o mesmo esquema interpretativo foi utilizado também pelas sociedades periféricas – como a brasileira – para explicar suas próprias sociedades. Este é o fato mais intrigante, e nosso desafio a seguir.

Apesar de Parsons e da teoria da modernização terem exercido – e, sempre vale a pena repetir, ainda exercerem – impacto avassalador nas ciências sociais brasileiras e latino-americanas a partir dos anos 1960, a gênese do “culturalismo brasileiro” é operada de modo independente de sua obra. A interpretação culturalista brasileira foi criada e imediatamente se tornou hegemônica na década de 1930, com a publicação de Casa-grande & senzala, de Gilberto Frey re. Essa autointerpretação realiza, pelo próprio punho dos pensadores periféricos, a mais perfeita relação especular com a definição de modernidade e tradição, esta última como apanágio da prémodernidade, que Parsons e seus colaboradores realizariam mais tarde. Na versão original de Gilberto Frey re inexiste a influência de Max Weber, mas a versão mais poderosa, e até hoje francamente predominante, se deve a uma reformulação – baseada em conceitos weberianos – levada a cabo por Sérgio Buarque a partir da interpretação freyriana.

Desde a publicação do livro A modernização seletiva,18 defendi a tese de que a interpretação da realidade social brasileira que se tornou dominante no século XX – certamente generalizável a diversas sociedades latinoamericanas –,19 envolve, na verdade, a articulação das noções de personalismo/patrimonialismo de modo a justificar uma suposta singularidade cultural e social pré-moderna entre nós. Essa “pré-modernidade” é o núcleo, nunca explicitado, de noções hoje correntes como “jeitinho brasileiro”; da visão do Brasil e das sociedades latino-americanas como funcionando a partir de uma hierarquia comandada pelo “capital social de relações pessoais”. Seria esse capital de relações com pessoas influentes que constituiria tanto o “personalismo”, ou seja, relações de favor/proteção enquanto fundamento da hierarquia social; quanto o “patrimonialismo”, isto é, uma vida institucional que tem como fundamento uma “elite estatal”, também pré-moderna, que parasitaria toda a sociedade.

Atualmente, essa tese da “singularidade cultural” brasileira, pensada de modo absoluto como um povo com características únicas e incomparáveis – para o bem e para o mal –, é como uma “segunda pele” para todos os brasileiros, intelectuais ou não. Essa singularidade é constituída pela junção e combinação das noções descritas acima de personalismo e patrimonialismo.

A figura de Gilberto Freyre é central nesse tema, pois Frey refundou, efetivamente, a forma dominante como o Brasil contemporâneo percebe a si mesmo, não apenas neste “romance da identidade nacional” chamado Casa-grande & senzala,20 mas em toda a sua obra. Ainda que os temas recorrentes usados na imagem da “identidade” do brasileiro, como “o encontro de raças”, sejam tão velhos quanto a Independência do Brasil21 – José Bonifácio já percebia a necessidade prática de se criar uma fonte de solidariedade social, além do poder local e pessoal dos donos de terra e gente, ou seja, a partir de um “mito nacional” para a jovem nação que se constituía – foi apenas quando Frey re inverteu a fórmula “racista científica”, que condenava a nação de mestiços a um futuro sombrio, que a “identidade nacional” passou a ser um elemento de extraordinário sucesso, tomando corações e mentes de brasileiros de norte a sul. Foi Freyre, afinal, o primeiro a articular a tese do “mestiço is beautiful”, permitindo interpretar a miscigenação visível e palpável da sociedade brasileira como uma “virtude cultural” – quando durante todo o século XIX e até os anos 1930 era considerado por todos como nosso principal defeito – e sinal, “empiricamente verificável nas ruas”, da suposta tolerância e abertura cultural brasileira. Foi Freyre, portanto, quem construiu o “vínculo afetivo” do brasileiro com uma ideia de Brasil, em alguma medida, pelo menos, “positiva”, com a qual a nação e seus indivíduos podiam se identificar e se autolegitimar.

Essa ideia caiu “como uma luva” nos interesses de arregimentação política do governo industrializante e modernizante de Getúlio Vargas e passou, como política de Estado, a ser ensinada nas escolas e cantada em prosa e verso como fundamento da “unidade morena” da nação brasileira. Afinal, a miscigenação racial funcionava como “redutor de todas as diferenças”, especialmente das de classe social e prestígio, além de permitir uma associação “espontânea” com ideias como “calor humano”, hospitalidade, sensualidade, cordialidade e todas as qualidades ambiguamente “pré-modernas” que hoje são patrimônio afetivo de todo brasileiro. Essa ideia é hoje, portanto, “evidência não passível de discussão”, tornada uma “segunda natureza” e vinculada à identidade individual de todo brasileiro que se imagina incorporar virtualidades do comportamento humano que só existiriam por estas bandas tropicais.

O mais interessante no nosso contexto é examinar o modo como o mito da brasilidade e sua celebração das virtudes ambíguas da pré-modernidade se transformam em “ciência” conservadora com toda a “aparência de ciência crítica”. Isso nem Parsons e seus colaboradores lograram com tanto sucesso. Esse ponto é fundamental para compreendermos de que maneira as “ideias” dos intelectuais passam a afetar decisivamente a vida prática de uma sociedade, legitimando e reproduzindo um cotidiano, como no caso brasileiro, de desigualdade e humilhação. Afinal, no mundo moderno, é a “ciência”, substituindo a função das religiões éticas nas sociedades pré-modernas, que detém a “autoridade legítima” para falar no espaço público sobre qualquer assunto relevante. A esfera política não é exceção. A forma dominante de se perceber a política no Brasil foi produto de intelectuais cujas “ideias” foram associadas, de modo intencional ou não, a “interesses” poderosos. Depois de institucionalizadas, essas ideias ganham vida própria e “esquecem” sua gênese, passando a influenciar a pauta dos jornais e a imaginação dos políticos e homens de ação. Se quisermos compreender de que modo percepções arbitrárias do mundo se tornam norma de conduta “legítima”, inclusive para aqueles que são oprimidos por ela, precisamos “relembrar” sua gênese.

Se dissemos acima que Freyre é o pai-fundador da concepção dominante de como o brasileiro se percebe no senso comum, então Sérgio Buarque é o pai-fundador das ciências sociais brasileiras do século XX e, consequentemente – e muito mais importante –, o autor da forma dominante como a “sociedade brasileira” contemporânea se compreende até hoje com a chancela e a autoridade “científica”. Sérgio Buarque fez sua obra-prima, Raízes do Brasil, em 1936, ou seja, três anos após a publicação de Casa-grande & senzala, em 1933. Como todos os brasileiros desse período, Buarque foi influenciado decisivamente por Frey re nas ideias pioneiras que desenvolveu nesse livro, que me parece, sem dúvida, o mais influente do pensamento social brasileiro no século XX, na medida em que construiu a “ideia-força” (ideia articulada a interesses poderosos que permite mascará-los e justificá-los) mais importante da vida política do Brasil moderno.

Qual é a ideia-força que domina a vida política brasileira contemporânea? Minha tese é a de que essa ideia-força é uma espécie muito peculiar de percepção da relação entre mercado, Estado e sociedade, onde o Estado é visto, a priori, como incompetente e inconfiável e o mercado como local da racionalidade e da virtude. O grande sistematizador dessa ideia foi precisamente Sérgio Buarque de Holanda. Buarque toma de Gilberto Freyre a ideia de que o Brasil produziu uma “civilização singular” e “inverte” o diagnóstico positivo de Freyre, defendendo que essa “civilização” e seu “tipo humano”, o “homem cordial”, são, na verdade, ao contrário de nossa maior virtude, nosso maior problema social e político.

Na realidade, Buarque assume todos os pressupostos metateóricos e teóricos da tese de uma sociedade pré-moderna e dominada pela emotividade e pessoalidade como formulada por Freyre. O que Buarque acrescenta de (aparentemente) novo é a transformação da ênfase no personalismo – a emotividade como um dado psicossocial que guia as relações interpessoais de favor/proteção – típica da interpretação freyriana em ênfase no aspecto institucional e político, ou seja, supostamente patrimonial. O patrimonialismo é uma espécie de amálgama institucional do personalismo, de resto compartilhando com efeito todos os seus duvidosos pressupostos inseridos para fins pragmáticos na construção do “mito” freyriano. É isso que confere o aparente “charminho crítico” de sua tese. Afinal, o “homem cordial” é emotivo e particularista e tende a dividir o mundo entre “amigos”, que merecem todos os privilégios, e “inimigos”, que merecem a letra dura da Lei. Quem exerce a crítica patrimonialista no Brasil o faz com “ar de denúncia”, fazendo pose de “intelectual crítico”.22 O interessante no argumento de Buarque é que, apesar de o “homem cordial” estar presente em todas as dimensões da vida, sua atenção se concentra apenas na ação do “homem cordial” no Estado.23

É o Estado dominado pelo homem cordial e particularista que se tornará o conceito mais importante da vida intelectual e política brasileira até hoje: o “patrimonialismo” do Estado e da “elite” corrupta. Nos inúmeros seguidores de Buarque, parte expressiva da intelectualidade brasileira, essa oposição se torna ainda mais simplista. 24 O mercado capitalista deixa de ser uma instituição ambivalente – fruto de longo aprendizado histórico, que permite tanto separar o interesse econômico de considerações éticas (e com isso produzir riquezas em quantidades inauditas) como também produzir e legitimar desigualdades injustas de todo tipo indefinidamente – para ser apenas o reino da “virtude” por excelência. O Estado, também ambivalente, podendo refletir interesses de todo tipo, sendo ele próprio um campo de lutas intestinas, é “congelado” ao lado de uma suposta “elite privilegiada”, a qual, como ninguém a define, se refere a todos e a ninguém e pode ser usada em qualquer contexto a bel-prazer do falante (quase sempre, ele próprio, de alguma “elite”).

Mas o “toque de Midas” dessa ideologia, que explicará sua adesão popular, é a associação, efetuada “por baixo do pano” e sem alarde, entre mercado e sociedade como um todo, nos “convidando” a nos sentir tão virtuosos, puros e imaculados como o mercado. A partir daí, como a “recompensa narcísica” é o aspecto decisivo, a associação é tornada “afetiva” e, em grande medida, infensa à crítica racional. É precisamente este aspecto que permite a “adesão popular” de setores que não têm nada a ganhar com a “mercantilização” da sociedade como um todo. Desse modo, os partidos doutrinariamente liberais no Brasil – ainda que todos os partidos sem exceção estejam submetidos à sua hegemonia –, que representam interesses de uma elite muito pequena, podem “universalizar” seus interesses particulares ao demonizar a intervenção estatal como sempre ineficiente e corrupta.

É a partir desse raciocínio que o tema da corrupção política passa a ser um dos assuntos mais centrais e recorrentes do debate acadêmico e político brasileiro. O que está em jogo, no entanto, não é a melhoria do combate à corrupção por meio do melhor aparelhamento dos órgãos de controle. O que existe é uma dramatização da oposição mercado (virtuoso) e Estado (corrupto) construída como uma suposta evidência da singularidade histórica e cultural brasileira. Como já observado, é apenas o “Estado” que passa a ser percebido como o fundamento material e simbólico do patrimonialismo brasileiro. Ora, se todos somos “cordiais”, por que apenas quando estamos no Estado desenvolvemos as consequências patológicas dessa nossa “herança maldita”? Por que o mercado, por exemplo, não é percebido do mesmo modo? E por que, inclusive, o mercado é, ao contrário, visto como a principal vítima da ação parasitária estatal?

No Brasil, a influência do pensamento weberiano também é dominada pela mesma leitura liberal apologética que deu origem à teoria da modernização de inspiração parsoniana. É de Weber que se retira a autoridade científica e a “palavra”, no sentido de “nome” e não de “conceito científico”, para a legitimação científica da noção central da sociologia e da ciência política brasileira: a noção de “patrimonialismo”, para indicar uma suposta ação parasitária do Estado e de sua “elite” sobre a sociedade. Entre nós, no entanto, esse conceito perde qualquer contextualização histórica, que é fundamental no seu uso por Max Weber, e passa a designar uma espécie de “mal de origem” da atuação do Estado enquanto tal em qualquer período histórico. Na crítica à obra de Sérgio Buarque, mais adiante reconstruiremos detalhadamente o tema do patrimonialismo em Weber para criticar seu uso na sociologia brasileira.

Entre nós o uso dessa noção é sempre “político”, e não “científico”, ou seja, a noção de patrimonialismo “simplifica” e “distorce” a realidade social de diversas maneiras e sempre em um único sentido: aquele que simplifica e “idealiza” o mercado e subjetiviza e “demoniza” o Estado. Para se amesquinhar ainda mais o horizonte reflexivo e retirar qualquer atenção aos consensos sociais e inarticulados que constituem a referência última de qualquer ação política, basta personalizar o debate político, de modo consequente, ao nível das telenovelas. À personalização, subjetivação e simplificação do Estado na noção de “estamento estatal” todo-poderoso é acrescentada uma teatralização da política como ópera-bufa: deixamos de ter “interesses e ideias em conflito” e passamos a ter um mundo político dividido entre “honestos” e “corruptos”. O tema do patrimonialismo não só oferece a semântica através da qual toda a sociedade compreende a si mesma, mas também coloniza a forma peculiar como o próprio debate político se articula no Brasil e na América Latina. O tema do patrimonialismo, precisamente por sua aparência de “crítica radical”, dramatiza um conflito aparente e falso, entre mercado idealizado e Estado “corrupto”, sob o preço de deixar à sombra todas as contradições sociais de uma sociedade – e nela incluindo tanto seu mercado quanto seu Estado –, que naturaliza desigualdades sociais abissais e um cotidiano de carência e exclusão.25 Essa é a efetiva função social da tese do patrimonialismo no Brasil.

O racismo culturalista hoje

As páginas anteriores não são mera reconstrução de “história das ciências”, referindo-se a épocas passadas às quais, atualmente, lançaríamos um olhar cheio de compreensão histórica a quem não tinha nem poderia ter, dado certo contexto cognitivo que se impunha a todos, o distanciamento de que hoje desfrutamos. O contrário disso é verdade. A história que acabamos de resumir é, talvez, a maior história de sucesso das ciências sociais modernas. A teoria da modernização, o filho mais dileto da tradição weberiana apologética, não só não morreu na década de 1960 como continua hoje, certamente com outras máscaras e roupagens, a dominar a discussão mundial.

Assim como se diz da ética protestante, que se tornou a primeira religião a ser vista como “profecia realizada” no mundo prático, 26 – e, ao se tornar realidade prática, “morre” enquanto religião, já que a religião ocidental pressupõe a tensão e não o amálgama com a realidade mundana – o mesmo se pode dizer da teoria da modernização. A teoria da modernização, como a realização mais consumada da leitura apologética da interpretação weberiana do Ocidente, só “morre” para se transformar no pano de fundo não tematizado das grandes teorias sociais – e a partir delas da vida prática de todos nós –, com pouquíssimas exceções,27 que tematizam a sociedade mundial ou a articulação entre sociedades avançadas e sociedades periféricas.

A leitura apologética weberiana tornou-se uma “segunda natureza” para a sociologia dominante em todo o planeta. Por “sociologia culturalista” não penso, portanto, em um ramo entre outros dentre diversas sociologias, mas o fundo comum das sociologias, centrais e periféricas, que logram ocupar posição de hegemonia. Ela é, inclusive, o pano de fundo não tematizado de sociologias que reivindicam terem ultrapassado o culturalismo tradicional e adentrado em uma nova dimensão da reflexão sociológica, como a reflexão de Niklas Luhmann, por exemplo. Luhmann usa outro “vocabulário”, mas a ideia de uma “corrupção estrutural” das sociedades periféricas – como se esta não existisse nas sociedades modernas centrais, que são, portanto, “idealizadas” e vistas como tendencialmente “perfeitas” de um modo muito próximo com o que a teoria da modernização clássica fazia –, continua a estar presente em toda a sua argumentação.28

Isso para não falar em teorias que explicitamente continuam o legado dessa mesma teoria com grande sucesso de público e crítica, como Fukuy ama ou Ronald Inglehart.29 Também no Brasil de hoje os maiores bestsellers das ciências sociais são aqueles que “atualizam” essa leitura do mundo que separa os dignos de confiança e incorruptíveis das sociedades centrais daqueles corruptos e inconfiáveis das sociedades periféricas. No Brasil, as mesmas categorias, no entanto, servem para mostrar como as classes altas e médias são moral e cognitivamente superiores às classes populares,30 reproduzindo uma oposição realizada em termos nacionais e regionais na sociologia mundial.

Na realidade, como mostra a outra versão “reprimida” e “dominada” entre as possíveis leituras do legado weberiano, a modernidade ocidental é um todo ambíguo e contraditório, seja no centro, seja na periferia do sistema, e que funciona segundo critérios que muito mais as aproximam do que as distanciam. É possível demonstrar que tanto a hierarquia social quanto a legitimação dessa mesma hierarquia são realizadas de modo muito semelhante em todas as sociedades modernas, sejam centrais ou periféricas.31 Existe todo um caminho a ser percorrido para a construção de uma sociologia crítica contemporânea que seja capaz de ser fundada em outro terreno que não o do preconceito travestido de evidência científica. Nesse caminho, é o Weber crítico, precisamente o que dedicou o melhor de seus esforços a tentar perceber os meandros da legitimação de toda forma de dominação social, quem pode nos ajudar. Talvez ele percebesse que, hoje em dia, boa parte dos interesses que não se podem exercer à luz do dia é legitimada pela própria ciência que deveria denunciá-los.

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7 O argumento que liga a herança platônica à hierarquia moral do Ocidente talvez tenha sido melhor desenvolvido em todas as suas consequências por Charles Taylor do que por qualquer outro pensador. Ver Sources of the self: the making of the modern identity. Cambridge: Harvard, 1989.

8 Jürgen Habermas empregou procedimento semelhante no seu Der philosophische Diskurs der Moderne. Berlim: Suhrkamp, 2005, ao utilizar Nietzsche como “chave mestra”. (Drehscheibe) do pensamento pós-moderno.

9 Uso aqui uma adaptação livre do termo cunhado por Edward Said.

10 Knöbl, Wolfgang. Spielräume der Modernisierung. Weilerswist: Velbrück Wissenschaft, 2002.

11 Como, por exemplo, Eisenstadt, Shmuel. Tradition, Wandel und Modernität. Berlim: Surhkamp, 1979.

12 Stocking, George. Volksgeist as method and ethic: essays on boasian ethnography and the german anthropological tradition. Wisconsin: Wisconsin University Press, 1996.

13 Parsons, Talcott et al. Toward a general theory of action. Londres: Harper Torchbooks, 1965.

14 Ver Latham, Michael. Modernization as ideology. Carolina do Norte: The University of North Caroline Press, 2000; e Gilman, Nils. Mandarins of the future. Baltimore: John Hopkins University Press, 2007.

15 Por exemplo, os livros clássicos de Banfield, Edward. The moral basis of a backeard society. Nova York: Free Press, 1967; e Almond, G. e Verba, S. The civic culture: political attitudes and Democracy in five nations. Nova York: Sage, 1989.

16 Weber, Max. Die protestantische Sekten und der Geist des Kapitalismus. Munique: C.H. Beck, 2011.

17 Gilman, Nils. Mandarins of the future. Baltimore: John Hopkins University Press, 2007.

18 Souza, Jessé. A modernização seletiva. Brasília: UnB, 2000. Tese desenvolvida depois em outros livros, especialmente no A ralé brasileira: quem é e como vivem. Belo Horizonte: UFMG, 2009.

19 As obras de Octávio Paz no México e de Gino Germani na Argentina demonstram que esses temas não eram apenas brasileiros, mas, também, latinoamericanos em sentido amplo.

20 Freyre, Gilberto. Casa-grande & senzala. Rio de Janeiro: Record, 1990.

21 Maciel, Fabrício. O Brasil nação como ideologia. São Paulo: Annablume, 2007.

22 Em entrevistas empíricas que realizamos mais de 90% dos brasileiros tendem a identificar os problemas sociais brasileiros com a corrupção estatal. Souza, Jessé et al. Valores e Política. Brasília: UnB, 2000.

23 Buarque, Sérgio. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

24 Ver, por exemplo, Schwartsmann, Simon. São Paulo e o Estado nacional. São Paulo, Difel, 1975; e Faoro, Raymundo. Os donos do poder. São Paulo: Globo, 1984.

25 Meu próprio trabalho recente se concentra na crítica de nossa tradição sociológica dominante e na construção de uma alternativa verdadeiramente crítica. Ver Souza, Jessé. A construção social da subcidadania. Belo Horizonte: UFMG, 2003/2006, A invisibilidade da desigualdade brasileira. Belo Horizonte: UFMG, 2006, A ralé brasileira: quem é e como vive. Belo Horizonte: UFMG, 2009/2011 e Batalhadores brasileiros: nova classe média ou nova classe trabalhadora? Belo Horizonte: UFMG, 2010/2012.

26 Por exemplo, Cohn, Gabriel. Crítica e resignação. São Paulo: Tao, 2002.

27 Pierre Bourdieu seria, talvez, uma exceção parcial neste contexto.  Infelizmente, Bourdieu não lançou as bases de uma sociologia efetivamente mundial.

28 Ver, por exemplo, Luhmann, Niklas. “Inklusion und Exklusion”. In: Soziologische Aufklärung 6. Wiesbaden: VS Verlag, 2008; ou ainda, Luhmann, Niklas. “Kausalität im Suden”. In: Soziale Systeme 1. (1995), H.1. Stuttgart: Lucius et Lucius, 2003, pp. 7-28.

29 Ver Inglehart, Ronald. Cultural shift in advanced societies. Princeton: Princeton University Press, 1990, Inglehart, Ronald. Modernization and postmodernizationPrinceton: Princeton University Press, 1997 e Fukuy ama, Francis. The end of history and the last man. Nova York: Free Press, 1992.

30 Um exemplo recente é Lamounier, Bolivar; Souza, Amaury. A classe média brasileira. Rio de Janeiro: Campus-Elsevier, 2009. Ver também o “best-seller” Cabeça do brasileiro de Alberto Carlos de Almeida, Rio de Janeiro: Record, 2007.

31 Ver Souza, Jessé. Die Naturalisierung der Ungleichheit. Wiesbaden: VS Verlag, 2007; A construção social da subcidadania, Belo Horizonte: UFMG 2012, 2a ed.; ralé brasileira: quem é e como vive. Belo Horizonte: UFMG, 2009.





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