
Imagem: João Jesus
Por EDERSON DUDA*
A desigualdade no Brasil não é um acidente, mas um projeto: o sistema tributário regressivo e a exploração do trabalho revelam que a riqueza dos poucos se alimenta do tempo e do sangue dos muitos. Enquanto o capital disfarça sua origem, a luta de classes persiste
Produção, exploração e a forma social da desigualdade
A apropriação e a distribuição da riqueza social entre os indivíduos e as classes sociais no capitalismo pressupõe, antes de tudo, sua produção social. Para explicar sua distribuição, é necessário compreender de que forma essa riqueza é produzida, em quais condições históricas e sociais, e por meio de que relações.
A divisão do trabalho, a circulação de mercadorias e a forma como se organiza a propriedade dos meios de produção são elementos essenciais para essa compreensão. A produção da riqueza, nas sociedades capitalistas, ocorre por meio de uma relação específica entre o capital e o trabalho. Esta relação carrega em si a potência de produzir valor e mais-valor, e tem como pressupostos a divisão do trabalho e a propriedade privada, diferenciando os que detêm os meios de produção daqueles cuja única propriedade é sua força de trabalho (Marx, 2011; 2013).
Essa dinâmica está na base das profundas desigualdades estruturais que persistem no Brasil, onde o sistema tributário, ao incidir principalmente sobre o consumo mais do que a renda e o patrimônio, não apenas reproduz, mas também aprofunda a exploração dos mais pobres (Gobetti; Medeiros; Souza, 2018).
Se a produção determina a riqueza social, a “distribuição determina a proporção (o quantum) dos produtos que cabe aos indivíduos” (Marx, 2011: 44). Assim, “entre o produtor e os produtos se interpõe a distribuição, que determina, por meio de leis locais, sua cota no mundo dos produtos” (Ibid., p. 49). A distribuição, portanto, não constitui uma esfera autônoma em relação à produção, mas é por ela determinada: é a forma como o produto social é apropriado segundo as dinâmicas das relações de classes.
No contexto brasileiro, essa apropriação desigual se manifesta sobretudo por meio de um sistema fiscal regressivo, que penaliza proporcionalmente mais os trabalhadores e os mais pobres, que pagam mais impostos, enquanto os detentores de capital se beneficiam de isenções e de uma carga tributária significativamente mais branda (Souza, 2018; Gobetti; Odair, 2022).
O conflito distributivo, nesse sentido, não é apenas uma disputa de resultados econômicos; trata-se de uma expressão da contradição interna entre capital e trabalho, envolvendo tanto a produção do valor quanto a produção de desigualdades sociais.
A crítica à redistribuição
Essa perspectiva, no entanto, é contrastada por abordagens como a de Thomas Piketty. Em O Capital no Século XXI (2014), Thomas Piketty apresenta uma análise densa e empírica sobre a concentração da riqueza mundial na atualidade, partindo da crítica à “curva do U invertido” de Kuznets. Para o autor, a desigualdade não necessariamente diminui com o avanço da industrialização; ao contrário, os dados históricos indicam que a concentração tende a aumentar.
Sua explicação central repousa na “lei fundamental do capitalismo”, uma fórmula contábil que expressa a disparidade entre a taxa de retorno do capital (r) e a taxa de crescimento da renda (g). Quando r > g, o capital se acumula mais rapidamente do que a renda do trabalho, gerando um capitalismo patrimonial baseado na reprodução da riqueza herdada.
Embora importante no plano descritivo, a crítica marxista aponta que Thomas Piketty permanece restrito ao campo da concentração e da contabilidade patrimonial. Sua concepção de capital – entendida como a soma dos ativos imobiliários e financeiros subtraídos dos passivos – rompe com a tradição da economia política crítica.[i]
Para Karl Marx (2011; 2013), o capital não é um conjunto de coisas, mas uma relação social baseada na exploração da força de trabalho. Ao tratar o capital como um agregado patrimonial dissociado do processo produtivo, Thomas Piketty ignora sua origem social, naturaliza sua existência e desloca o conflito distributivo para o terreno das desigualdades de rendas, sem questionar as formas sociais que a tornaram possível. Ao desconsiderar as medidas concretas da luta de classes e os mecanismos institucionais que reforçam a apropriação desigual do produto social – como ocorre na estrutura tributária brasileira –, sua análise limita-se à redistribuição no âmbito da circulação.
Esse deslocamento tem implicações teóricas profundas. Ao não tematizar a contradição entre capital e trabalho como fonte de valor, Thomas Piketty acaba por mistificar a própria natureza da desigualdade, tratando-a como disfunção ou excesso corrigível. Em vez de situar as desigualdades no centro do modo de produção capitalista, ele a interpreta como um problema de má distribuição, cuja gravidade está no comprometimento com a democracia meritocrática.
Contudo, como argumenta François Chesnais (2013), essa abordagem naturaliza o capitalismo como horizonte histórico e político, fechando a porta para a luta de classes. É necessário, portanto, delimitar com rigor a categoria de “capital” e compreender, antes de tudo, que é por sua negatividade constitutiva que Marx concebe a dinâmica do capitalismo como um movimento de constante superação e reposição de suas contradições. Reduzir o capital à sua forma patrimonial, como faz Piketty, é dissolver sua mediação histórica com a força de trabalho e obscurecer o fundamento da desigualdade: a apropriação do mais-valor no interior do processo de produção.
A realidade social brasileira, por sua vez, evidencia como as desigualdades não são apenas estatísticas – uma disparidade de renda -, mas expressam historicamente um processo de acumulação fundado na articulação entre estruturas arcaicas e modernas de extração de mais-valia (Oliveira, 2003).
Entre 1926 e 2013, por exemplo, a fração do centésimo mais rico da população brasileira permaneceu com algo entre 20% e 25% da renda nacional, mesmo em períodos de crescimento ou estabilidade econômica (Souza, 2018). Isso revela que a desigualdade no Brasil é, também, uma escolha política, sustentada por um padrão de reprodução capitalista que combina a modernização tecnológica com formas de exploração herdadas do complexo escravista-colonial e da informalidade estrutural.
Essa reprodução desigual e combinada é reforçada por um sistema tributário regressivo, no qual a carga tributária sobre o consumo consome até 30% da renda dos 40% mais pobres, enquanto incide com muito menor peso sobre os mais ricos, que usufruem de isenções sobre lucros, dividendos e grandes patrimônios (Soares; Zockun; Mendonça, 2022).
A articulação entre desigualdade e modo de produção ganha relevo com a crítica à “igualdade formal” da circulação. Como demonstrado por Marx (2011), a relação entre capitalista e trabalhador se apresenta, no momento do mercado, como uma troca de equivalentes – dinheiro por força de trabalho. Essa aparência formal encobre o fato de que, na produção, o capital se apropria de um excedente gerado pelo trabalho vivo.
A “troca justa” que ocorre na circulação é, na verdade, o ponto de partida de uma relação desigual de exploração, na qual o trabalhador, mesmo recebendo um salário equivalente ao valor de sua força de trabalho, produz valor superior ao que recebe – o mais-valor, apropriado pelo capitalista.
Esse é um dos principais limites da leitura de Thomas Piketty. Ao se manter na aparência da desigualdade como disparidade de renda, ele ignora o que Marx chamou de “forma mistificada” das trocas mercantis: a igualdade na circulação que oculta a desigualdade na produção. A desigualdade, nesse sentido, não constitui uma disparidade do sistema, mas expressa o próprio modo de ser do capital.
O capital só existe na medida em que há exploração do trabalho. Logo, a liberdade de vender sua própria força de trabalho é, ao mesmo tempo, a liberdade de ser explorado – o que constitui a contradição imanente da sociabilidade capitalista. Quando o sistema tributário preserva essa aparência, ao isentar lucros e dividendos e ao se abster de tributar grandes fortunas, contribui para naturalizar a apropriação privada de um produto socialmente gerado, deslocando o foco da produção para o consumo.
Como consequência, qualquer análise da desigualdade que desconsidere a centralidade da exploração tende a confundir causa e efeito. A crítica marxista à “lei fundamental do capitalismo” de Thomas Piketty é precisamente essa: ao propor uma regularidade estatística (r > g) como explicação universal para a desigualdade, o autor substitui a luta de classes por uma mecânica contábil da acumulação. Isso ignora que essa desigualdade decorre da forma como a riqueza é produzida e apropriada sob relações sociais historicamente determinadas.
Ao reduzir o conflito distributivo à disparidade entre rentistas e trabalhadores, Thomas Piketty retira seu conteúdo político, ocultando os antagonismos de classe que moldam as estruturas de exploração e dominação no capitalismo. A desigualdade patrimonial, embora real, é a expressão de uma estrutura mais profunda: a relação entre capital e trabalho, fundada na produção de mais-valia.
No Brasil, essa estrutura se manifesta não apenas nas relações de trabalho, mas também na maneira como o Estado arrecada e distribui os recursos públicos, penalizando os que vivem do trabalho e beneficiando os que vivem da renda.
O Brasil entre regressividade fiscal e expropriação do tempo
No Brasil, esse modelo se reproduz por meio de um sistema tributário regressivo, que tributa pesadamente o consumo e a renda do trabalho, enquanto isenta lucros e dividendos e protege grandes patrimônios. Simultaneamente, os trabalhadores, sobretudo os mais precarizados, são submetidos a jornadas exaustivas, como a escala 6×1, o que intensifica a expropriação do tempo de vida.
Trata-se, portanto, de uma dupla exploração: pela tributação e pelo trabalho. Enquanto os mais ricos acumulam patrimônio e pagam pouco imposto, os trabalhadores e os mais pobres arcam com o financiamento do Estado e têm grande parte do seu tempo apropriado pelo capital. Esse arranjo regressivo tem sido sustentado por uma coalizão conservadora no Congresso, frequentemente apoiada por segmentos das classes médias que se alinham, ideológica e materialmente, aos interesses do capital.
Essa realidade revela que a desigualdade no Brasil não pode ser reduzida a uma disfunção contábil ou a um descompasso entre capital e renda. Trata-se, antes de tudo, de uma forma social historicamente determinada, que expressa o sentido das relações de produção. A riqueza social é gerada pela exploração da força de trabalho e, por isso, qualquer tentativa de compreender o conflito distributivo deve partir da produção – e não apenas da distribuição.
O capital, ao se autonomizar na forma dinheiro (D-D’), oculta sua origem no trabalho, mas essa origem permanece ativa na reprodução das desigualdades. Como destaca Jorge Grespan (1999; 2019), a substância do valor continua sendo o trabalho vivo, mesmo quando o capital se apresenta como entidade autônoma na circulação.
A desigualdade, portanto, não é apenas econômica, mas também histórica e política, enraizada nas formas sociais que estruturam a reprodução do capital. O modo como o tempo de vida é apropriado pelo capital revela outra dimensão do conflito distributivo. Enquanto as elites econômicas desfrutam de tempo livre e capital acumulado, os trabalhadores vivem sob a pressão do relógio, do salário e da sobrevivência. Essa assimetria temporal, intensificada por um sistema tributário regressivo, reforça o caráter político da desigualdade.
A luta por reformas no sistema tributário ou na taxação da herança como medidas de correção é fundamental para que os trabalhadores e os mais pobres obtenham melhorias concretas em sua qualidade de vida. Essas reformas podem ampliar a capacidade da classe trabalhadora de disputar o tempo e as condições de reprodução da vida, simultaneamente em que fortalecem seu poder de barganha frente às determinações do capital.
A crítica marxista, no entanto, aponta que é necessário ir além da redistribuição enquanto um conjunto de medidas jurídico-políticas que atuam sobre as “divergências” da apropriação de renda. Em outras palavras, uma “justa distribuição” – tal como proposta por Thomas Piketty – não constitui uma saída efetiva para o conflito distributivo, pois este está enraizado nas relações de produção. Isso implica reconhecer que a reprodução do capital depende da reprodução da desigualdade – e que esta não pode ser resolvida apenas por ajustes institucionais, mas exige uma transformação radical das formas sociais do trabalho e da propriedade.
Em síntese, a desigualdade social no capitalismo não é uma anomalia, mas uma necessidade estrutural e funcional para a reprodução ampliada do capital. A crítica a Thomas Piketty, articulada à análise da realidade brasileira, revela que a concentração da riqueza e a expropriação do tempo são formas complementares de reprodução do capital. Qualquer análise do conflito distributivo que ignore a centralidade do trabalho corre o risco de reforçar a aparência de justiça e igualdade que legitima a dominação de classe e naturaliza a exploração.
*Ederson Duda é doutorando em Ciências Sociais na Unifesp.

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