Economia da felicidade versus economia do bom viver

Imagem: Zeynep Sude Emek

Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA*

Diante do fetichismo das métricas globais, o “buen vivir” propõe um pluriverso de saberes. Se a felicidade ocidental cabe em planilhas, a vida em plenitude exige ruptura epistêmica — e a natureza como sujeito, não como recurso

A economia da felicidade e a economia do bom viver (ou buen vivir, em sua formulação original andino-amazônica) são abordagens críticas à racionalidade econômica dominante, mas partem de matrizes filosóficas, conceituais e políticas distintas. Para divulgar essa filosofia de vida – amor pela sabedoria, experimentado apenas pelo ser humano consciente de sua própria ignorância –, comparo seus fundamentos, objetivos e experiências práticas.

Economia da felicidade teve origem na Europa e nos EUA (anos 1990–2000), associada à crítica ao PIB como medida de bem-estar.

Economia da boa vida (EBV) veio de povos indígenas andinos (Quíchua, Aymara), constitucionalizada no Equador e Bolívia (2008–2009).

A inspiração filosófica da primeira foi a economia comportamental, utilitarismo, psicologia positiva, enquanto a segunda foram as cosmovisões indígenas, relacionalidade, reciprocidade e harmonia com a natureza. O conceito central da economia da felicidade é o bem-estar subjetivo (felicidade autodeclarada), ou seja, com foco no indivíduo. Na economia da boa vida, celebra-se a vida em plenitude, em equilíbrio com a comunidade e a Pachamama (natureza).

Para a economia da felicidade, o PIB não mede bem-estar, por isso, defende indicadores alternativos, por exemplo, a felicidade interna bruta. Para a economia da boa vida, o PIB expressa uma lógica extrativista e colonial e daí propõe abandonar o paradigma do crescimento.

O sujeito da política, de acordo com a economia da felicidade, é o indivíduo cidadão consumidor. No caso da economia da boa vida, é a comunidade, território e natureza como sujeitos coletivos.

Quanto à ética econômica, a economia da felicidade propõe a busca do bem-estar e da satisfação pessoal sustentável. A economia da boa vida defende o bem viver coletivo, convivência harmônica e equilíbrio de direitos da natureza.

A originada no Norte Global, coloca ênfase em políticas públicas para qualidade de vida em educação, saúde, tempo livre, confiança social etc. A originária do Sul Global enfatiza a transformação civilizatória, descolonização do saber e do poder.

Entre as experiências práticas mais bem-sucedidas, na economia da felicidade, entre exemplos institucionais e de políticas públicas, salienta-se o Butão. Criou o índice de Felicidade Interna Bruta (FIB) em 2008 com diversas dimensões: tempo, saúde, educação, governança, resiliência psicológica, diversidade cultural etc.

A Felicidade Interna Bruta orienta políticas públicas e decisões nacionais, priorizando valores culturais e ambientais. Limita turismo, regula publicidade e mantém carbono neutro.

Já a Nova Zelândia, desde 2019, adota o Wellbeing Budget: orçamento do governo orientado por metas de bem-estar: saúde mental, redução de desigualdade infantil, transição verde. Usa dados subjetivos e indicadores sociais no planejamento macroeconômico.

Em contraponto, Reino Unido, Canadá e França adotaram sistemas nacionais de estatísticas de bem-estar subjetivo. Avaliam o uso de políticas de transporte, saúde e urbanismo.

Nesse movimento social, foram criados índices alternativos ao PIB, entre outros o Índice de Progresso Social (IPS), o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH+) e o Índice Better Life da OCDE. Essas experiências, embora inovadoras, mantêm a lógica capitalista de fundo, traduzindo o bem-estar em métricas para otimização da performance econômica.

Por sua vez, a economia da boa vida adota práticas de transição e experiências comunitárias. Tanto o Equador, quanto a Bolívia, em suas Constituições de 2008 e 2009, fizeram o reconhecimento jurídico do Sumak Kawsay e Suma Qamaña como princípios orientadores do Estado.

Os Direitos da Natureza foram reconhecidos como sujeitos jurídicos. Adotaram políticas de soberania alimentar, interculturalidade e proteção comunitária de territórios indígenas.

Há experiências locais de transição. As comunidades quechuas, guaranis, mapuches e amazônicas articulam práticas agroecológicas, redes de trocas solidárias, uso coletivo da terra e justiça comunitária. Criaram zonas de vida autônoma (Zonas de Paz), como no Cauca colombiano e no Equador.

Discute-se as economias pós-extrativistas. Em debate entre intelectuais decoloniais (como Alberto Acosta, Eduardo Gudynas), propõem uma transição civilizatória para além do crescimento, baseada em convivência, suficiência e respeito ao ciclo da vida.

Deparam-se com um limite estrutural, pois enfrentam enorme resistência dos modelos social-desenvolvimentistas e extrativistas na América Latina, com disputas por território, recursos e poder político. A institucionalização muitas vezes se dilui em retórica simbólica sem ruptura material.

Tanto a economia da felicidade quanto a economia do buen vivir criticam o PIB como medida de progresso e propõem valores alternativos para orientar a economia. A economia da felicidade busca reformar o sistema desde dentro, enquanto a economia do buen vivir propõe romper com o paradigma civilizatório ocidental.

Ambas valorizam o bem-estar, a sustentabilidade e a justiça social. Para a economia da felicidade, a felicidade é individual e psicométrica; para a economia da boa vida, é relacional, territorial e ecológico.

Elas inspiram políticas públicas voltadas para qualidade de vida. A economia da boa vida incorpora cosmovisões indígenas, direitos da natureza e crítica decolonial à modernidade ocidental.

Se cada cultura tem uma ideia própria de bem viver, é arbitrário um único indicador global tenta medir todas elas. Há uma violência epistemológica silenciosa embutida na busca por indicadores globais universais de bem-estar.

Quando se tenta aplicar um único indicador global — como o IDH, o Índice de Felicidade Mundial, ou até o PIB — parte-se da ideia de todas as culturas compartilharem os mesmos valores de progresso, qualidade de vida ou realização humana. Isso gera redução da complexidade cultural a categorias mensuráveis (renda, saúde, escolaridade); invisibilização de dimensões como espiritualidade, ancestralidade, reciprocidade, relação com a terra, fundamentais em cosmovisões indígenas ou não ocidentais; substituição do pluralismo ontológico por um “padrão de vida idealizado”.

O índice global, ao tentar traduzir mundos múltiplos em uma mesma linguagem de ranking e governança, promove uma espécie de “higienização cultural”. Nessa exclusão epistêmica, quem define o que é ‘viver bem’?

Ao aplicar métricas universais, normalmente as elites acadêmicas, políticas ou tecnocráticas definem os critérios. As populações locais, sobretudo periféricas ou indígenas, são objetos de medição, e não sujeitos da definição. Saberes não ocidentais são desqualificados como irracionais, “subjetivos” ou não científicos.

Isso gera uma colonização do imaginário sobre o que é progresso e felicidade. Talvez seja um processo involuntário, mas é profundamente excludente.

Os indicadores globais, ao serem publicados e ranqueados, passam a induzir comportamentos. Países, cidades e governos buscam “melhorar seu score” para atrair investimentos ou prestígio internacional.

Isso leva à adoção de políticas públicas capazes de simular o bem-estar, mas ignoram realidades locais. A felicidade (ou o desenvolvimento) vira meta de performance, e não de transformação substantiva. Este é o “fetichismo da métrica”: importa não o bom viver em si, mas a posição no ranking.

Em resposta a isso, surgem iniciativas que defendem uma abordagem pluriversal. O Buen Vivir (Equador, Bolívia) não busca “subir no ranking”, mas redefinir os critérios de vida boa, incluindo direitos da natureza, coletividade e harmonia espiritual. Defende indicadores situados, produzidos com participação popular, como nos orçamentos participativos e experiências de autogestão urbana. A crítica decolonial propõe descolonizar os indicadores, começando pela pergunta: quem se beneficia com essa métrica?

Medir o mundo com régua única é querer encaixar a vida em uma planilha. Quando um único indicador global tenta medir todas as formas de bem viver, não estamos promovendo conhecimento — estamos fazendo gestão do inclassificável. O risco não é apenas técnico, mas ontológico: transformamos modos de vida em desvios estatísticos.

A imposição de um indicador global de bem viver produz violência simbólica, homogeneização cultural e perda de sentido. Em vez disso, precisamos de ferramentas abertas, dialógicas e situadas, para respeitarem os mundos medidos.

*Fernando Nogueira da Costa é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp. Autor, entre outros livros, de Brasil dos bancos (EDUSP). [https://amzn.to/4dvKtBb]



 

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