
Fontes: The Economist Gadfly
Da retórica isolacionista à prática intervencionista: a Doutrina Monroe para o século XXI (El Tábano Economista)
Um dos paradoxos mais significativos, e potencialmente de maior alcance, da política externa americana contemporânea está se formando nos círculos de poder de Washington. Enquanto o governo Trump-Hegseth projeta para o mundo uma imagem de retirada "estratégica" de compromissos globais – evidenciada em seu ceticismo em relação à OTAN, seu desdém por "balés diplomáticos" multilaterais e seu lema "América Primeiro" –, uma facção intelectual e operacional dentro de seu próprio aparato de segurança nacional está meticulosamente tecendo o que poderia constituir a política externa mais abertamente intervencionista no Hemisfério Ocidental em décadas.
Neste grande tabuleiro de xadrez geoeconômico, a República Argentina, à beira do abismo econômico e político, surge não apenas como um ator passivo, mas como o principal campo de batalha, a cobaia onde será decidido se a América Latina está destinada a se tornar um quintal redesenhado e disciplinado ou um continente em rebelião aberta contra uma ordem unipolar em declínio.
As instruções no rascunho de Colby para a nova Teoria Monroe são claras: desacelerar a globalização em sua forma atual, retirar progressivamente as guarnições implantadas na Europa e na Ásia e reagrupar as capacidades internas no continente. O slogan, uma adaptação mercantilista de "América Primeiro", é "primeiro a casa, depois a vizinhança". No entanto, a questão crítica que surge imediatamente é: se o império retirar suas legiões para fortificar sua cidadela, que mecanismos empregará para manter o controle sobre sua periferia imediata, sobre aquela "vizinhança" que agora declara prioritária? A resposta não é mais buscada nos arsenais do Pentágono, mas em um escritório localizado na Rua 19 NW, em Washington, D.C.: a sede do FMI.
Nenhum país personifica melhor as condições de laboratório para esta nova doutrina da Defesa Nacional 2025 do que a República Argentina. Não se trata de uma vítima acidental das tempestades financeiras globais, mas sim do candidato perfeito, o paciente zero da Doutrina Colby, selecionado por uma confluência de fatores que o tornam extremamente vulnerável:
1. Extrema vulnerabilidade financeira: A necessidade desesperada e crônica da Argentina por dólares confere aos Estados Unidos e ao FMI um poder de negociação avassalador, quase absoluto. Um país à beira de um calote perpétuo , com reservas líquidas negativas, não tem margem de manobra.
2. Fraqueza política sistêmica: Um governo democraticamente eleito, à beira da ingovernabilidade, com uma base parlamentar frágil e legitimidade social corroída por medidas de austeridade, carece da força política necessária para negociar condições ou rejeitar imposições geopolíticas onerosas. Sua própria sobrevivência política depende do próximo desembolso do Tesouro, fato que o transforma em um ator maleável, disposto a aceitar cláusulas que um governo mais estável rejeitaria categoricamente.
3. Presença Chinesa Significativa e Simbólica: A Argentina cultivou profundos compromissos econômicos com a China, incluindo swaps cambiais , projetos críticos de infraestrutura energética e importantes acordos comerciais. Portanto, transformar a Argentina em um "sucesso" na contenção da China teria enorme valor simbólico e prático. Demonstraria que é possível desvincular uma economia de tamanho moderado da influência chinesa, enviando uma mensagem dissuasiva a outros países da região, como o Brasil, que contemplam uma diversificação semelhante.
O cenário atual é, portanto, uma cópia quase perfeita do manual de coerção. O que um país pode trazer para a mesa de negociações nessas condições? Seu poder de negociação é zero. Sua principal estratégia, como ficou claro, parece ser uma esperança quase religiosa de que o próximo desembolso do Tesouro chegue antes que o mercado de títulos exploda e o caos social se instale.
A instrumentalização requer um mecanismo concreto e ágil que evite os lentos debates públicos do Congresso. Tal mecanismo existe e tem um precedente histórico revelador: o uso do Fundo de Estabilização Cambial (ESF) do Tesouro dos EUA. Seu potencial como ferramenta de política externa foi dramaticamente descoberto em 1995, durante a crise do "Efeito Tequila" no México.
Esse mecanismo foi crucial, mas as consequências do resgate ao México são um alerta ameaçador para a Argentina. O pacote de ajuda não evitou uma profunda crise social e econômica:
– Desvalorização do peso: A medida inicial do governo, antes do resgate, foi deixar o peso flutuar , o que causou uma desvalorização abrupta e massiva. Em questão de dias, o peso perdeu mais de 100% de seu valor em relação ao dólar, caindo de 3,4 para mais de 7 pesos por dólar. Isso aumentou drasticamente o custo das importações e da dívida em moeda estrangeira.
– Hiperinflação e taxas de juros exorbitantes: A inflação subiu para 52% em 1995, e o banco central elevou as taxas de juros a níveis insustentáveis (até 80%) para conter a fuga de capitais, sufocando o setor produtivo.
– Falência generalizada e socialização de perdas: Milhares de empresas faliram e o sistema bancário entrou em colapso, levando à criação do Fundo Bancário de Proteção da Poupança (FOBAPROA), um mecanismo que transferiu dívida privada dos bancos para dívida pública, socializando perdas e gerando ressentimento social que persiste até hoje.
– Recessão e dívida crônica: o PIB contraiu 6,2% em 1995, e o custo do resgate elevou a dívida pública a níveis recordes, hipotecando o futuro do país por anos.
O aspecto mais relevante para o caso argentino é que a garantia exigida para o pagamento do México era a receita futura da venda de petróleo da PEMEX, a estatal mexicana. Esse precedente cria um paralelo assustador. Diante da absoluta incapacidade de pagamento da Argentina, seria irracional que o Tesouro dos EUA, por meio de condicionalidades do FMI, exigisse garantias sobre ativos estratégicos equivalentes? Empresas como a YPF (energia) ou mesmo concessões na região de Vaca Muerta poderiam se tornar a contraparte implícita de um resgate com base no FSE, transformando a dívida financeira em perda de soberania sobre recursos naturais estratégicos.
Esse processo de coerção financeira requer, para seu sucesso, uma contraparte interna complacente ou, pelo menos, impotente. É aqui que a crise argentina transcende a econômica e se aprofunda em um profundo colapso da ordem republicana. A decisão da equipe do presidente Milei de promulgar a Lei de Emergência da Deficiência no Diário Oficial e, simultaneamente, publicar um decreto suspendendo sua implementação viola o princípio básico da supremacia constitucional e da separação de poderes. A reação parlamentar foi fraca – uma moção de censura contra o Chefe de Gabinete, Guillermo Francos. A ameaça de impeachment contra o presidente se evaporou em retórica, evidenciando a paralisia legislativa.
Essa paralisia não é coincidência. Ela decorre de uma convergência perversa de interesses: a maioria do espectro político, em maior ou menor grau, adere ao mesmo programa econômico ditado por Washington por meio do FMI. Um Congresso dividido e cúmplice terá que conter as consequências desta reunião de resgate entre Trump e Milei, mas lhe falta a vontade ou o poder para alterar seu curso.
Supor que a República Popular da China observará passivamente esse cerco geoeconômico de um de seus parceiros estratégicos na América do Sul seria um erro de cálculo monumental. Aqui, o papel do Brasil torna-se crucial. A China não agirá sozinha; usará o Brasil como seu principal interlocutor regional dentro do bloco, apresentando o Novo Banco de Desenvolvimento (NDB, o "banco dos BRICS") como uma alternativa confiável e menos onerosa ao FMI e ao Banco Mundial. O NBD pode oferecer linhas de crédito em yuan ou em moedas locais, libertando os países da "armadilha do dólar" e das condicionalidades políticas associadas aos resgates ocidentais.
A história argentina, com sua proverbial tendência a repetir tragédias como farsa, oferece um paralelo preocupante. No início do século XX, as elites dominantes optaram por uma aliança privilegiada com a potência hegemônica da época, o Império Britânico, materializada no Pacto Roca-Runciman de 1933. Esse pacto, que trocava o acesso ao mercado britânico pelo controle das ferrovias e da política econômica argentina, deixou o país no lado perdedor após a Segunda Guerra Mundial, quando o centro de gravidade global se deslocou definitivamente para Washington.
Hoje, a Argentina parece determinada a repetir o mesmo erro histórico. Em vez de se posicionar estrategicamente dentro do emergente bloco eurasiano, com o qual é complementar em termos de recursos naturais e necessidades de investimento, parece destinada a alinhar-se, quase gratuitamente e devido à miopia de suas elites, a uma potência hegemônica em relativo declínio.
A Doutrina Colby e o experimento em andamento com o FMI podem, a curto prazo, disciplinar a economia argentina. Mas, a longo prazo, correm o risco de condenar o país a estar novamente do lado errado da história, isolado das correntes mais dinâmicas da economia global e preso na órbita de um quintal cada vez mais conflituoso e rebelde. O laboratório está aberto, e o mundo está observando para ver se o paciente zero sobrevive ao experimento.

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