Por que homens maus precisam dos nobres de espírito?

Trump e a viúva, Erika, no funeral de Charlie Kirk. Imagem: The White House

Durante o funeral de Charlie Kirk, ocorrido no Arizona no domingo, 21 de setembro de 2025, sua viúva perdoou seu assassino, mas Trump não. O presidente caracterizou Kirk como “um missionário com um espírito nobre e um grande, grande propósito”, e disse mais: “Ele não odiava seus oponentes. Ele queria o melhor para eles. É aí que eu discordava de Charlie. Eu odeio meus oponentes. E não quero o melhor para eles.” 

Essa aparente inconsistência é um aspecto-chave do universo trumpista. Trump, evidentemente, não tem “nobreza de espírito”: ele odeia seus oponentes e os considera um lixo, que deve ser aniquilado. No entanto, para justificar de alguma forma seu ódio brutal, ele precisa que uma figura como Kirk seja um homem bom, que quer o melhor para seus inimigos. (É quase como aqueles cristãos que precisam do Cristo bondoso, cuja morte justifica uma perseguição brutal contra os anticristãos.) É por isso que Kirk precisa ser elevado à figura de um mártir de proporções quase divinas: essa elevação é apenas o reverso brutal da brutalidade de Trump. A lógica hipócrita padrão afirma que se ataca um país ou um povo para ajudar as vítimas de seu regime opressor. Na década de 1930, até o Japão argumentou que estava ocupando a maior parte da China para civilizar seu povo — como se os chineses fossem crianças mal-educadas que precisassem ser disciplinadas para seu próprio bem… A respeito da guerra em curso no Oriente Médio, Bernard-Henri Levy tentou seguir na mesma linha: Israel está fazendo o que faz em Gaza e na Cisjordânia para ajudar os palestinos, para libertá-los das garras dos fundamentalistas muçulmanos que os oprimem… 

Com Trump e Israel, as máscaras caíram, o inimigo deve apenas ser destruído e, para isso, mais uma vez, figuras como Kirk são necessárias. Não há originalidade no que Trump faz aqui — logo na primeira página de sua República, Platão expõe maravilhosamente como os populistas trumpistas (aqui representados por Polemarco) tratam seus oponentes (aqui representados por Sócrates, o narrador): 

“Disse-me então Polemarco: 
— Ó Sócrates, parece-me que você e seu companheiro estão a caminho de regressar à cidade.  
— E você não conjectura mal — declarei.  
— Ora não vê quantos somos? — perguntou ele.  
— É claro!  
— Pois então — replicou — a não ser que sejam mais fortes do que estes amigos, terão de permanecer aqui.  
— Bem — disse eu — ainda nos resta uma possibilidade, a de persuadirmos você de que devem nos deixar partir.  
— Porventura seriam capazes de nos persuadir, se nos recusarmos a ouvi-los?  
— De modo algum — declarou Gláucon. 
— Então fiquem cientes de que não serão ouvidos.”1 

Ainda hoje, seguimos encontrando a postura de simplesmente não ouvir seu oponente (caso você seja mais forte que ele) na grande política — e até mesmo na filosofia. Uma das críticas padrão feitas a Hegel defende que a noção de progresso dialético pressupõe o ímpeto de continuar pensando, de levar a cabo todas as consequências de um pensamento ou postura específicos: digamos então que, se você é um asceta, pensar sobre isso o fará perceber que o ascetismo é uma postura egoísta — afinal, você fica totalmente focado em si mesmo quando tenta desesperadamente apagar qualquer resquício de prazer e alegria… Mas Hegel sabe muito bem disso: logo no início de A ciência da lógica, em que analisa a ordenação lógica das categorias puras do pensamento desprovida de quaisquer pressupostos empíricos, ele aponta que a Lógica está todavia fundamentada em um ato (em última análise, contingente) de vontade, uma decisão voluntária de pensar. Um indivíduo asceta pode simplesmente dizer: “Beleza, então eu sou um egoísta mesmo, mas e daí? me recuso a pensar nas implicações do meu ascetismo, tão somente aceito que eu sou assim.” 

Tal recusa em ouvir e/ou pensar não é apenas uma grande decisão primordial; ela se coloca continuamente em nossas vidas. Aqueles que apoiam Israel incondicionalmente simplesmente ignoram todos as razões óbvias pelas quais o que está ocorrendo lá é um genocídio, descartando qualquer argumento como meras mentiras antissemitas. Esse tipo de coisa vive acontecendo comigo: quando recentemente listei razões para nossa crise ambiental, as respostas que me deram foram variações de “não vamos nem ouvir; fique certo disso”, e a breve explicação dada dizia que a luta contra o aquecimento global é uma campanha com motivações obscuras (destruir o Ocidente próspero). Nessa mesma linha, Trump afirmou em seu discurso na Assembleia Geral da ONU, em 23 de setembro de 2025, que a mudança climática é “o maior golpe já perpetrado no mundo”. Essa postura está fundamentada em uma noção precisa de justiça, articulada um par de páginas mais adiante [também na República] por Trasímaco, que diz: “Afirmo que a justiça não é outra coisa senão o interesse do mais forte.” E prossegue explicando como

“cada governo estabelece as leis de acordo com o seu interesse: a democracia, leis democráticas; a monarquia, monárquicas; e os outros, da mesma maneira. Uma vez promulgadas essas leis, fazem saber que é justo para os governos aquilo que lhes interessa, e castigam os transgressores, a título de que violaram a lei e cometeram uma injustiça. Aqui tens, meu excelente amigo, aquilo que eu quero dizer, ao afirmar que há um só princípio de justiça em todos os Estados — o que interessa aos poderes constituídos. Ora estes é que detêm a força. De onde resulta, para quem pensar corretamente, que a justiça é a mesma em toda a parte: o interesse do mais forte.”2 

Ora se não é, mais uma vez, a política trumpista em sua forma mais pura? A justiça imposta por ele a outros Estados mais fracos é a justiça arbitrária do mais forte: se o Brasil prende seu amigo Bolsonaro, Trump aumenta as tarifas em 30%; como [Keir] Starmer se curva a Trump, o Reino Unido é mais bem tratado do que os outros países europeus; se um país exporta muito para os EUA, ele ignora as regras de concorrência justa e simplesmente aumenta as tarifas… Mais uma vez, Trump garante que seus atos produzam consequências negativas para os seus oponentes — ele nem se preocupa em fingir que o sofrimento causado possa lhes fazer algum bem. Não basta, porém, adotar a postura inversa para realizar atos que, assim esperamos, produzam consequências positivas para todos os afetados. A lógica aqui se torna mais complexa — lembremos como Walter Benjamin rejeitou brutalmente o princípio norteador de Goethe: “Busque garantir que tudo na vida tenha uma consequência.” Eis seu comentário mordaz: 

“Esta é, sem dúvida, uma das máximas mais detestáveis de todas, uma que não se esperaria encontrar em Goethe. Trata-se do imperativo do progresso em sua forma mais dúbia. Não é o caso de que a consequência leve ao que é frutífero na ação correta, e muito menos que a consequência seja seu fruto. Pelo contrário, dar frutos é a marca das ações malignas. Nenhuma consequência pode ser atribuída (ou atribuída exclusivamente) às ações de pessoas boas. Como se sabe, e assim deve ser, os frutos de um ato são inerentes a ele. Adentrar o interior de um modo de agir é a maneira de testar sua fecundidade.”3 

Há um óbvio argumento em contrário a essa postura: e quanto a agir para prevenir o aquecimento global, ou uma guerra nuclear, ou a dominância da IA? Nesses casos, não são apenas as consequências que importam? Por acaso o argumento de Benjamin não se baseia na velha distinção entre poiesis e práxis? “Poiesis” é uma atividade que visa produzir algo que existirá após a realização da atividade (uma obra de arte, uma mesa ou seja lá o que for), enquanto “práxis” é uma atividade cujo objetivo é ela própria (como realizar uma obra de arte). Pode-se, no entanto, argumentar que atividades que visam um objetivo que lhes é exterior também têm um valor imanente. Imaginemos um grande ato coletivo para construir algo que diminua os danos ambientais: mesmo que fracasse, essa atividade atualiza uma forma de solidariedade social e, assim, apresenta um valor positivo imanente. O que carrega, portanto, a marca do mal é a orientação exclusiva para um objetivo exterior (seja ele bom ou ruim), que ignora “o interior de um modo de agir”. 

Jean-Claude Milner4 destacou que, para países não europeus, a guerra é um estado de coisas normal, sempre à espreita no plano de fundo, e os tempos de paz não passam de intervalos ocasionais entre conflitos armados, enquanto no Ocidente cristão, a paz é considerada o ponto culminante do progresso histórico, o estado final a que todos aspiramos. Em nenhum lugar isso ficou mais evidente do que na Alemanha nazista: o tempo todo se evocava a “ewiger Frieden” [paz perpétua], que deveria ocorrer após a vitória final — essa referência à paz perpétua justificava (e exigia) a mobilização total para a última guerra, que poria fim a todas as guerras. Hoje, a mesma loucura se espalha pelo mundo: Trump trouxe a paz apoiando integralmente Israel e bombardeando o Irã, Netanyahu tenta trazer a paz ao Oriente Médio expandindo a guerra contra os palestinos e se engajando em um genocídio (o que de certa forma é até bastante apropriado: depois de aniquilados inimigos, HÁ paz…). Então há certa lógica no fato absurdo de que alguns Estados proponham a candidatura tanto de Trump quanto de Netanyahu ao Prêmio Nobel da Paz… No extremo oposto, a Cultura do Cancelamento procede de maneira semelhante: ela luta pela tolerância e pela diversidade, excluindo brutalmente todos aqueles que contestem sua própria definição de tolerância e diversidade. 

Três conclusões podem ser tiradas dessa situação. Primeiro, que aprender a conviver com as ameaças de guerra talvez seja a única maneira de trazer a paz. Segundo, tomemos cuidado com os “nobres de espírito”, cuja função é justificar a brutalidade. Terceiro, em uma sociedade verdadeiramente emancipada, as pessoas não se engajam em ações que tragam boas consequências — elas se engajam em ações que não têm consequências. 

* Tradução de Carolina Peters

Notas

  1. Nota da tradução: Utilizamos como base a edição Platão. A república. Introdução, Tradução e notas de Maria Helena da Rocha Pereira. 9.ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001, 327c, modificada de acordo com o texto do autor. ↩︎
  2. Ibid., 338c–339a, modificada. ↩︎
  3. Citado por Jeremy Matthew Glick em “Put Some Red on It: Maoist Brooding and Communist Laughter”. ↩︎
  4. Em conversa com o autor. ↩︎

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Slavoj Žižek nasceu na cidade de Liubliana, Eslovênia, em 1949. É filósofo, psicanalista e um dos principais teóricos contemporâneos. Transita por diversas áreas do conhecimento e, sob influência principalmente de Karl Marx e Jacques Lacan, efetua uma inovadora crítica cultural e política da pós-modernidade. Professor da European Graduate School e do Instituto de Sociologia da Universidade de Liubliana, Žižek preside a Society for Theoretical Psychoanalysis, de Liubliana, e é um dos diretores do centro de humanidades da University of London. Dele, a Boitempo publicou Bem-vindo ao deserto do Real! (2003), Lacrimae rerum (2009), Em defesa das causas perdidasPrimeiro como tragédia, depois como farsa (ambos de 2011), Vivendo no fim dos tempos (2012), O ano em que sonhamos perigosamente (2012), Menos que nada (2013), Violência (2014),  O absoluto frágil (2015), O sujeito incômodo: o centro ausente da ontologia política (2016) e Pandemia: covid-19 e a reinvenção do comunismo (2020).




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