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Conto publicado na revista Brasilidade, e nunca mais republicado, encontrado pela bibliotecária Izabel da Mota Franco e pelo professor Diogo Valença de Azevedo Costa
Vicente estava de castigo. Aquele dia não podia sair, para brincar com os companheiros, os quais, ao passar por ele, lhe perguntavam: “Vamos bater bola?”, “Vamos nadar?”, ou, “Vamos no campinho, fazer as aranhas brigar?”. Atrás da janela, Vicente sentia uma tortura horrível.
Via a algazarra feliz de seus companheiros, a correr o campo, chutando a bola de pano, que o Zequinha sempre renovava com retalhos, sobras de vestidos feitos por sua mãe. Via o Augusto pegar a bola, correr feito um louco, driblando o Antoninho, o Zé Carlos, chegar na bequeira, dar uma “comida” no Carlito e no Negrão, e bumba! Mais uma que o Zequinha “engulia”.
Depois, via o pessoal brigando, por causa do Zé Carlos, que arrelia com o Augusto. Então o Zequinha ameaça recolher a bola e o Zé Carlos lhe dá uns sopapos, ficando ele com o “couro”. Ao pensar nisto, Vicente empalidece. Bem que gostaria de ser mais forte, para poder dar uma surra no Zé Carlos e defender sempre o Zequinha. Mas ninguém pode com o Zé Carlos. Ele manda em todos, na “trocinha”, e quem não obedecer já sabe: apanha.
Amuado, Vicente pensa com prazer na turminha que não foi jogar. Ih! Com este calor! Que bom se eu estivesse com eles. A esta hora nós estávamos dando uns mergulhos e eu só queria ver a cara que “seu” Alfredo fazia quando soubesse que nós tínhamos atravessado a chácara. Mas se ele pega alguém, babau. Acho melhor estar de castigo, porque assim não acontece nada.
E as aranhas? Eu podia muito bem procurar a minha e fazer ela lutar com a do Pedrinho. Eles não sabem infezar as aranhas e por isso a briga é fraca. Quando eu tiro a minha Fifi do buraco, com um capim comprido, ela já vem danada da vida, porque eu a cutuco bastante. É só o Pedrinho encostar a dele na minha e a outra está frita. Mas Vicente tem, ao mesmo tempo, pena das aranhas. Uma sempre sai estropiada e lá voa ele, atrás da janela, pela vida afora. Até parece que o mundo é um grande parque, feito para as crianças brincarem.
Pouco a pouco vai tomando corpo, em seu cérebro de menino pobre e sem mimos, a ideia do que teria a fazer domingo, ideia aborrecida e ingrata. Aparecia como uma mancha negra, no meio de tantas divagações. Enquanto os outros iriam à missa, com seus terninhos domingueiros, ele sairia muito antes, numa roupa remendada e suja, levando às costas a caixinha de engraxate. Era o ganha-pão. Ficaria nas portas da estação de bondes, na Vila Mariana, no seu “ponto”. “Quer engraxar, moço?” Ao pensar nisto seu rosto contraia-se. Parecia-lhe uma tremenda humilhação o ficar ajoelhado diante de outros, durante tanto tempo, em troca de uns níqueis.
Depois surge o Angelin2, magro e amarelo, parecendo que vai morrer dali a meia hora, com as olheiras de sonhador e sua caixinha de engraxate. Angelin. Que bom amigo. Quando eu puder, eu vou ajudar o Angelin. Se eu chegar a ser rei, eu faço dele meu secretário. Ih! Quanta coisa que eu posso fazer! Eu compro uma porção de coisas para o pessoal. Quero só ver a cara do Zé Carlos, quando eu der para todos um terno de casemira, uma bola de verdade e uma casa chic para morar. Para ele eu não dou nada.
Ainda se ele me procurar, e me pedir perdão pelo soco que me deu na biquinha, eu dou alguma coisa. Depois o Angelin poderá estudar. Ele que está sempre triste, vai ficar alegre quando souber de tudo. Aí nós vamos até à Vila Mariana. Os fregueses vão ficar assombrados. Eu preferia ir num carro muito grande e mandava arrear as capotas, para fazer mais bonito.
Passávamos no salão de barbeiro, onde eu engraxava sábado de tarde, e cortava o cabelo. Dava quinhentos mil réis para o Benedito. Mandava, também, dar os empregos que eles estão querendo. Eles seriam capazes de pensar que eu estava brincando. Depois mandava tocar pra rua Luiz Góis, ver a dona Alice. Ela é tão camarada. Toda vez que eu ia lá pra engraxar, me mandava dar um prato de comida e fazia Agostinho conversar comigo3.
De Agostinho eu bem podia fazer um ministro. Eu deixava ele fazer tudo. Também aquele gorducho sabe tanta coisa! Toda vez que lê um livro novo, ele corre pra me contar como é. Eu só não gosto dele quando ele começa a dizer que tem pena de mim, pra dona Alice. Ter pena de mim, por quê? Eu faço tudo o que quero.
Ele só pode ler, brincar com o patinete no quintal, fazer visitas com a sua mãe. Ou então, ir ao cinema com aquela antipática de sua tia. Eu não. Ganho meus dez ou quinze mil réis, escondo dois ou três para mim, e dou o resto pra mamãe. Ela fica toda contente comigo, diz pra vizinha que eu sou muito esperto, guarda dez tostões para mim ir no cinema domingo, e ainda compra carne e faz uma macarronada. Domingo de manhã eu vou engraxar e volto com mais doze mil réis, guardando ainda um pouco para mim. Me lavo. Visto o meu terninho de brim e vou na “matinée”. Chego lá e posso comprar balas, chocolate, tomar refrescos e tudo que tiver vontade. Logo, todo o pessoal está atrás de mim. Nós dividimos o que eu compro e todos ficam contentes.
Mas eles só me procuram quando estou bem vestido. Quando estou engraxando, alguns, como o Zé Carlos, fingem que não me conhecem. Apenas o Zequinha, o Augusto e o Pedrinho conversam comigo e com o Angelin. Eles sabem que não tem nada de mais engraxar. Depois é divertido. A gente passa a escova no sapato, prá lá e prá cá, assobia, não tem ninguém guardando a gente, mexe com os outros meninos, joga cara e coroa e faz “trocinhas” prá ir nadar e jogar futebol. Depois, os fregueses conversam com a gente. Perguntam como vai a vida; alguns também perguntam se a gente está estudando. Com os outros meninos eles nem conversam. É por isso que eu capricho, para ter a minha freguesia.
Nisso a dona da casa pede para que sua mãe o mande à venda. E lá vai o Vicente, todo contente com a nova liberdade, comprar meio quilo de açúcar para dona Margarida, deixando um mundo atrás da janela. O mundo pequeno que vive dentro de sua vida.
*Florestan Fernandes (1920-1995), foi professor de sociologia na USP. Autor, entre outros livros, de A revolução burguesa no Brasil. Ensaio de interpretação sociológica (Contracorrente). [https://amzn.to/4qhHUKa]
Referência
O presente conto foi encontrado no Fundo Florestan Fernandes da Coordenadoria de Obras Raras e Coleções Especiais da Biblioteca Comunitária da Universidade Federal de São Carlos (FFF/ColEsp/BCo/UFSCar).
Até o presente momento, o conto permaneceu praticamente inédito. Florestan Fernandes o teria escrito com 23 anos, nunca tendo lhe feito qualquer alusão em suas entrevistas, depoimentos e escritos. A socióloga Heloísa Fernandes Silveira, filha de Florestan, assim se expressa diante dessa preciosa descoberta: “Desconhecíamos, minhas irmãs, meu irmão e eu, esse conto que a pesquisa da bibliotecária Izabel da Mota Franco e do sociólogo Diogo Valença nos apresentam revelando a infância do engraxate Vicente que se tornaria Florestan, nosso pai. Leitura ainda mais emocionante porque expõe sua dolorosa experiência infantil da desigualdade, da discriminação e da injustiça, temas que marcarão sua obra como sociólogo, ao mesmo tempo que revela o sonho de liberdade, vivenciado na fraternidade das suas relações de amizade com seus iguais, um sonho que inspira o grande socialista que ele viria a ser”.
Notas
2 Angelin é um personagem real. Assim Florestan se refere a ele em entrevista concedida a Eliane Veras Soares: “O Angelim, engraxate, que era meu companheiro, ficava naquele ponto ali, perto da estação de bondes da Vila Mariana; ele morreu de tuberculose” (Soares & Costa, 2021, p. 69). Na entrevista A pessoa e o político, Florestan rememora um amigou que morreu de tuberculose, sem mencionar o nome: “Houve uma outra amizade profunda, um rapaz que era também engraxate, e era um rapaz muito inteligente e sensível. Ele morreu uns dois anos depois que eu o conheci, morreu de tuberculose e de fome. Para nós não era fácil sobreviver. Era uma vida dura, que parece literatura armada de televisão. Isso acontecia frequentemente, as pessoas caíam no caminho” (Florestan Fernandes. A pessoa e o político. Nova Escrita / Ensaio, 1980, p. 15).
3 Dona Alice e Agostinho são também personagens reais. Florestan recusava comida, na época em que era um menino engraxate, quando percebia que o oferecimento era uma forma de rebaixar e humilhar. A única casa em que aceitava comida era a de uma professora, com cujo filho ele brincava, como dirá na entrevista a Eliane Veras Soares: “[…] a mãe de um menino, que ela era professora, eu engraxava sapatos na casa dela, era a única casa na qual eu aceitava comida, cujo filho brincava comigo; engraxava sapato, almoçava, brincava com ele e depois ia embora” (Soares & Costa, 2021, p. 61).
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