O absurdo lógico do Dilúvio e a ideia de um Deus com preferências

O Dilúvio e a Arca de Noé (Foto: Reprodução/Gerado com IA)

A instrumentalização do divino para justificar conflitos humanos é uma das forças mais destrutivas que já existiram

Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva
brasil247.com/

A história do Dilúvio e da Arca de Noé é uma das mais conhecidas da Bíblia. A imagem do barco cheio de animais, do senhor de barba e da pomba com um ramo de oliveira é familiar a todos. No entanto, quando analisamos a narrativa não como um conto infantil, mas como um relato que se propõe a ser sério, ela se desfaz em uma sequência de absurdos logísticos e, mais importante, em uma contradição teológica fundamental.

Comecemos pela logística, pois é onde a história já demonstra suas fraquezas. A ordem para construir um barco de dimensões colossais, capaz de abrigar um casal de cada espécie animal, é por si só uma tarefa impossível para um homem e sua família, com a tecnologia da época. Porém, o verdadeiro pesadelo começa após o recuo das águas. Como redistribuir os animais pelo mundo? Imagine a cena: pinguins, desembarcando no calor do Oriente Médio, tendo de caminhar milhares de quilômetros até a Antártida; cangurus, cruzando desertos e oceanos para chegar à Austrália, sem serem devorados por predadores igualmente famintos; ursos polares, derretendo sob o sol da Mesopotâmia. A arca encalhou no Monte Ararat – ou seja, parou antes mesmo de iniciar a viagem de redistribuição. É o equivalente a um caminhão de mudanças capotar na saída da cidade e, ainda assim, conseguir entregar os móveis em todos os continentes. A logística é simplesmente inviável.

Contudo, o problema maior não é a logística, mas a lógica. A Bíblia afirma que Deus enviou o dilúvio para eliminar a maldade da Terra. O resultado? Imediatamente após o dilúvio, o próprio Deus reconhece que a imaginação do coração do homem continua má desde a sua meninice. Ou seja, a solução radical e violenta – um genocídio global que incluiu crianças, bebês e animais – simplesmente não funcionou. O mal não foi erradicado porque não é um problema externo, e sim uma condição intrínseca da humanidade. Se Deus é onisciente, Ele sabia que isso falharia. Se não sabia, não é onisciente. Se sabia e mesmo assim prosseguiu, então a ação foi um fracasso consciente, uma crueldade ou uma incompetência. De qualquer forma, a narrativa apresenta um Deus que, ao menos neste episódio, falhou em seu objetivo declarado.

Isso nos conduz a uma discussão mais profunda sobre a natureza de Deus. Em "O Nome da Rosa" de Humberto Ecco, o frade sugere que Jesus não ria porque, sendo onisciente, já conhecia todas as piadas. Indo além: se Deus é atemporal – se existe fora do tempo, onde não há "antes" ou "depois" –, então Ele não pode mudar. Mudar de opinião, irar-se ou arrepender-se são processos que dependem do tempo. Exigem um estado anterior e um posterior. Um ser atemporal é, por definição, imutável. A própria ideia de onipotência entra em colapso aqui, pois um Deus imutável não pode "fazer" coisas no tempo, já que "fazer" é uma ação sequencial.

A teologia tenta escapar dessa armadilha afirmando que a Bíblia usa linguagem antropomórfica – atribui características humanas a Deus – para que nossa mente limitada possa compreendê-Lo. Mas isso é uma falácia. Se fosse a única forma, nenhum ser humano seria capaz de questioná-la. Nós, humanos, somos perfeitamente capazes de conceber a ideia de um Deus impessoal, um princípio cósmico, um Motor Imóvel, como propuseram Aristóteles e Tomás de Aquino. Esse Deus filosófico é atemporal, impessoal e não intervém na história. Ele é a causa primeira de tudo, não um personagem.

Eis o ponto crucial: se Deus não possui essas características humanas, a ideia de um "povo eleito" desmorona. A eleição é um ato de preferência, de parcialidade. É escolher um grupo em detrimento de outros. Um princípio cósmico universal não tem um povo favorito. Ele não elege os hebreus em Canaã e rejeita os astecas nas Américas ou os aborígenes na Austrália. A eleição cria uma divisão artificial na humanidade, separando a criação entre "escolhidos" e "não escolhidos". Isso é incompatível com um Deus que é o fundamento de toda a realidade, não de uma tribo específica.

E essa incompatibilidade tem consequências sangrentas. A noção de "povo eleito" é o combustível que alimenta guerras santas. Quando se acredita que Deus está ao seu lado, o inimigo se torna o inimigo de Deus. A causa deixa de ser terrena e política para se tornar uma cruzada divina. A violência deixa de ser um mal necessário e se transforma em um ato de piedade, uma obrigação religiosa. A história está repleta de exemplos, das conquistas de Canaã aos jihads e cruzadas. A instrumentalização do divino para justificar conflitos humanos é uma das forças mais destrutivas que já existiram.

Concluindo, a narrativa do Dilúvio, quando levada ao pé da letra, não resiste a uma análise lógica mínima. Revela um Deus que é incompetente, cruel ou não onisciente. E, quando tentamos salvá-lo dessas características, recorrendo ao Deus filosófico da imutabilidade e atemporalidade, nós O removemos completamente do jogo narrativo. O Deus que age na história, que elege povos e que se ira é uma projeção humana, um personagem de uma saga tribal. E o Deus que é o fundamento lógico do universo não pode ser esse personagem. São dois conceitos que se excluem mutuamente. Tentar uni-los é forçar a lógica até o ponto de ruptura. No fim, a escolha é entre um Deus impessoal, que a razão pode conceber, mas com quem não se pode conversar, ou um Deus pessoal, para quem se pode rezar, mas que carrega as contradições e, frequentemente, a violência de suas criaturas.



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