
Imagem: Kagan Bastimar
Por SAMUEL KILSZTAJN*
O Partido dos Trabalhadores, sem poder contar com a pressão do povo organizado para assegurar as conquistas de seu programa político, transformou-se em presa política do mercado, da mídia e dos políticos
Maria Victoria Benevides conta que, nos primórdios, durante uma reunião da nata dos intelectuais de esquerda com o Lula, todos se empenharam em ficar anotando as falas de cada um dos participantes. Terminada a primeira rodada, o Lula, com rigor e poucas palavras, resumiu os diferentes pontos de vista, as convergências e as divergências apresentadas.
Maria Victoria, que estava sentada ao lado de Antonio Candido, comentou ao seu ouvido, “mas ele não anotou nada”; ao que Antonio Candido respondeu, “ele é mais inteligente que todos nós juntos”.
Em A república, Platão, na figura de Sócrates, afirma que se existisse uma sociedade onde todos fossem bons, haveria competição para esquivar-se do poder, como hoje existe para obtê-lo. Ainda de acordo com Platão, as pessoas que competem pelo poder normalmente o fazem por vaidade e por dinheiro. Os bons não buscam honrarias, tampouco são mercenários, muito menos corruptos. Uma pessoa boa só disputaria o poder para evitar ser governada por ambiciosos, mercenários e corruptos.
Em seu pronunciamento durante o evento Em Defesa da Democracia e Contra o Extremismo na sede das Nações Unidas em 24 de setembro de 2025, Lula, assim como Sócrates, disse que “a desgraça de quem não gosta de política é que é governado por quem gosta”.
Os idealistas na política
Henry Miller, em entrevista à Paris Review, declarou que considerava o mundo da política repugnante, corrupto e degradante. Falou que, para ser político, era necessário ser ignorante, ter algo de assassino, estar pronto e disposto a ver gente sacrificada, massacrada, por amor a um ideal, seja ele bom ou ruim; e acrescentou, “quer dizer, esses são os [políticos] que prosperam”.
O entrevistador tentou abrandar a conversa e perguntou sobre políticos como George Orwell. Mas Miller não se intimidou, disse que os idealistas na política, os homens de princípios, eram os piores, porque careciam de senso de realidade. Os idealistas na política não articulam nada com ninguém.
Eu não tenho estômago, não sirvo para fazer política institucional, porque não tenho jogo de cintura, não articulo nada com ninguém. Conhecendo as minhas limitações, sempre fugi de qualquer cargo político, embora tenha sempre estado muito perto da Dinamarca para sentir o seu cheiro de podre. Mas tiro o chapéu para quem consegue fazer política institucional, porque sei que quando acaba a política, começa a guerra. Quem como Lula teria estômago para negociar com Trump?
Meus primeiros amigos que chegaram ao poder falavam em “comer pelas bordas”. Acompanhei crises existenciais porque é simplesmente impossível governar sem se submeter à máquina corrupta do Estado. Vi amigos bem-intencionados em altos cargos passarem meses ocupados em ficar pulando rasteiras sem conseguirem abrir a pasta de trabalho antes de serem sumariamente fritados.
Em junho de 2018, durante a campanha para a eleição à presidência da república, participei de uma conversa entre os coordenadores dos programas do PT, PCdoB, PSol e Ciro Gomes. Na ocasião, Fernando Haddad ainda representava o candidato Lula, que se encontrava preso. As pesquisas, na época, apontavam 40% de votos para o Lula e 2% para o Fernando Haddad, no caso de ser ele o candidato pelo PT.
Como não entendi nada do que estava acontecendo, resolvi, em julho, ir para o Nordeste, para ver in loco o que estava rolando no reduto petista do país. Fui ao entroncamento da Bahia, Pernambuco e Ceará e voltei com os pés no chão. Os votos eram do Lula, não necessariamente do Partido dos Trabalhadores. Ouvi um sujeito dizer que, se o Lula mandasse, ele votaria até em um cão. Lula indicou Dilma Rousseff com devida antecedência, mas não teve tempo hábil de fazer o mesmo com Fernando Haddad.
Dilma Rousseff foi militante da Polop até 1967 e eu comecei a militar na Polop em 1968, então não tive a oportunidade de conhecê-la pessoalmente. Não a conheci, mas sei quem ela é, idealista e incorruptível, ou seja, ela é política na base, mas não serve para fazer política institucional porque não tem jogo de cintura, não articula nada com ninguém.
Política institucional e organização popular
O PT foi criado visando dar continuidade à organização dos trabalhadores nas empresas e nos sindicatos e dos moradores nos bairros. As decisões dos núcleos, das bases, eram encaminhadas à direção nacional. Ao chegar à presidência, o Partido dos Trabalhadores assumiu, em muitos aspectos, as formas de organização política dos partidos tradicionais, privilegiou a política institucional, atender ao mercado e à mídia e descuidou de sua relação com os trabalhadores que lhe deram origem, abandonando o trabalho de consciência e organização popular.
Em sua fala em 24 de setembro nas Nações Unidas, Lula assumiu que não se dedicou a “fortalecer a organização popular e social”. E, além de ter negligenciado o trabalho de base, o PT ainda se empenhou em reprimir os movimentos sociais – “nossos eleitores que foram para a rua, que apanharam, que foram achincalhados, são considerados por nós sectários e radicais; e a gente começa a não dar atenção a eles e dar atenção àqueles que falam bem da gente”.
Neste sentido, foi criado um paradoxo na administração política do PT – ao se dedicar à articulação política do país e abandonar e reprimir os movimentos sociais, fazia-lhe falta a organização da sociedade civil que lhe daria respaldo para a implementação de suas políticas sociais. O Partido dos Trabalhadores, sem poder contar com a pressão do povo organizado para assegurar as conquistas de seu programa político, transformou-se em presa política do mercado, da mídia e dos políticos.
Para o seu terceiro mandato, mesmo articulando e fazendo alianças antes inimagináveis, Lula venceu por uma pequena margem de votos. Todos os que votaram nele em 2022 votaram para se livrar do pesadelo do Bolsonaro, que não queria largar o osso, como se viu na cena pós créditos de 8 de janeiro de 2023, quando ele ainda tentou subir a rampa do governo federal na marra. Vale a pena assistir à série documental Ato 18 – O Golpe contra Lula, especialmente o quarto episódio, Punhal verde e amarelo, veiculado às vésperas do julgamento histórico do ex-presidente Jair Bolsonaro em setembro de 2025.
Seria mesmo impossível o Lula atender a todos os setores e nichos disparatados que o elegeram para presidente e, dada a pequena margem de votos com que venceu, atender também aos setores e nichos que não votaram nele. Após a sua posse, os militantes do PT cobraram de Lula uma postura à esquerda, como se ele pudesse ignorar o congresso e todas as demais esferas de poder no país.
O presidente também foi criticado por andar falando muita bobagem. Mas eu votei no Lula nas eleições de 2022 só para poder falar mal dele. Ou será que eu deveria ter votado no Jair Bolsonaro? Por ocasião do 60º aniversário do Golpe Militar de 1964, Lula declarou que “… isso já faz parte da história, já causou o sofrimento que causou, o povo já conquistou o direito de democratizar este país, os generais que estão hoje no poder eram crianças naquele tempo…”
Por outro lado, o Exército brasileiro, que durante o governo de Jair Bolsonaro prestou homenagem à “revolução” de 31 de março, também decidiu não comemorar o golpe militar em 2024. Lula falou muita bobagem, mas a sociedade civil e várias instituições descomemoraram ativamente o golpe que submeteu o país a uma ditadura militar e um regime de exceção por 21 longos anos.
Em meio à atual crise da hegemonia norte-americana e o despertar do gigante chinês, o Brasil passa por momentos críticos com desdobramentos pouco previsíveis. A organização popular e social, sempre imprescindível, adquire redobrada importância diante das atuais ameaças à autodeterminação e soberania do povo brasileiro.
Espero que a autocrítica de Lula possa contribuir para o fortalecimento do trabalho de base. Contudo, lamento muito a ausência de lideranças que possam seguir os passos de nosso Lula na articulação deste país em busca de sua identidade.
*Samuel Kilsztajn é professor titular em economia política. Autor, entre outros livros, de 1968. Sonhos e pesadelos. [https://amzn.to/3JZUs8V]
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