Os limites da estratégia russa para o sul da Síria: mera demonstração de força ou retomada da influência?

Crédito da foto: The Cradle

Com as incursões israelenses aumentando no sul, Damasco está se apoiando em Moscou para conter a situação – contudo, a influência da Rússia permanece limitada, deixando a região presa entre ambições concorrentes e frágeis mecanismos de segurança.
Quando o governo do ex-presidente sírio Bashar al-Assad entrou em colapso em 8 de dezembro de 2024, o sul da Síria tornou-se palco de uma nova rodada de recalibração diplomática e militar.

O ex-líder da Al-Qaeda, Ahmad al-Sharaa (Abu Mohammad al-Julani), que se autoproclamou presidente interino da Síria em 29 de janeiro de 2025, rapidamente voltou sua atenção para garantir um acordo com Israel sob os auspícios dos EUA – uma medida que sinalizou o desejo do governo de transição de estabilizar as fronteiras e recuperar a “soberania”.

Em setembro, o enviado dos EUA para a Síria, Tom Barrack, confirmou que as negociações indiretas entre a Síria e Israel estavam "progredindo", com expectativas de um acordo de desescalada. No início de novembro, a visita de Sharaa a Washington estava marcada para formalizar o acordo.

Mas poucos dias após sua chegada, Tel Aviv apresentou novas exigências – a principal delas, a criação de um corredor humanitário em direção à instável Suwayda, de maioria drusa.

A emissora israelense KAN logo noticiou o colapso das negociações, citando a mudança de postura de Tel Aviv, que passou a exigir um acordo de paz completo em troca de uma retirada apenas parcial do território sírio. Assim como em rodadas anteriores de negociações, Israel interrompeu o processo com uma combinação de demonstrações militares e condições maximalistas.

Foi nesse clima de diplomacia fracassada que Moscou, antigo aliado de Damasco, fez sua jogada.

Reentrada da Rússia: Dissuasão ou ilusão?

Em 17 de novembro de 2025, uma delegação russa de alto nível realizou uma visita não anunciada a nove instalações militares ao longo da linha de desengajamento de 1974 na província de Quneitra, na Síria – antigos postos avançados russos desocupados meses antes sob pressão.

A delegação, composta por altos oficiais russos e um comitê do Ministério da Defesa sírio, inspecionou diversas posições, incluindo o mirante de Tulul al-Hamr, de importância estratégica vital, próximo à linha de cessar-fogo.

Fontes indicam que Moscou planeja reativar os nove postos em Quneitra e Deraa e já estabeleceu um centro logístico permanente em Quneitra para avaliar as necessidades de engenharia, infraestrutura e cadeia de suprimentos antes de uma possível redistribuição.

A escolha do momento não foi acidental: Damasco interpretou a medida como uma tentativa de estabilizar o sul do país, enquanto Tel Aviv a considerou um desafio direto. O primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, respondeu com uma visita de alto nível à frente de batalha na Síria. O jornal Yedioth Ahronoth descreveu a ação como uma mensagem para três públicos: Damasco, Washington e Ancara.

Durante uma reunião de gabinete, Netanyahu teria dito: “Julani voltou de Washington cheio de si. Ele está começando a fazer todo tipo de coisa que não vamos aceitar”, usando o nome de guerra de Sharaa, Abu Mohammad al-Julani, da época em que ele era chefe da Al-Qaeda. Ele também acrescentou que Sharaa “quer trazer forças russas para a fronteira”.

O ministro da Defesa, Israel Katz, apoiou a posição de Netanyahu, dizendo em tom sarcástico: "Ele voltou cheirando a perfume", em referência ao encontro de Sharaa com o presidente dos EUA, Donald Trump, no Salão Oval.

Os comentários surgiram após uma conversa telefônica entre Netanyahu e o presidente russo Vladimir Putin. O subtexto era que Israel não permitiria que a Rússia se restabelecesse ao longo de sua fronteira ocupada.

Um ato de equilíbrio por procuração

Aziz Moussa, pesquisador em segurança internacional, disse ao The Cradle que a preocupação de Israel é menos com Moscou do que com Ancara. Ele observa que a Rússia serve como uma zona de amortecimento e que sua presença visa "equilibrar a influência turca" sem obstruir seriamente as operações israelenses.

Ele afirma que a coordenação técnica entre Ancara e Damasco – particularmente as cadeias de suprimentos para bases no centro da Síria – gerou inquietação em Tel Aviv. Em resposta, Israel está reforçando sua postura regional para limitar tanto a influência turca quanto quaisquer resquícios de influência iraniana.

Moussa explica ainda que o destacamento de forças russas cria uma barreira de segurança direta com Damasco, dando a Israel uma margem maior para ações militares e de inteligência, e ajudando a "congelar o status quo" ao manter o controle das posições conquistadas desde 8 de dezembro de 2024.

Moussa acrescenta que este acordo garante a liberdade de ação israelense contra certos alvos, restabelecendo assim o mecanismo de coordenação que existia com a Rússia na fase anterior.

Segundo ele, Tel Aviv vê o envolvimento russo como uma ferramenta para preservar os ganhos militares atuais e atrasar quaisquer acordos vinculativos.

Turquia marginalizada, Israel assertivo

Os relatos de envolvimento turco na incursão russa no sul do país foram prontamente negados por fontes que falaram com o The Cradle. A Turquia não teve qualquer participação na operação – um fato que está em consonância com as firmes linhas vermelhas de Tel Aviv. Aviões israelenses bombardearam repetidamente posições sírias onde se especulava a presença de forças turcas, sinalizando a rejeição de qualquer presença militar turca na área.

Em contrapartida, Israel demonstra maior flexibilidade tática em relação a Moscou, desde que seus movimentos não perturbem as operações israelenses.

O jornalista Firas al-Mardini, radicado na Rússia, disse ao The Cradle que Moscou "tem o desejo ou a capacidade de mobilizar forças no sul, como acontecia durante o regime anterior", observando que o possível papel russo pode se limitar a "pontos de observação estabelecidos em acordo com o lado turco", visto que Ancara "hoje desempenha o papel mais importante na política síria, especialmente em assuntos militares".

Ele explica que qualquer presença russa na região sul "deve ser feita em plena coordenação com a Turquia", antes de levantar uma questão sobre o propósito real do destacamento de tais forças ali.

“A Rússia não tem interesse em dar esse passo”, afirma Mardini, observando que sua entrada anterior no sul ocorreu “dentro da estrutura do processo de Astana e das zonas de desescalada”, enquanto a situação é diferente hoje, já que a Rússia não pode “desempenhar o papel de força de separação confiado apenas às Nações Unidas”.

Ele acrescenta que Israel “não aceitará a presença de forças russas na região”, pois esta se tornou um “ponto estratégico” e busca impor controle sobre ela “por uma série de razões”.

“Israel não concordará com a presença de quaisquer forças, sejam turcas ou russas, no sul. Tudo o que foi anunciado sobre o destacamento de forças russas não foi divulgado por nenhuma entidade oficial russa, mas apenas por meio de informações publicadas na mídia.”

Damasco aposta em um destacamento russo limitado

Apesar de suas limitações, Damasco vê utilidade no envolvimento russo. Uma fonte síria de alto escalão disse ao The Cradle que o objetivo é usar Moscou como uma zona de amortecimento para conter as incursões israelenses, e que essa medida se dá no contexto de acordos vinculados ao pacto de segurança. Segundo a fonte, a visita russa ocorreu após entendimentos preliminares, mas é Israel que continua bloqueando o progresso.

Em declarações também ao The Cradle, o analista Ahmed al-Masalmeh afirma esperar apenas destacamentos leves, observando que o máximo que pode acontecer é "o estabelecimento de alguns pontos que incluam elementos da polícia militar russa", desde que seu papel se limite apenas ao monitoramento, "sem realizar quaisquer operações de dissuasão ou impedir movimentos israelenses caso ocorram".

Masalmeh afirma que Damasco "gostaria de qualquer medida que limitasse ou contivesse as incursões israelenses", considerando que o governo sírio "acolhe com satisfação qualquer medida que alivie as provocações israelenses em curso".

A Síria está tentando limitar as provocações por todos os meios disponíveis, acrescenta ele. Ainda assim, admite que é improvável que Israel altere sua estratégia. As incursões fazem parte da campanha de pressão de Tel Aviv, e bandeiras russas em postos avançados não as impedirão.

Ele argumenta que Israel “não busca apenas um acordo de segurança, mas também a normalização completa das relações com Damasco”, apesar do impasse nas negociações entre os dois lados. O único caminho a seguir, afirma Masalmeh, é uma via coordenada envolvendo Síria, Rússia, Turquia e Israel.

Damasco também aposta em dar a Moscou um papel maior no sul em troca da tranquilidade na região costeira. Mas essa abordagem já se mostrou limitada, visto que Moscou se retirou do sul em um estágio anterior, deixando a área aberta à expansão israelense.

Guarda-chuva oco da Rússia

Antes de sua retirada no final de 2024, Moscou se apresentava como o estabilizador do sul da Síria. O enviado russo Alexander Lavrentyev alertou em entrevistas à imprensa sobre uma possível invasão israelense e insinuou que a Rússia reagiria negativamente.

Mas os eventos subsequentes provaram que essa narrativa não se concretizou: a própria Rússia retirou-se antes da queda do governo de Assad e deixou o sul intocado, enquanto Israel continuou suas operações com indiferença. A recente visita russa, novamente apresentada como dissuasão, repete um roteiro antigo.

Em outras palavras, o que foi dito antes da queda sobre um "guarda-chuva dissuasor russo" não se concretizou.

O governo sírio aposta que uma presença russa visível pode influenciar as negociações. Mas essa aposta depende da aprovação de Tel Aviv, da disposição de Moscou em dialogar, da aquiescência de Ancara e da direção de Washington.

Sem um acordo entre esses quatro, o sul da Síria permanece em um limbo, com seu futuro ditado mais por atores externos do que por qualquer decisão tomada em Damasco.

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