O cenário geopolítico recente mostra que a UE se tornou, simultaneamente, protagonista e vítima de um mundo marcado por rivalidades crescentes
Alexandre Favaro Lucchesi
A União Europeia (UE) chega ao fim de 2025 atravessando sua fase mais crítica desde a crise das dívidas soberanas. O continente vive uma confluência de tensões que ultrapassa o âmbito econômico e alcança o coração do seu projeto histórico, da promessa de uma integração capaz de superar a lógica concorrencial entre Estados nacionais e construir uma ordem democrática, solidária e socialmente protetora. Entretanto, sob o peso de crises sobrepostas – geopolítica, financeira, energética e produtiva – a UE revela que consolidou apenas parcialmente essa ambição. Para o observador latino-americano, especialmente aquele atento aos limites das políticas neoliberais e às contradições entre integração regional e soberania democrática, a experiência europeia oferece lições incontornáveis.
O cenário geopolítico recente mostra que a UE se tornou, simultaneamente, protagonista e vítima de um mundo marcado por rivalidades crescentes. A guerra na Ucrânia, a disrupção energética e a escalada de sanções reforçaram a dependência europeia de estruturas externas de segurança e de energia, ao mesmo tempo em que expuseram sua vulnerabilidade financeira diante de choques globais. Relatórios do Parlamento Europeu são explícitos ao reconhecer que riscos geopolíticos tornaram-se determinantes da estabilidade macroeconômica continental. No limite, aquilo que antes era percebido como “risco externo” é agora parte integrante da Europa.
A instabilidade geopolítica, contudo, apenas ilumina fissuras profundas na arquitetura da integração econômica europeia, construída sobre uma contradição estrutural. A zona do euro, inaugurada em 1999, representou um avanço histórico inegável na coordenação monetária. Porém, sob o manto da moeda única manteve-se uma realidade politicamente assimétrica. Os Estados renunciaram à política cambial e monetária, pilares clássicos da soberania, sem consenso quanto às correspondentes autoridades fiscal, bancária e social europeias. Ao passo que a integração financeira avançou, a UE consolidou um regime de disciplina macroeconômica que reforçou desigualdades entre “centro” e “periferia”.
Essa assimetria tornou-se evidente na última década. A Alemanha e os países superavitários beneficiaram-se de um euro estruturalmente subvalorizado para sua competitividade, enquanto os países mediterrâneos e periféricos viram-se submetidos a apertos fiscais, desemprego elevado e dependência financeira de capitais externos. O regime ordoliberal[1] inscrito em Maastricht e no Pacto de Estabilidade consolidou tanto as regras como a filosofia política da estabilidade segundo a visão alemã, alcançada pela disciplina, e a disciplina pela austeridade. A crise de 2010-2015 mostrou o custo humano dessa escolha pela queda de salários, pelo desmantelamento de serviços públicos, pela destruição de capacidade industrial e a perda de autonomia decisória.
No campo financeiro, em que se concentra uma das contradições centrais da Europa, a crise expôs a distância entre o discurso de integração e a realidade institucional. Bancos e mercados de capitais tornaram-se profundamente transnacionais, mas sua supervisão permaneceu essencialmente nacional.
A União Bancária Europeia (UBE), concebida em 2012, pretendia resolver esse problema ao criar três pilares: 1) a Supervisão bancária única (Single Supervisory Mechanism); 2) o Mecanismo Europeu de Resolução de Crises (Single Resolution Mechanism); e 3) o Sistema comum de garantia de depósitos. O primeiro pilar avançou, mas os demais, não. Os Estados hesitam em partilhar riscos. Países fiscalmente mais fortes resistem ao seguro comum de depósitos por temer “transferências implícitas”, ao passo que países fragilizados receiam submeter-se a condicionalidades mais duras. O resultado é um sistema no qual os bancos, que operam além das fronteiras desde o fim de Bretton Woods, mas que, graças à moeda única, aprofundaram esse entrelaçamento[2], e estão sujeitos a crises brutais, ao ponto de fazer o Banco Central Europeu (BCE) adotar, após 2012, um programa de facilitação quantitativa semelhante ao estadunidense após a falência do Lehman Bros, em 2008. A integração bancária na Europa, pasme-se, necessita de um garantidor de última instância.
Após a formalização dos marcos institucionais iniciais da UBE em 2016, o processo de integração bancária na zona do euro entrou numa nova fase de tensão entre aspirações de mutualização de risco e retrocessos de soberania nacional. A crise desencadeada pela pandemia da Covid-19 obrigou BCE e as autoridades europeias de supervisão a recorrerem a mecanismos excepcionais de estímulos monetários ampliados, linhas de liquidez, tolerância a credores bancários e o reforço da regulação macroprudencial. Embora o setor bancário tenha emergido com níveis de capital e liquidez superiores aos do pré-crise, os “gaps” institucionais persistem, em particular, a ausência de seguro europeu de depósitos e o lento avanço da mutualização da resolução[3]. Grandes bancos ainda mantêm centenas de bilhões de euros de capital e liquidez “presas” em fronteiras nacionais, sinalizando que a desregulação financeira e a fragmentação estrutural se mantiveram apesar dos choques.
Nesse interstício institucional, a pandemia serviu como acelerador e teste de resistência. O BCE[4] publicou, em 2021, que os bancos tinham apertado padrões de concessão de crédito, o que demonstra que a integração financeira enfrentou contingências domésticas ainda fortes. Assim, nesse “avanço fragmentário” da zona do euro, progrediu-se na supervisão e em liquidez, mas se falhou em consolidar os mecanismos comuns de solidariedade financeira exigidos para que a UBE assuma plenamente o seu papel de amortecedor conjunto de choques.
Essa tensão ficou evidente no episódio mais recente que sacudiu o setor bancário europeu, com a tentativa de consolidação entre UniCredit (Itália) e Commerzbank (Alemanha) em 2024. Ao elevar sua participação a quase 30% com autorização do BCE, a UniCredit ensaiou uma fusão transfronteiriça capaz de inaugurar, enfim, o surgimento de “bancos realmente europeus”. A reação alemã, porém, foi reveladora de uma forte resistência, evocando riscos trabalhistas, de perda de soberania e de potencial instabilidade econômica na voz de sindicatos, do governo alemão e do próprio conselho de supervisão do Commerzbank. Este movimento societário tornou-se espelho das contradições do processo europeu, que deseja integração financeira, mas é avesso às suas consequências políticas.
A contradição ecoa de forma familiar na América Latina, onde as tentativas de integração (Mercosul, Unasul, Celac) também se confrontam com o dilema permanente entre autonomia e interdependência, entre solidariedade regional e interesses nacionais, entre projetos produtivos de longo prazo e restrições externas. A diferença é que, na Europa, a moeda única torna tais dilemas muito mais dramáticos. Sem política cambial, sem soberania monetária e sem um orçamento continental capaz de coordenar investimentos e redistribuir renda, a integração tende a operar como mecanismo de disciplinamento, e não de coesão.
A crítica de economistas heterodoxos pós-keynesianos como Hyman Minsky e Jan Toporowski e, na América Latina, de autores ligados ao estruturalismo, à teoria da dependência e ao novo-desenvolvimentismo torna-se ainda mais pertinente à luz da conjuntura atual. Minsky (1986) advertia que sistemas financeiros integrados sem amortecedores públicos amplificam riscos sistêmicos. Toporowski (2013) lembra que a zona do euro combina uma crise bancária transnacional com uma crise de balanço de pagamentos intra-europeia. A ausência de política fiscal comum transforma desequilíbrios comerciais em armas políticas permanentes e a Europa continua respondendo a essas contradições com instrumentos insuficientes, que ganham eficácia apenas temporária.
A compreensão do impasse europeu tem valor estratégico na atual conjuntura para países em desenvolvimento. Ele revela os limites de processos de integração fundados exclusivamente em regras de mercado, sem avanço simultâneo da coordenação macroeconômica e, principalmente, da proteção social, da industrialização regional e da soberania democrática compartilhada. Mostra, ainda, que disciplina fiscal sem instrumentos fiscais comuns aprofunda desigualdades territoriais e legitima assimetrias econômicas. E lembra que as instituições monetárias, por mais independentes e sofisticadas que sejam, não substituem o papel do Estado no planejamento, na coordenação e na estabilização da economia.
A reconstrução do projeto europeu dependerá, inevitavelmente, de escolhas políticas profundas, sendo a primordial concluir a UBE. Projetos mais ambiciosos incluem criar um seguro comum de depósitos, flexibilizar o Pacto de Estabilidade, instituir transferências fiscais anticíclicas, financiar infraestrutura verde e retomar a lógica de desenvolvimento coeso. São medidas que exigem superar o ordoliberalismo que moldou a UE desde os anos 1990 e que, não por acaso, dialogam com debates latino-americanos sobre Estado, planejamento, autonomia financeira e industrialização.
Por fim, da perspectiva do processo de integração latino-americano, em que se busca compreender as raízes históricas e institucionais desse impasse, a primeira fase da integração financeira europeia[5], que se estende da implementação do euro em 1999 até o lançamento do Mecanismo Único de Resolução da UBE em 2016, permitindo compreender como as escolhas daquela etapa moldaram o terreno onde se travam, hoje, as principais disputas geopolíticas e financeiras do continente. Trata-se, assim, de um período fundamental para interpretar criticamente o presente europeu, e para pensar, com mais profundidade, os caminhos possíveis da integração latino-americana.
Alexandre Favaro Lucchesi é economista e doutor em Economia pelo Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), fez mestrado no Programa de Economia Política da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Atualmente, é professor visitante no Bacharelado de Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC (UFABC), onde participa do Grupo de Estudos da América Latina Contemporânea (GEALC) e coordena o Grupo de Trabalho de América Latina no Observatório de Política Externa Brasileira (OPEB). Tem experiência no universo acadêmico e corporativo, que se destaca por sua visão analítica combinada a uma formação humanista. Recebeu menção honrosa no XXX Prêmio Brasil de Economia em 2024, na categoria livro, por sua obra sobre a integração financeira e a regulação bancária na zona do euro. Possui interesse especial em expandir o ensino da economia para a inclusão social, direcionando seus esforços para cursos técnicos e profissionalizantes no setor público, planejamento estratégico, economia solidária e políticas públicas. Contato: alfa.lucc@gmail.comReferênciasAFME – Association for Financial Markets in Europe. Banking Union: measuring progress and identifying implementation gaps. London, Sep.2025. Disponível em: <https://www.afme.eu/media/ntlodudx/afme-banking-union-report-september-25.pdf> Acesso em: 15 nov.2025BELLUZZO, Luiz Gonzaga M. Os antecedentes da tormenta: origens da crise global. São Paulo: UNESP; Campinas: Facamp, 2009.BRAGA, José Carlos. Temporalidade da Riqueza: teoria da dinâmica e financeirização do capitalismo. Campinas, IE – UNICAMP, 2000.DULLIEN; Sebastian; GUEROT, Ulrike. The long shadow of ordoliberalism: Germany’s approach to the euro crisis. European Council On Foreign Relations, 49, February, 2012. Disponível em: <https://ecfr.eu/wp-content/uploads/ECFR49_GERMANY_BRIEF.pdf> Acesso em: 15 nov.2025ENRIA, Andrea. The post-pandemic outlook in the banking union. Presentation, European Central Bank, Frankfurt, Jul 7th, 2021. Disponível em: <https://www.bankingsupervision.europa.eu/press/speeches/date/2021/html/ssm.sp210707~3e6cca4069.en.pdf> Acesso em: 15 nov.2025LUCCHESI, Alexandre Favaro. Integração financeira e regulação bancária na zona do euro entre 1999 e 2016. São Paulo: Dialética, 2024.MINSKY, Hyman P. Stabilizing an unstable economy. New Haven: Yale University Press, 1986. Caps. 8, 9 e 10.TOPOROWSKI, Jan. International credit, financial integration and the euro. Cambridge Journal of Economics, 37, 571-584, 2013. DOI: 10.1093/cje/bet008.[1] As características do neoliberalismo têm particular ordenamento às diretrizes estatais na institucionalidade alemã (DULLIEN, GUEROT, 2012).[2] De acordo com a interpretação de que a lógica econômica dominante desde os anos 1970, após o final do acordo de Bretton Woods, é a da esfera financeira, entende-se que, na Europa, o euro, após sua implantação em 1999, estabeleceu-se como nova referência para a riqueza financeira em seguida ao dólar (BRAGA, 2000; BELLUZZO, 2009).[3] Cf. AFME (2025).[4] Cf. Enria (2021).[5] A obra de Lucchesi (2024) baseia-se na tese de doutorado do mesmo autor, defendida no IE/Unicamp em 2017 sob orientação da pesquisadora Simone Silva de Deos, que, em seu prefácio, relembra as consequências da interpretação pós-keynesiana do papel da moeda no complexo caso europeu.
Chave: 61993185299
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