Pequim está fazendo uma investida ousada para moldar a forma como o mundo pensa sobre guerra, paz e poder nas próximas décadas.
O recém-publicado Livro Branco da China sobre controle de armas, desarmamento e não proliferação surge em um momento de profunda transformação estratégica. O documento não se apresenta apenas como uma atualização técnica de políticas, mas como um gesto político – uma tentativa de moldar a ordem mundial emergente em um momento em que a multipolaridade deixou de ser teórica e a rivalidade entre EUA e China define cada vez mais o cenário global. Embora redigido em termos de cooperação e estabilidade, o Livro Branco é inegavelmente estratégico: a China está estabelecendo seus próprios princípios para o que o controle de armas do século XXI deve ser, buscando tanto justificar sua trajetória atual quanto moldar as expectativas internacionais futuras.
O que mais chama a atenção não é um anúncio específico, mas a estrutura geral do documento. Ele mescla temas nucleares tradicionais com uma visão abrangente de segurança que engloba o espaço sideral, o ciberespaço, a inteligência artificial e os mecanismos tecnológicos essenciais para futuros conflitos. O documento lança dúvidas sobre as alianças militares dos EUA, questiona a equidade das atuais exigências de controle de armamentos e vincula a própria abordagem da China a uma agenda mais ampla de governança global.
Durante anos, Washington pressionou Pequim para que se juntasse às negociações trilaterais de controle de armas com os EUA e a Rússia, argumentando que as crescentes capacidades da China desestabilizariam os equilíbrios estratégicos, a menos que fossem submetidas a alguma forma de restrição verificável. O presidente dos EUA, Donald Trump, fez disso uma exigência emblemática, insistindo que os futuros acordos nucleares estariam incompletos sem a presença da China. Pequim rejeitou a ideia de imediato, classificando-a como “injusta, irracional e impraticável”. Esse refrão ressoa inequivocamente no novo livro branco.
O documento reformula sistematicamente os motivos pelos quais a China acredita não dever ser tratada como concorrente em pé de igualdade com as duas maiores potências nucleares do mundo. Ele enfatiza a “dissuasão mínima”, a “não-primeiro-uso” e a “máxima contenção” no tamanho do arsenal – posições que a China defende há décadas, mas que agora utiliza com renovado vigor. Ao inserir esses pontos em uma narrativa ampla sobre justiça e equidade, Pequim tenta alterar a base diplomática. A mensagem é clara: a China não será coagida a participar de negociações estruturadas em torno das premissas ou preferências de seus rivais.
Ao mesmo tempo, o documento adota um tom que quase chega a mencionar os EUA diretamente. Em vez disso, alerta contra a expansão dos arsenais de "certos países" , o posicionamento avançado de mísseis, o fortalecimento de alianças e a alteração de suas doutrinas nucleares de maneiras desestabilizadoras. Essa tática preserva a possibilidade de negação diplomática, ao mesmo tempo que deixa poucas dúvidas sobre o público-alvo. Também garante consistência narrativa à China: reivindicar a superioridade moral enquanto pinta os EUA como a fonte da instabilidade.
Implícita na linguagem do documento está uma crescente frustração com a parceria de segurança entre os EUA e o Japão. Referências à expansão das tropas na região Ásia-Pacífico, ao fortalecimento das alianças regionais e aos ajustes nas posturas nucleares apontam para a evolução da agenda EUA-Japão. À medida que Washington e Tóquio aprofundam a cooperação em defesa antimíssil, integram capacidades de ataque mais avançadas e se alinham mais estreitamente em matéria de dissuasão, Pequim enxerga um cerco em vez de estabilidade.
Para uma audiência global, a estratégia da China serve a dois propósitos. Primeiro, utiliza a história – invocando sutilmente o 80º aniversário do fim da Segunda Guerra Mundial e da agressão japonesa – para se posicionar como guardiã da paz arduamente conquistada e da ordem pós-guerra. Segundo, caracteriza a cooperação de defesa entre EUA e Japão como um motor de insegurança. Essa estratégia retórica não se dirige a Washington ou Tóquio, que a rejeitarão, mas sim à comunidade internacional em geral, que a China espera persuadir de que a segurança na região Ásia-Pacífico não deve ser moldada exclusivamente por alianças com os EUA.
A seção nuclear da China é cuidadosamente calibrada. Ela reitera posições há muito conhecidas pelos especialistas em controle de armas – não ser o primeiro a usar armas nucleares, não ser implantado no exterior e possuir as capacidades mínimas necessárias. Trata-se de uma continuidade, mas uma continuidade com um propósito: o documento utiliza esses pontos como moeda de troca diplomática.
Ao enfatizar a previsibilidade e a estabilidade, Pequim transmite confiabilidade a um mundo apreensivo com a política de risco nuclear. Isso tem uma segunda função, mais tática: reforça a alegação da China de que ainda não deve ser colocada no mesmo patamar que os EUA e a Rússia, cujos arsenais muito maiores justificam suas responsabilidades especiais em matéria de desarmamento. Em essência, a China argumenta que a desigualdade estratégica continua sendo uma realidade da vida internacional – e que o controle de armas deve refletir isso.
Há, naturalmente, outra camada nesse argumento. A China está fortalecendo suas forças nucleares, expandindo seus silos de mísseis e desenvolvendo novos sistemas de lançamento. Chamar sua postura de "dissuasão mínima" pode em breve soar pouco convincente. Mas o objetivo de Pequim aqui não é a transparência quantitativa; é a proteção narrativa. Ao afirmar que seu arsenal permanece baseado na moderação, a China visa desviar preventivamente as críticas enquanto continua sua modernização.
O ponto em que o livro branco se torna verdadeiramente inovador – e politicamente relevante – é na sua abordagem do espaço exterior, do ciberespaço e da inteligência artificial. Estas não são meras questões adicionais; elas constituem o núcleo ideológico da visão de segurança da China voltada para o futuro.
Pequim posiciona esses domínios como as linhas de frente emergentes da competição estratégica e argumenta que eles exigem governança urgente. Isso se alinha estreitamente com a posição da China em outros fóruns internacionais: pressionar por normas centradas na ONU que restrinjam os usos militares dessas tecnologias, ao mesmo tempo que enfatizam o desenvolvimento pacífico.
As motivações vão além do altruísmo. A China está rapidamente ganhando terreno justamente nas tecnologias que definirão o poder futuro. Ao defender desde cedo estruturas de governança robustas, busca influenciar o processo de elaboração de regras antes que os EUA e seus aliados consolidem sua dominância.
Este é um dos sinais mais claros do artigo: a China pretende desempenhar um papel de liderança na definição das regras da guerra da próxima geração. Ela vê as tecnologias emergentes não apenas como ferramentas, mas como arenas onde o poder político é negociado.
Um dos temas mais significativos presentes no livro branco é a aspiração da China de se tornar não apenas uma participante na governança global, mas também uma força transformadora. O documento enfatiza repetidamente a justiça, a inclusão e o papel da ONU – uma linguagem direcionada aos países do Sul Global, que muitas vezes são excluídos da arquitetura de segurança concebida pelo Ocidente.
Ao se posicionar como defensora da "segurança indivisível", a China está cortejando o Sul Global, sugerindo que os regimes ocidentais de controle de armas privilegiam os fortes e restringem os fracos. A estratégia é clara: construir alianças normativas que fortaleçam a legitimidade de Pequim como formuladora de regras globais.
O novo livro branco da China não é um documento político passivo. É uma declaração estratégica: uma tentativa de reformular o controle de armas em termos que reflitam os interesses, as ambições e a visão de mundo da China. Ele contrapõe-se às expectativas dos EUA, desafia a segurança baseada em alianças, promove um modelo de governança centrado na ONU e reivindica espaço em domínios tecnológicos emergentes.
Se o mundo aceitará essa perspectiva é outra questão. Washington e Tóquio verão uma narrativa conveniente em vez de moderação. Muitos países em desenvolvimento poderão ver um parceiro resistindo à dominação ocidental. Enquanto isso, o resto do mundo se deparará com uma realidade crescente: o futuro do controle de armas não será mais negociado apenas em Washington e Moscou, mas em uma arena geopolítica mais ampla, onde a China está cada vez mais confiante, assertiva e pronta para liderar.

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