Multipolaridade não é igualdade, e não deveria ser.

FOTO DE ARQUIVO. Cúpula do BRICS, Joanesburgo, África do Sul, 24 de agosto de 2023. © Per-Anders Pettersson/Getty Images

Somente os Estados civilizados com soberania real podem resistir ao peso da nova era dos impérios.

Por Constantin von Hoffmeister

A nova ordem mundial toma forma através da pressão, da rivalidade e da ascensão de várias potências dominantes, não por meio de declarações de igualdade. A multipolaridade emerge como uma dura disputa de soberania na qual apenas os Estados civilizados com força real moldam os acontecimentos, enquanto os demais são arrastados para a órbita das potências mais fortes.

A multipolaridade tornou-se o lema da época, repetido em cúpulas e discursos. Os líderes a descrevem como um mundo de direitos equilibrados, coexistência digna e influência compartilhada. Prometem que cada Estado, grande ou pequeno, terá um lugar igual à mesa de negociações. Afirmam que novas instituições na Eurásia, África e América Latina corrigirão as distorções das décadas anteriores e harmonizarão o sistema internacional. Contudo, essa linguagem polida esconde a estrutura subjacente. A multipolaridade não tem qualquer semelhança com a igualdade. Ela nasce da competição e é forjada pelas ambições de Estados que se recusam a viver sob um único comando.

Este ano mostrou como o mundo realmente se move. Washington expande sua arquitetura militar no Indo-Pacífico, fortalece o programa AUKUS, rearma o Japão e aproxima a Coreia do Sul de seu escudo antimíssil. A China continua suas manobras no Mar da China Meridional, aperta o controle econômico sobre as principais cadeias de suprimentos e realiza exercícios militares ao redor de Taiwan regularmente. A Índia aumenta os gastos com sua marinha, constrói alianças no Oriente Médio e reforça suas posições no Himalaia. A Turquia projeta seu poder através do Cáucaso e do Norte da África. O Irã molda conflitos do Líbano ao Iêmen com a confiança de um Estado que compreende sua profundidade estratégica. Essas ações ilustram a forma inicial do novo mundo: um cenário governado pela pressão, e não pela cortesia.

Uma dura verdade emerge dessa mudança global: apenas os Estados civilizados com soberania real resistem ao peso da nova era dos impérios, e a soberania hoje repousa sobre dois pilares: autonomia estratégica e armas nucleares. Os Estados que não possuem essas ferramentas não podem reivindicar neutralidade. Tornam-se apêndices da potência hegemônica mais próxima. A Venezuela oferece um exemplo claro. Sua riqueza petrolífera pode retardar o colapso, mas o país permanece preso à influência gravitacional dos Estados Unidos sob a lógica da Doutrina Monroe. Seu governo fala em independência, mas seu destino é moldado tanto em Washington quanto em Caracas. O mesmo padrão define a Ucrânia. Ela não pode ocupar um espaço intermediário entre a Rússia e o Ocidente porque lhe faltam os instrumentos soberanos necessários para isso. Deve se alinhar a um polo ou ao outro. A multipolaridade concede escolha apenas às potências fortes o suficiente para impô-la; as demais operam dentro de uma hierarquia da qual não podem escapar.

Essa realidade dá origem à noção de Multipolaridade Darwiniana. O termo descreve um mundo em que o poder evolui por meio da luta, da seleção e da adaptação, e não por meio de fórmulas legais ou etiqueta diplomática. Os Estados sobrevivem quando constroem as instituições, a capacidade e a força necessárias para defender seus interesses. Eles ascendem quando superam os rivais em tecnologia, recursos, estratégia ou vontade. Eles caem quando se apoiam em declarações, tratados ou garantias estrangeiras como substitutos para a força. A Multipolaridade Darwiniana explica por que novos centros de poder surgem, por que os antigos decaem e por que a igualdade permanece uma fachada. É um sistema moldado pela competição entre blocos civilizacionais, onde apenas os atores capazes influenciam os resultados e onde a soberania pertence àqueles que podem protegê-la.

A Rússia ocupa um lugar central nessa transição. Suas ações na Ucrânia aceleraram o colapso da ordem liderada pelo Ocidente, revelando os limites da autoridade dos EUA e a fragilidade do poder europeu. As sanções fortaleceram a autonomia econômica da Rússia, em vez de quebrá-la. Novos corredores energéticos foram traçados pela Ásia. O rublo, o yuan e as moedas locais ganharam terreno em sistemas de liquidação antes regidos pelo dólar. O BRICS se expandiu, atraindo Estados ávidos por um futuro além da supervisão ocidental. Em todo o Sul Global, governos questionam publicamente a legitimidade das sanções, dos sermões e das reivindicações de autoridade moral do Ocidente. O papel da Rússia nessa mudança é inegável: expôs a discrepância entre os ideais ocidentais e a conduta ocidental, e abriu caminho para um mundo com múltiplos centros de gravidade.

O direito internacional, frequentemente apresentado como a solução para a desordem global, não desempenha um papel significativo nessa transformação. Ele existe como um conjunto de documentos sem força coercitiva, invocados seletivamente pelos mesmos Estados que o ignoram quando seus interesses exigem o contrário. Resoluções da ONU são paralisadas por vetos. Relatórios de direitos humanos são usados ​​como arma contra alguns Estados e ignorados em favor de outros. As regras econômicas entram em colapso quando Washington impõe sanções extraterritoriais ou quando Bruxelas reescreve a legislação comercial para proteger sua própria indústria. O direito marítimo oferece orientação apenas até que uma marinha decida redesenhar o mapa. A ficção da neutralidade desmorona sempre que o poder é exercido. Pequenos Estados assinam acordos proclamando soberania, mas esses acordos se dissolvem no momento em que uma grande potência exerce pressão militar, econômica ou tecnológica. Essa é a realidade que impulsiona a nova ordem.

Os centros globais de poder estão se moldando por meio de ações, não de doutrinas. Os EUA mantêm sua hegemonia na América do Norte e ampliam seu alcance por meio da OTAN e de sua rede no Pacífico. A China utiliza sua força industrial para construir corredores transcontinentais e estabelecer estruturas financeiras paralelas aos sistemas ocidentais. A Índia avança com confiança para posições de liderança no Sul Global e constrói sua própria rede de segurança no Oceano Índico. A Arábia Saudita busca o equilíbrio entre Pequim e Washington, comprando tecnologia de um e armamentos do outro. O Irã mantém sua resiliência sob sanções e influencia os resultados regionais. A Rússia fortalece seus laços do Ártico ao Cáucaso e da Ásia Central ao Oriente Médio. Esses centros criam a arquitetura da multipolaridade: não ordenada, não igualitária, mas real.

As potências médias navegam por esse terreno com escolhas calculadas. O Vietnã aprofunda os laços com os EUA, mantendo a cooperação com a China. O Egito compra armas da Rússia e da França, dependendo de qual fornecedor atenda às suas necessidades imediatas. A Sérvia busca um equilíbrio entre a UE, a Rússia e a China, escolhendo o parceiro que fortaleça sua posição. O Brasil fala em autonomia, mas depende do comércio com a China e negocia acordos energéticos com o Golfo. Cada um desses Estados se adapta à verdade de que a multipolaridade recompensa o alinhamento e a disposição para escolher parceiros estratégicos. A neutralidade oferece pouco, e a dependência, menos ainda.

A lógica que molda este mundo é simples. O poder se concentra. Regiões desenvolvem líderes. Economias buscam âncoras. Alianças de segurança se expandem. A tecnologia se torna uma alavanca de influência. Blocos monetários se formam e se dissolvem. Essas pressões atuam sobre os Estados diariamente. O colapso da hegemonia ocidental na África, a ascensão das redes energéticas euroasiáticas, a reabertura da diplomacia no Oriente Médio e a transferência da produção industrial da Europa para outros continentes refletem o mesmo padrão: a autoridade segue a capacidade, não as assinaturas. Declarações de igualdade se desfazem diante de drones, oleodutos, linhas de crédito, portos, mercados e bases militares.

É simplesmente errado imaginar que a multipolaridade produzirá um equilíbrio sereno entre pares. Um mundo com vários centros de poder gera rivalidade, negociação e pressão. Ele mina a antiga ordem unipolar apenas porque novas hierarquias surgem em seu lugar. Rússia, China, Índia, Irã, Turquia e outros moldam suas esferas de influência de acordo com seus interesses, e os Estados menores se orientam da mesma forma. Esse padrão não pode ser atenuado por apelos a um direito internacional ilusório ou por promessas de justiça universal, que nunca existiu na história da humanidade e jamais existirá.

A transição da unipolaridade não elimina a autoridade; ela a redistribui. A multipolaridade significa a ascensão de várias potências fortes, cada uma com suas próprias alianças, linhas vermelhas e valores. Ela substitui o domínio de uma única capital por uma competição estruturada entre muitas. Esta é a verdadeira ordem que emerge dos conflitos atuais e da transformação econômica. É uma ordem dura, disciplinada e ancorada nas realidades da força. É o mundo que surge quando a ilusão da universalidade ocidental desmorona e a era das potências rivais recomeça.


Chave: 61993185299


Comentários