Desde que Roma criou um aniversário para Jesus, a comemoração se espalhou pelos continentes, assumindo formas distintas, ora preservando elementos das culturas locais, ora simbolizando processos de sincretismo, a mistura entre tradições religiosas, rituais e imaginários distintos
Em se tratando da história como ciência, em contrário do que pensa o senso comum, os historiadores não estão preocupados em explicar os fenômenos atuais pelas suas origens; o historiador Marc Bloch chamava a isto de “ídolo das origens”, como se o momento inicial de algo contivesse, por si só, a chave definitiva do seu significado. Bloch criticou essa obsessão genealógica porque ela acaba por ignorar as transformações, permanências e usos posteriores que dão sentido histórico aos fenômenos, como ocorre, por exemplo, com o Natal, frequentemente explicado apenas a partir de suas origens, sem considerar os múltiplos significados históricos, religiosos e culturais que assumiu ao longo do tempo. Uma festa de aniversário para Jesus é uma criação bastante posterior aos escritos dos Evangelhos (Mateus, Marcos, Lucas e João), e, como parece cultural que a festa feita para as crianças é na verdade uma desculpa para os adultos se divertirem, os tais logo esqueceram o menino na manjedoura em troca de um bom velhinho barbudo e presenteador.
O ponto é: não existe qualquer indício a favor da data de 25 de dezembro como dia do nascimento de Jesus; aliás, o único texto bíblico que historiadores e teólogos apontam como possível indício de uma data, acaba por descreditar ainda mais o mês de dezembro: isto porque Maria, uma jovem de aproximadamente catorze anos, teria dado à luz num estábulo, tarde da noite, quando pastores cuidavam de ovelhas; em dezembro a região de Belém podia atingir até 0 ºC. É justamente a época em que pastores deveriam estar com ovelhas guardadas no estábulo, e não pastando. Jesus teria nascido, portanto, ou na primavera (março a maio) ou no verão (junho a setembro).
As evidências para além do mundo bíblico dos primeiros séculos são também escassas: não há referência a celebrações do nascimento nos escritos de autores cristãos como Irineu (séc. II) ou Tertuliano (séc. III). Orígenes de Alexandria (séc. III), inclusive, ironiza as comemorações romanas de aniversários, classificando-as como práticas pagãs, o que parece desmentir que celebrações assim existissem nos primórdios do cristianismo. Por fim, a citação mais antiga do natalício do menino Jesus está num almanaque romano, datado do século IV, que compila as datas de falecimento de bispos e outros personagens importantes; a primeira listada, 25 de dezembro, está marcada como: natus Christus in Betleem Judeae[1]: «Cristo nasceu em Belém da Judeia». A fixação do Natal no último mês do ano não pertence aos primórdios do cristianismo. A primeira comemoração oficial nessa data é registrada em 336, na cidade de Roma, sendo posteriormente oficializada durante o pontificado do papa Júlio I (337-352).
O termo Natal é originário do latim nātālis, que tem sentido de “nascimento”. A partir desse vocábulo latino formaram-se diferentes variações nas línguas modernas, como natale no italiano, noël no francês ou navidad no espanhol. Já nas línguas anglo-saxônicas utiliza-se a palavra Christmas, proveniente do inglês antigo Christes maesse, expressão que, ao longo do tempo, deu origem a Christ’s mass, isto é, “a missa dedicada a Cristo”. O interessante é que um dia para comemorar o nascimento de Cristo foi tão bem aceito que, mesmo o cristianismo do oriente, aos poucos, foi sendo favorável à data: Constantinopla e Capadócia em 380, Antioquia em 386 e Jerusalém em 439, próximo ao início da Idade Média.
Um sermão escrito para o Natal do ano 460, pelo papa Leão I, acabou por dar uma grande pista acerca da preocupação da igreja cristã em estabelecer a data oficial no coração de Roma. Neste sermão, o pontífice ao se referir à festa do Sol Invictus (homenagens ao deus Sol), preocupava-se com os fiéis nos dizeres: “[…] é tão estimada essa religião do Sol que alguns cristãos antes de entrarem na Basílica de São Pedro, depois de subirem a escada, se voltam para o Sol e se inclinam em homenagem à estrela brilhante.”[2]. Bem, os Evangelhos já associavam Jesus como “a luz do mundo” (João 8,32), e mesmo os escritos dos antigos profetas, ao falar de seu nascimento, apontavam: “o povo que andava nas trevas viu uma grande luz…” (Isaías 9,2). Não foi difícil que logo os teólogos substituíssem a divindade Sol em favor do Sol divino, Jesus Cristo.
Velho continente, novo mundo
Desde que Roma criou um aniversário para Jesus, a comemoração se espalhou pelos continentes, assumindo formas distintas, ora preservando elementos das culturas locais, ora simbolizando processos de sincretismo, a mistura entre tradições religiosas, rituais e imaginários distintos. Não por acaso, a imagem de Cristo que se difundiu como arte é a de um homem branco, de traços europeus, apesar de se referir a um homem nascido no Oriente Médio. Obras como Salvator Mundi e A Última Ceia, ambas de Leonardo da Vinci por volta de 1500, que representam um Cristo de origem oriental, pintado no coração da Europa renascentista.
No chamado “Novo Mundo”, termo utilizado nas primeiras navegações às Américas, a difusão do Natal não seria diferente, sobretudo por estar acompanhada de um processo de colonização que levou consigo o calendário europeu. Para o sociólogo peruano Aníbal Quíjano, esse movimento fez parte de um padrão de poder mundial, no qual a Europa concentrou sob sua hegemonia não apenas o domínio político e econômico, mas também o controle das formas de subjetividade e de cultura.
Com o tempo, os países latino-americanos passaram a moldar a celebração às suas próprias realidades. Apesar dos elementos festivos associados ao inverno europeu, como o pinheiro e as guirlandas, que contrastam com países tropicais como o Brasil, onde dezembro é verão, cada país passou a incorporar variações próprias à celebração, como com música, culinária, rituais religiosos e formas de confraternização. Na mesa brasileira, por exemplo, a farofa, de origem indígena, é praticamente indispensável na ceia. Enquanto na Argentina a Nochebuena reúne famílias no dia 24, na Colômbia a Novena de Aguinaldos começa dias antes do Natal e o Uruguai, desde 1919, não associa o dia ao nascimento de Jesus e oficializou a data como Dia da Família.
Com tantas transformações ao longo dos séculos, o Natal passou a ser atravessado por outra lógica: a do consumo. Por quase toda parte, com as ruas movimentadas, o que se vê são campanhas publicitárias e a figura do Papai Noel ocupando o centro do imaginário natalino, um comportamento semelhante ao que acontece com a Páscoa e os chocolates. O filósofo francês Gilles Lipovetsky descreve esses fenômenos comerciais como parte de uma nova fase do capitalismo, chamada hiperconsumo, na qual o cidadão busca satisfações emocionais imediatas. Esse fenômeno se infiltra nas relações com o consumidor, na família, no trabalho e, claro, na religião.
Se a comemoração religiosa se torna um exemplo de como o capitalismo moderno absorve, neutraliza e mercantiliza tradições religiosas e culturais, inclusive em contextos colonizados, recordar a origem histórica de Jesus desloca essa lógica quando o consumo e a troca de presentes se sobrepõem ao sentido da data: o nascimento de um judeu fora do centro do poder romano, sem posses, cercado por pescadores, doentes e pobres.
Elisama Reis é jornalista, especialista em Mídia, Cultura e Informação pela Universidade de São Paulo, mestranda em História da América Latina.
Vinicius Santos é historiador pela Universidade Federal da Bahia, especialista em Teologia pelo ITFAD, mestrando em História pela UFBA.
[1] The Chronography of 354 AD. Part 6: the calendar of Philocalus. Inscriptiones Latinae Antiquissimae, Berlin (1893) pp. 256-278.
[2] ROLL, Susan K. Towards the Origins of Christmas. Kok Pharos Publishing House, 1995.
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