O imperialismo será inevitavelmente derrotado: o ressurgimento do espírito tricontinental.

Fontes: Tricontinental [Foto: Capa criada pelo Instituto Tricontinental de Pesquisa Social]

Sessenta anos após a Conferência Tricontinental, seu espírito continua a nos convidar a radicalizar e democratizar nossas lutas pela dignidade humana e emancipação coletiva.

Este dossiê apresenta uma seleção de cartazes da Organização de Solidariedade com os Povos da Ásia, África e América Latina (OSPAAAL), criados na Conferência Tricontinental de 1966, em Havana, Cuba. Nas décadas seguintes, a OSPAAAL produziu mais de 300 cartazes, que foram incluídos dobrados nas páginas de sua revista, Tricontinental , e enviados ao redor do mundo com uma mensagem de internacionalismo. Convidamos você a ler mais sobre os cartazes da OSPAAAL e seu papel na batalha de ideias no dossiê nº 15, "A Arte da Revolução Será Internacionalista ".


Lázaro Abreu Padrón (OSPAAAL), Sexto Aniversário da Conferência Tricontinental , 1972. Cortesia do The Radical Media Archive.

Em 1966, a Primeira Conferência de Solidariedade dos Povos da África, Ásia e América Latina, popularmente conhecida como Conferência Tricontinental, ocorreu em Havana, Cuba. Este encontro, realizado há 60 anos, dá nome ao nosso instituto. Para comemorar a conferência e seu legado, dedicamos o dossiê nº 95 a uma avaliação do espírito tricontinental. Esse espírito não se manifesta da mesma forma que em 1966, pois a questão da libertação nacional pela luta armada não é o foco central de nossa época (embora certas lutas de libertação nacional em nossa era sejam recebidas com repressão armada). No entanto, não nos preocupamos com a forma, mas com a substância do espírito tricontinental. Enquanto a essência do espírito de Bandung era a insistência nos ideais de soberania e multilateralismo, neste dossiê defendemos que sua essência se constrói em torno dos ideais de dignidade humana e da luta de classes (Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, 2025). O espírito de Bandung e o espírito tricontinental não eram contraditórios em 1966, visto que Cuba, que sediou a Conferência Tricontinental, também foi membro fundador do Movimento dos Países Não Alinhados (MNA) em 1961. O MNA, que Cuba sediou em 1979 e novamente em 2006, foi a personificação institucional do espírito de Bandung. Hoje, soberania, multilateralismo, dignidade e luta de classes moldam a política de grande parte do Sul Global, unindo esses dois espíritos em um novo zeitgeist.

Quão jovens eles eram.

Quando Fidel Castro, primeiro-ministro de Cuba e primeiro-secretário do Partido Comunista de Cuba, subiu ao palco no último dia da Conferência Tricontinental, em 15 de janeiro de 1966, ele tinha apenas 39 anos. A Revolução Cubana, que ele liderou à vitória em 1959, quando tinha 32 anos, acabara de comemorar seu sétimo aniversário. Seus camaradas, que entraram em Havana após dois anos na Serra Maestra, eram igualmente jovens, incluindo Camilo Cienfuegos (26), Che Guevara (30), Juan Almeida Bosque (31), Asela de los Santos Tamayo (37) e Celia Sánchez (38). Em 1966, Castro já possuía uma gravidade que se evidenciava na profundidade de sua voz e na postura serena. Ele e seus camaradas haviam liderado a Revolução Cubana à vitória sobre os Estados Unidos e sua Agência Central de Inteligência (CIA) na Invasão da Baía dos Porcos, em 1961, e Castro havia frustrado pessoalmente inúmeras tentativas de assassinato. “O imperialismo será inevitavelmente derrotado”, disse ele aos mais de 500 delegados vindos de toda a Ásia, África e América Latina (De los Santos, no prelo). Ninguém na sala duvidava disso.

Muitos dos que participaram da Conferência Tricontinental eram tão jovens quanto Fidel. Entre eles estavam Alice Badiangana (27), da União da Juventude Congolesa (UCJ) e da União das Mulheres Africanas do Congo (URFC), e Mário Pinto de Andrade (38), do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA). Amílcar Cabral, do Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), tinha 41 anos, e Eduardo Mondlane, da Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO), 45 (Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, 2022). Esses jovens estavam na vanguarda das organizações juvenis que foram forçadas à luta armada pela brutalidade do imperialismo português na África. Eles tentaram a via civil, exigindo maiores direitos tanto em Portugal quanto na África, apenas para serem recebidos com balas de 8mm da Mauser 98k. Foi por isso que deixaram de lado seus livros de direito e empunharam AK-47s, que lhes haviam sido enviados pela União Soviética e pela República Popular da China. O imperialismo era intolerável para esses jovens. Eles concordavam com a avaliação de Castro de que o imperialismo seria inevitavelmente derrotado.

No Vietnã, a idade média em meados da década de 1960 era entre 18 e 20 anos, resultado das baixas sofridas durante a guerra revolucionária contra um inimigo implacável (os franceses a partir de 1946 e, posteriormente, os Estados Unidos e seus aliados a partir de 1955). Em 1966, o país havia perdido pelo menos 1,5 milhão de pessoas para a violência, cerca de 6% da população (Hirschman, Preston e Vu, 1995). Os representantes vietnamitas que chegaram a Havana também eram jovens, como Nguyen Van Tien, da Frente Nacional de Libertação do Vietnã do Sul (também conhecida como Viet Cong), embora seu pseudônimo impossibilite determinar sua idade exata, e Tran Danh Tuyen, da República Democrática do Vietnã, que tinha menos de 40 anos. A energia juvenil na conferência era palpável .

Suficiente!

Mehdi Ben Barka, da União Nacional das Forças Populares (UNFP) de Marrocos, então com mais de quarenta anos, passou mais de dois anos planejando a Conferência Tricontinental. Em 30 de setembro de 1965, em uma coletiva de imprensa em Havana, durante os estágios iniciais de preparação, ele definiu a Tricontinental como o encontro das duas correntes da revolução mundial: a corrente da revolução socialista e a da libertação nacional (Prensa Latina, 1965).¹ Essa foi uma avaliação precisa da política da Conferência Tricontinental e do que aterrorizou o bloco imperialista.

Mas a história não segue uma linha reta. Ela tem suas reviravoltas. Em 29 de outubro de 1965, Ben Barka "desapareceu" por forças obscuras em Paris (muito provavelmente os serviços de inteligência franceses e marroquinos com a ajuda do Mossad israelense). Muitos outros que compareceram sofreram o mesmo destino: Mondlane foi assassinado em 1969 e Cabral em 1973.

Nos anos que se seguiram à conferência, surgiram mais oportunidades para a libertação nacional, mas os estados recém-independentes estavam enfraquecidos por séculos de domínio colonial e pela drenagem de sua riqueza social. Em fevereiro de 1966, apenas algumas semanas após a conferência, os serviços de inteligência ocidentais incitaram o exército ganês a derrubar Kwame Nkrumah, cujo livro Neocolonialismo: A Última Etapa do Imperialismo  (1965) expôs claramente a estrutura que continuava a frustrar as ambições articuladas em Havana em 1966 (2009). A Conferência Tricontinental lançou um farol para o mundo ver: “Estamos aqui, aqueles que vocês colonizaram. Lutaremos até que nossa emancipação esteja completa, e essa luta levará o socialismo ao mundo”. Como Fidel Castro declarou em sua Segunda Declaração de Havana (1962): “Esta grande humanidade disse ‘Basta!’ e partiu em marcha”. Embora esse farol ainda não pudesse ofuscar o imperialismo, ele ainda seria uma luz guia para as lutas em curso em todo o Sul Global.

Rafael Morante Boyerizo (OSPAAAL), Não ao militarismo e à fome , 1981. Cortesia do The Radical Media Archive.

Dois, três, muitos Vietnãs

Cuba fica a menos de 150 quilômetros dos Estados Unidos. Após ser anexada da Espanha em 1898, tornou-se um refúgio para a elite americana. Sob o domínio do establishment financeiro de Nova York e dos gângsteres de Las Vegas, a classe trabalhadora cubana suportou condições miseráveis ​​pelas seis décadas seguintes. A Revolução de 1959 foi abraçada pela maioria do povo cubano, que não permitiria que suas conquistas fossem revertidas pela derrubada do governo revolucionário. Quaisquer que fossem as dificuldades impostas pelos Estados Unidos a Cuba, seu povo se manteria firme. Isso deu a Fidel a confiança de que o adversário de Cuba, o imperialismo, sofreria uma derrota completa.

Fidel estava no pódio da Conferência Tricontinental com seu uniforme militar, que usaria até o fim da vida. Em  Os Condenados da Terra  (1961), Frantz Fanon refletiu sobre o traje de Fidel: “Assim como a aparição de Castro na ONU em uniforme militar não escandaliza os países subdesenvolvidos, o que Castro demonstra é que está ciente da existência do regime de violência persistente. O que surpreende é que ele não entrou na ONU com sua metralhadora. Será que eles teriam se oposto? Levantes, atos desesperados, grupos armados com facas ou machados encontram sua nacionalidade na luta implacável que opõe o capitalismo ao socialismo.” (1963: 38).

Fidel e o povo cubano sempre estiveram preparados para a guerra híbrida em curso, o bloqueio, a guerra econômica e outras formas de ataques que continuam até hoje.

No último dia da Conferência Tricontinental, Fidel perguntou: “O imperialismo será inevitavelmente derrotado. Quem nos ensinou essa lição?” Sem hesitar, respondeu: “O povo nos ensinou. Quem, dentre o povo, nos deu a lição mais extraordinária nestes tempos? O povo do Vietnã.” Embora os Estados Unidos tenham mobilizado todo o seu arsenal, incluindo bombardeios aéreos e armas químicas no Vietnã do Sul, Fidel prosseguiu: “Os imperialistas ianques não conseguiram esmagar essa parte do povo vietnamita” (Prashad, no prelo (2026): xix).

Nos anos que antecederam a Conferência Tricontinental, o povo revolucionário do Vietnã levou sua luta diretamente contra alvos americanos no Sul, incluindo uma base aérea dos EUA em Bien Hoa (1964) e o Campo Holloway perto de Pleiku (1965). Em resposta, Washington intensificou o bombardeio do Norte, incluindo Hanói, enquanto o número de tropas americanas chegou a quase 200.000 no final de 1965. A pressão sobre a Revolução Vietnamita era imensa. A “Mensagem à Conferência Tricontinental”, de Che Guevara, publicada na  revista Tricontinental  (da Organização de Solidariedade com os Povos da Ásia, África e América Latina, OSPAAAL) em abril de 1967, conclamava as forças revolucionárias a “criar dois, três, muitos Vietnãs”, como ele esperava fazer no Congo e, posteriormente, na Bolívia, onde foi morto em outubro de 1967. Para Che, a hidra da revolução tinha que distrair os Estados Unidos de seu foco naquela região da Ásia.

Ao longo da década de 1960, as repercussões das lutas anticoloniais em locais como o Vietnã e a Argélia desencadearam movimentos estudantis contra a guerra em todo o Atlântico Norte, impulsionados pelas lutas pelos direitos civis nesses mesmos países. Os slogans do movimento estudantil eram definidos por sentimentos contra a guerra e contra o racismo. Na França, o catalisador foi o massacre, em 1961, de até 200 argelinos que protestavam contra a guerra colonial no Norte da África. Nos Estados Unidos, estudantes contra a guerra se organizaram na organização Estudantes por uma Sociedade Democrática (Students for a Democratic Society - SDS) e canalizaram o sentimento popular contra a guerra em uma série de campanhas a partir de 1965. Esses esforços foram moldados pelo Comitê Nacional de Mobilização para o Fim da Guerra do Vietnã (National Mobilization Committee to End the War in Vietnam), de 1966, que organizou a Marcha sobre o Pentágono em 1967 e o protesto na Convenção Nacional Democrata em Chicago em 1968. Em toda a Europa, o tom em 1968 era contra o envolvimento desses governos em guerras coloniais, especialmente a guerra do Vietnã. O Maio francês de 1968 não começou na Sorbonne, mas em Nanterre, onde membros do Comitê Nacional do Vietnã foram presos em 22 de março enquanto protestavam em frente a um escritório da American Express. Este foi o início do Movimento 22 de Março, que passou de criticar a guerra a denunciar a universidade e o sistema capitalista em geral .

A determinação do Vietnã e sua eventual vitória sobre o imperialismo inspiraram revolucionários em todo o mundo, que estavam profundamente cientes do apelo de Che Guevara para a criação de “muitos Vietnãs”. Na noite de 31 de dezembro de 1964, com as imagens das revoluções cubana e argelina e da luta vietnamita ainda frescas em suas mentes, os fedayeen palestinos do Fatah, o principal movimento nacionalista palestino, lançaram a Operação Al-Asifa (A Tempestade), sua primeira operação de guerrilha contra Israel. Os fedayeen vincularam diretamente sua luta ao Vietnã. Abu Jihad, que planejou a Operação Al-Asifa, viajou para a Argélia, China, República Popular Democrática da Coreia e Vietnã entre 1963 e 1965 (Abu Amr, 2013). Um dos principais teóricos dos fedayeen, Ghassan Kanafani — que viajou para a China em 1965 e 1966 — escreveu o principal texto programático da Frente Popular para a Libertação da Palestina, A Estratégia para a Libertação da Palestina (1969), em diálogo direto com os textos do líder vietnamita General Võ Nguyen Giap e de Mao Zedong (Brehony e Hamdi, 2014).

Nos anos que se seguiram à conferência, eclodiram lutas armadas na Índia (Naxalbari, 1967), no Iraque (1967-1968), na África Austral (a começar pela Campanha de Wankie, em 1967), na Malásia (1968-1969) e no Sri Lanka (1971). Não é coincidência que o projeto do OSPAAAL, que teve origem na conferência de 1966, tenha incorporado frequentemente imagens das lutas na Palestina, na África do Sul e no Vietname (como ilustrado pelo projeto deste dossiê) (Tricontinental Institute for Social Research, 2019). Filmes do realizador cubano Santiago Álvarez, como Hanói, Terça-feira 13 (1968) e 79 Primaveras (1969), documentaram a luta vietnamita e a sua ligação ao mundo. A necessidade de lutas de libertação em todo o Terceiro Mundo forneceu o elo emocional para a solidariedade internacional.

A declaração política geral da Conferência Tricontinental, lida por María Amélia Lopes Fonseca, do Movimento das Colônias Portuguesas, proclamou “o direito inalienável dos povos à plena independência política e ao recurso a todas as formas de luta que se mostrem necessárias, inclusive a luta armada, para alcançar esse direito” (1966). Seis anos antes, em 14 de dezembro de 1960, a Assembleia Geral das Nações Unidas adotou a Resolução 1514 sobre a Declaração da Concessão da Independência aos Países e Povos Coloniais. Esta resolução afirmava “que o processo de libertação é imparável e irreversível e que, para evitar crises graves, é necessário pôr fim ao colonialismo e a todas as práticas de segregação e discriminação que o acompanham”. A resolução afirmava ainda que “toda ação armada ou medida repressiva de qualquer tipo dirigida contra eles deve cessar, e a integridade do seu território nacional deve ser respeitada” (1960). A ONU não criticou a luta armada dos povos ocupados e colonizados. Pelo contrário, a crítica da resolução à força armada dirigia-se aos imperialistas, cuja violência impunha o caminho da luta armada aos povos colonizados. Esta era a experiência de Cabral e do PAIGC, que foram obrigados a pegar em armas devido à repressão punitiva portuguesa à sua luta civil. Do palanque em Havana, Cabral disse aos seus camaradas revolucionários: “As experiências passadas e presentes de vários povos, a situação atual das lutas de libertação nacional no mundo (especialmente no Vietname, no Congo e no Zimbabué), bem como a situação de violência permanente, ou pelo menos de contradições e levantes, em certos países que conquistaram a sua independência pelo chamado caminho pacífico, mostram-nos não só que os compromissos com o imperialismo não funcionam, mas também que o caminho normal da libertação nacional, imposto aos povos pela repressão imperialista, é a luta armada ” (Tricontinental, 1966).

A palavra-chave aqui é imposta . A luta armada não é uma escolha, como argumentou Fanon em  Os Condenados da Terra . Essa foi a lição deixada pelo assassinato de Patrice Lumumba em 17 de janeiro de 1961, pouco mais de um mês após a Resolução 1514 da ONU, quando a tentativa de uma luta pacífica pela liberdade do Congo foi interrompida pela imposição da violência imperialista.

Lázaro Abreu Padrón (OSPAAAL), Dia de Solidariedade com o Zimbábue , 1972. Cortesia do The Radical Media Archive.

Ziguezagues

Vietnã, Palestina, Guatemala, Congo, Zimbábue — esses e muitos outros países moldaram os contornos do espírito tricontinental. A era do espírito tricontinental começou com a vitória da Revolução Cubana na manhã de Ano Novo de 1959 e foi parcialmente definida, nas duas décadas seguintes, por uma série de vitórias revolucionárias: Etiópia (1974), Vietnã (1975), Laos (1975), Guiné-Bissau e Cabo Verde (1974-1975), Moçambique (1975), São Tomé e Príncipe (1975), Angola (1975), Afeganistão (1978), Granada (1979), Nicarágua (1979) e Zimbábue (1980). Revolucionários comunistas e forças de libertação nacional travaram batalhas prolongadas, como no Vietnã e na Nicarágua, ou se viram em posição de força quando o sistema estatal entrou em colapso após uma crise política, abrindo caminho para a sua vitória, como na Etiópia e em Granada. O que uniu essas forças foi o desejo de completa independência e soberania, expresso na Resolução 1514 da ONU, juntamente com diferentes graus de comprometimento com a revolução socialista em cada contexto. Em outros lugares, como na Palestina, África do Sul e Saara Ocidental, o processo de libertação foi bloqueado durante esse período. No entanto, tanto em territórios vitoriosos quanto em territórios ainda subjugados, a energia desses movimentos de libertação nacional ressoou nos corredores da ONU, levando, em 1974, à adoção da Resolução 3201 da Assembleia Geral da ONU sobre a Nova Ordem Econômica Internacional (NOEI), uma visão para um presente mais humano.

A maioria desses avanços revolucionários não teria espaço para prosperar. Em 1979, os Estados Unidos lançaram a Operação Ciclone para financiar os mujahidin e paralisar o governo comunista em Cabul. No início da década de 1980, Washington minou o porto de Manágua e financiou os Contras, a variante nicaraguense dos mujahidin, para sufocar o governo sandinista. Fidel e seus camaradas na conferência de 1966 estavam profundamente conscientes da política de estrangulamento adotada pelas potências imperialistas. Em Havana, eles discutiram o arquipélago de bases militares mantidas pelas antigas potências coloniais, da base britânica em Diego Garcia à base francesa em Dakar, e pela potência imperialista mais forte, os Estados Unidos, que acabariam por estabelecer 900 bases militares em diversos países ao redor do mundo (Tricontinental Institute for Social Research, 2024).

Embora as ameaças imperialistas contra Cuba tenham sido malsucedidas, os golpes imperialistas em diversos países prejudicaram o progresso da humanidade. Os golpes no Congo (1961), no Brasil (1964), na Indonésia (1965) e em Gana (1966) destruíram a esquerda nesses países-chave por pelo menos uma geração, criando um modelo para os golpes contra movimentos de libertação nacional que foram perpetrados em todo o Terceiro Mundo. Contudo, em 1978, o Conselheiro de Segurança Nacional dos EUA, Zbigniew Brzezinski, escreveu uma avaliação crítica dos limites do poder estadunidense em um memorando secreto ao presidente Jimmy Carter: “Os Estados Unidos estavam muito desconectados do Terceiro Mundo , com pouca consciência da necessidade de mudanças econômicas, políticas e sociais ou simpatia pela diversidade ideológica. Havia uma ênfase excessiva na  realpolitik  e uma preocupação exagerada com a ameaça soviética.” Em todo o Terceiro Mundo, havia um sentimento generalizado de antiamericanismo” (United States Government Printing Office, 2014).

Apesar do enfraquecimento das insurgências e do espírito tricontinental, era evidente que uma onda de oposição contra os Estados Unidos estava se formando. Embora essa onda não tivesse força suficiente para superar a estrutura neocolonial estabelecida após 1945, ela persistiu. Por um tempo, guerras secretas e golpes de Estado apoiados pelos EUA se espalharam pela América Central e do Sul, bem como pelo Sul da Ásia (notadamente no Paquistão, em 1977). A Revolução Iraniana de 1979 interromperia essa aparente estabilidade pelas décadas seguintes, mas, no geral, os Estados Unidos acreditavam ter administrado eficazmente o espírito tricontinental, apesar do persistente sentimento anti-americano.

O retorno do espírito de Bandung

A arrogância do bloco imperialista liderado pelos EUA só aumentou após 1991, com a desintegração da União Soviética e do sistema estatal comunista da Europa Oriental, e o enfraquecimento do projeto do Terceiro Mundo como consequência de uma persistente crise da dívida. Os Estados Unidos buscaram, de forma imperiosa, construir um mundo unipolar capaz de conter suas próprias contradições. Uma coisa era destruir a Iugoslávia (1999) e criar a Organização Mundial do Comércio (1995), os dois pilares da guerra e do comércio, mas outra bem diferente era aniquilar os sonhos de emancipação da humanidade. Mesmo no auge dessa ordem unipolar, uma mudança significativa ocorreu na Venezuela em 1998, com a ascensão ao poder da Revolução Bolivariana, liderada por Hugo Chávez. Os Estados Unidos foram longe demais ao tentar travar uma Guerra Global contra o Terrorismo mal definida, enquanto, simultaneamente, esgotavam sua própria capacidade industrial para construir uma cadeia de acumulação globalizada que beneficiasse o capital privado.

Guerras, desindustrialização, financeirização e a falta de investimento líquido em capital fixo levaram a um aumento astronômico da desigualdade social no Norte Global, que se transformou em polarização política e uma crise de legitimidade. Ignorando a crise em seus próprios países, a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) e as forças armadas dos EUA começaram a pressionar o que consideravam os dois últimos obstáculos sérios ao poder ocidental na nova era: China e Rússia. Os Estados Unidos iniciaram unilateralmente o desmantelamento do regime global de controle de armas, retirando-se do Tratado de Mísseis Antibalísticos em 2002 e do Tratado de Forças Nucleares de Alcance Intermediário em 2019. Intervieram nos assuntos internos da Ucrânia em 2014 e concluíram um importante acordo de armas com Taiwan em 2015. Embora o equilíbrio de poder tivesse prevalecido contra a Iugoslávia em 1999, a situação global começara a mudar. Nem a Rússia nem a China permitiriam que o Norte Global estendesse seu alcance militar às suas fronteiras.

O que pareciam ser as últimas brasas do espírito de Bandung foram reacendidas durante esse período, à medida que o termo “Sul Global” entrou nas discussões entre altos funcionários de países da África, Ásia e América Latina. Esses líderes falavam de “Cooperação Sul-Sul”, uma expressão que antes aparecia apenas em relatórios menores da ONU e em reuniões que comemoravam o legado do Terceiro Mundo. Na quinta Cúpula do BRICS, em Durban, África do Sul, em 2013, a questão do papel do Sul Global no fortalecimento do multilateralismo foi levantada novamente e só se intensificaria na década seguinte. Isso foi amplamente reconhecido, embora não unanimemente, na maioria das discussões, como resultado da ascensão da China e da Rússia no cenário mundial.

A industrialização permitiu à China acumular grandes superávits comerciais, que reinvestiu na Iniciativa Cinturão e Rota e em seu compromisso com a industrialização da África. A Rússia recuperou parte de sua indústria pesada das mãos da oligarquia e utilizou esses ativos para reconstruir sua infraestrutura estatal, incluindo suas forças armadas. Sancionadas pelo Ocidente, China e Rússia resolveram sua disputa de fronteira e aumentaram seu comércio, o que levou a um acordo de parceria “sem fronteiras” em 2022. A liderança chinesa e russa no processo do BRICS e em outros processos Sul-Sul ajudou a reacender o espírito de Bandung no Sul Global. Na Cúpula do BRICS de 2025, no Rio de Janeiro, o presidente brasileiro Lula da Silva afirmou que “o BRICS é a manifestação do Movimento Não Alinhado de Bandung. O BRICS mantém vivo o espírito de Bandung” (2025). Mas será que o espírito de Bandung é o mesmo que o espírito tricontinental?

Artista desconhecido (OSPAAAL), Semana de Solidariedade com os Povos da Ásia , 1968. Cortesia do The Radical Media Archive.

O espírito tricontinental

Nos últimos dois anos, o Instituto Tricontinental de Pesquisa Social tem destacado a importância de dois conceitos relacionados: soberania e dignidade (2023). Pode-se dizer que a soberania, juntamente com o multilateralismo, é o ideal central do espírito de Bandung, enquanto a dignidade, baseada na luta de classes, é a categoria definidora do espírito tricontinental.

Tanto a Conferência de Bandung (1955) quanto a fundação do Movimento dos Países Não Alinhados (MNA) (1961), citadas por Lula, foram encontros de chefes de Estado e, portanto, reuniões interestatais. A ampla frente nas reuniões de Bandung e do MNA uniu-se em torno do conceito de soberania: a ideia de que um Estado deve ter controle soberano sobre seu território, ser capaz de dispor de suas matérias-primas e ter autonomia para gerir seus assuntos internos à sua maneira, de acordo com seu desenvolvimento cultural e político. Mas a soberania é um conceito limitado. No direito internacional, por exemplo, a soberania é amplamente reduzida a um princípio negativo de não interferência nos assuntos internos de um Estado (como no Artigo 2 da Carta da ONU de 1945), o que, em termos populares, equivale a “nenhuma intervenção estrangeira”. No entanto, o conceito de soberania permanece uma proposição radical devido ao controle do Norte Global sobre as instituições internacionais e suas intervenções políticas e militares no Sul Global. Isso forneceu a base para uma ampla aliança anti-imperialista que se esforçaria para criar o multilateralismo e democratizar a ordem internacional. Contudo, a soberania por si só não garante o fim da exploração de seres humanos por outros seres humanos. Ela apenas pode mitigar a violência do imperialismo.

O conceito de soberania não é apenas limitado, mas também anacrônico. Ele reflete uma dinâmica interestatal que surgiu na era pré-moderna, quando os Estados desenvolveram diversos mecanismos para evitar conflitos interestatais inconciliáveis. Vários tratados e alianças pré-modernos começaram a estabelecer a ideia de soberania em um período anterior ao reconhecimento de que todas as pessoas deveriam ser tratadas como fundamentalmente iguais. Alguns exemplos incluem:

  • A Carta de Manden na fundação do Império Mali (1235).
  • A Tríplice Aliança Asteca, que reuniu os povos de Tenochtitlán, Texcoco e Tlacopán (1428).
  • A formação da Confederação Iroquesa (1400-1450).
  • A Paz de Vestfália, que pôs fim à Guerra dos Trinta Anos e à Guerra dos Oitenta Anos na Europa (1648).
  • O Tratado de Nerchinsk, que pôs fim ao conflito entre a China Qing e a Rússia czarista (1689).
  • O estabelecimento da Confederação Ashanti (1701).

Embora cada uma dessas formações tenha desenvolvido a ideia de soberania, fizeram-no unicamente para proteger a paz entre os Estados. Essas ideias seriam eventualmente codificadas nos escritos do jurista francês Jean Bodin (1530-1596) e do filósofo holandês Hugo Grotius (1583-1645), cuja obra constituiu a ideologia do Congresso de Viena (1814-1815) e o fundamento da moderna ciência política do Atlântico Norte. Bodin e Grotius desconheciam a Carta de Manden ou a Tríplice Aliança Asteca, mas as ideias que desenvolveram — como as expostas por Grotius em Sobre o Direito da Guerra e da Paz (1625) — teriam encontrado eco nos malianos e nos astecas. Eram ideias simples sobre a não interferência nos assuntos de um Estado vizinho. Essas ideias foram articuladas por diversos contemporâneos, como o intelectual mogol Abu'l Fazl (1551–1602) em seu Akbarnama (1596), cujo conceito de sulh-i Kul (paz com todos) poderia ser comparado proveitosamente aos escritos de Grotius. Contudo, esses pensadores pré-modernos não iam além da amizade interestatal. Não havia propósito nessa não-interferência além do desejo de evitar a guerra e a dominação interminável.

Na era moderna, porém, quando a ideia de dignidade humana molda os discursos de liberdade, igualdade e direitos sociais, prevenir guerras e destruição já não basta. É preciso articular positivamente a obrigação dos Estados não apenas de garantir a segurança de seus habitantes, mas também de melhorar suas vidas em termos materiais e culturais. Isso é resultado de diversas revoltas populares, desde as Revoluções Francesa e Haitiana (1789 e 1804), a Comuna de Paris (1871) e a Revolução de Outubro (1917), até as Revoluções Chinesa e Cubana (1949 e 1959). Essa é a unidade, como afirmou Ben Barka, das duas correntes de libertação nacional e revolução socialista. A expectativa estabelecida por essas revoluções sucessivas é a de que a vida humana deve ser melhorada, superando as misérias do passado, e que o controle sobre o progresso material deve ser democratizado entre as massas. Em outras palavras, os Estados devem se obrigar a lutar pela plena dignidade de seus cidadãos e, de fato, por meio de conceitos como o internacionalismo, por todos os povos do mundo. Com a dignidade emergindo como um conceito-chave, consagrado na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, a ideia westfaliana de soberania como conceito fundamental das relações interestatais precisava ser atualizada. Ela era insuficiente para prevenir a guerra e a interferência estrangeira. Era necessário melhorar as condições materiais da humanidade.

A Conferência Tricontinental de 1966 absorveu o espírito de Bandung e buscou radicalizá-lo. Um Estado pode reivindicar soberania sobre seu território, até mesmo expulsar capital estrangeiro, e ainda assim falhar em defender a dignidade de seu povo, permitindo que o capital nacional continue a explorá-lo. O espírito de Bandung, em outras palavras, limita-se à independência nacional e não aprofunda a ideia de emancipação para incluir a libertação das atrocidades básicas do capitalismo. O espírito tricontinental, por outro lado, busca democratizar a ordem mundial e sustenta que essa luta deve ser travada em conjunto com a luta pela democratização dos projetos de libertação nacional. Reconhece a importância de uma frente ampla para o estabelecimento do multilateralismo, mas vai além, reconhecendo a necessidade da luta de classes e do socialismo. Nossas lutas pelo socialismo, diretamente ligadas à Conferência Tricontinental e à sua época, emergem não como um ideal a ser estabelecido no mundo, mas do movimento concreto que busca abolir o estado atual das coisas. (Marx e Engels, 1976) Essa percepção, e o espírito que ela incorpora, permanece tão verdadeira hoje quanto na época em que foi escrita. Ela ressoou com Cabral e Castro na década de 1960. Nosso movimento não nasceu de uma escolha. É uma necessidade.

Enquanto o espírito de Bandung prenuncia o futuro ato de emancipação por meio da luta pela soberania nacional, o espírito tricontinental nos chama a democratizar e radicalizar os projetos de emancipação humana que os movimentos sociais já estão construindo hoje. Nossa busca exige que tais princípios não permaneçam meras ideias; eles devem se tornar vitais e reais no mundo. Emancipação, literalmente “tirar da mão”, significa libertar os seres humanos do jugo da opressão.


Alberto Blanco González (OSPAAAL), Namíbia: Poder para o Povo , 1981. Cortesia do The Radical Media Archive.

Notas

1

Para obter mais informações sobre seu importante trabalho, consulte Ben Barka, 2021.

2

Existe vasta literatura sobre este tema. Para uma introdução, veja Kalter, 2016.

3. Itálico no original. Acima

Referências bibliográficas

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Ben Barka, Bachir, ed. Escritos políticos (1948-1965) . Paris: Syllepse, 2021.

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Nota de Rebelião : Gostaríamos de acrescentar às referências bibliográficas o excelente livro de Said Bouamama, La tricontinental. Los pueblos del tercer mundo al asalto del cielo , Boltxe liburuak , 2029, traduzido do francês por Beatriz Morales Bastos.

Fonte: https://thetricontinental.org/es/dossier-conferencia-tricontinental-60/

Chave: 61993185299


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