Sobre a dívida pública brasileira


Moedas de reais - 15/10/2010 (Foto: REUTERS/Bruno Domingos)

A dívida pública opera como engrenagem central de concentração de renda, articulando política monetária, sistema financeiro e hierarquia social no Brasil

Fernando Nogueira da Costa
brasil247.com/

Apresento, de forma textual e encadeada, o funcionamento da dívida pública mobiliária federal interna (DPMFi) no Brasil. O objetivo é permitir ao leitor compreender o sistema como um todo, não como um problema contábil isolado, mas como um mecanismo estrutural de interligação entre Estado, sociedade e sistema financeiro.

O ponto de partida é um Estado capaz de arrecadar em moeda nacional. O Estado brasileiro impõe tributos e arrecada receitas em moeda que ele próprio emite indiretamente (via Banco Central). Essa arrecadação provém majoritariamente de impostos sobre o consumo (regressivos), imposto de renda sobre o trabalho, tributos sobre empresas e tributação patrimonial limitada.

Essa receita fiscal financia o gasto primário: salários, previdência, saúde, educação, políticas sociais, custeio administrativo e investimentos. A arrecadação não serve, em primeiro lugar, para “pagar a dívida”, mas sim para organizar a circulação monetária e legitimar o gasto público.

O segundo ponto relevante é diferenciar entre resultado primário e resultado nominal. Mesmo quando o Estado gera superávit primário, isto é, arrecada mais do que gasta em políticas públicas, ele permanece com um déficit nominal.

Por qual razão? Porque o resultado nominal inclui os juros da dívida pública, indexados à taxa Selic, frequentemente elevada em nome de metas de inflação descoladas da estrutura real da economia. No Brasil, o déficit não nasce do excesso de gasto social, mas do custo financeiro do passivo público.

O momento crítico acontece quando, para pagar juros, exige-se nova dívida. Como a arrecadação fiscal não cobre os encargos financeiros, o Tesouro Nacional precisa, então, emitir novos títulos públicos para pagar juros dos títulos vencidos e o principal quando chega ao vencimento.

Esse processo chama-se rolagem da dívida. A rolagem não é uma exceção ou anomalia — ela é o funcionamento normal da dívida pública moderna.

Quem carrega a dívida? Os títulos emitidos são adquiridos por diversos agentes: bancos comerciais e de investimento; fundos de investimento em renda fixa; fundos de pensão e seguradoras; previdência privada; pessoas físicas via Tesouro Direto, fundos e wealth management.

Mesmo indivíduos sem comprar títulos diretamente participam indiretamente por meio de fundos e planos previdenciários. A dívida pública conecta toda a sociedade, mas não de forma simétrica.

O papel do Banco Central é garantir a taxa Selic de mercado no nível da Selic-meta anunciada, com gerenciamento de liquidez. Ele é o pivô do sistema porque define a taxa Selic, assegura liquidez ao mercado de títulos, aceita títulos públicos como colateral e realiza operações compromissadas.

Isso transforma a DPMFi em um ativo de altíssima liquidez, risco mínimo e retorno real elevado diante do padrão internacional. O risco da dívida pública é socializado, enquanto o retorno é privatizado.

Os detentores da dívida recebem juros regularmente. Esses juros compostos permitem a acumulação patrimonial porque são reinvestidos e ampliam o estoque de ativos financeiros. Geram juros sobre juros ao longo do tempo.

Trata-se de um mecanismo de enriquecimento financeiro cumulativo, desvinculado da produção, ou seja, “renda passiva”. A dívida pública funciona como máquina de capital fictício, lastreada na capacidade fiscal futura do Estado.

Quem paga, quem ganha: isso resulta em efeitos distributivos, porque as frações populares pagam impostos indiretos, dependem de serviços públicos pressionados por ajuste fiscal e não acumulam ativos financeiros relevantes. Podem ser consideradas contribuintes líquidos negativos.

A classe média tradicional paga Imposto de Renda, possui alguma poupança, participa indiretamente da dívida e vive a contradição entre pagar impostos e receber rendimentos financeiros. Ocupa uma posição estrutural ambivalente.

A classe média financeirizada (varejo de alta renda) tem nível de escolarização mais elevado, acesso a produtos financeiros, educação econômica como capital e acumula patrimônio via renda financeira. É beneficiária crescente da rolagem.

As elites financeiras são grandes detentoras diretas, influenciam a política monetária e capturam renda via juros compostos. São beneficiárias líquidas centrais do sistema.

O circuito sistêmico do funcionamento pode ser sintetizado assim: o Estado arrecada impostos → paga gastos primários → não cobre juros → emite novos títulos → investidores compram → recebem juros elevados → reinvestem → o Estado depende de arrecadação futura. Forma-se um loop de retroalimentação financeira, estável e concentrador.

A diferença estrutural entre os Estados Unidos e o Brasil é a de aquele ser uma Economia de Mercado de Ações, na qual sua dívida pública sustenta crescimento e valorização privada produtiva. Aqui trata-se de uma Economia de Endividamento Público e Bancário, na qual a dívida sustenta riqueza financeira rentista e bloqueia o crescimento.

No Brasil, a dívida pública não é apenas um problema fiscal. Ela é o eixo organizador da acumulação financeira e da hierarquia social.

Entender a rolagem da dívida pública brasileira é compreender um sistema complexo emergente, no qual todos pagam impostos, poucos carregam títulos e alguns enriquecem de forma cumulativa. O desafio político e teórico não é “pagar a dívida”, mas sim desarmar o mecanismo que a transforma em instrumento permanente de concentração de riqueza.

Chave: 61993185299


Comentários