A multinacional norteamericana da
saúde, UnitedHealth, adquiriu a empresa líder do mercado brasileiro pelo valor
de R$ 10 bilhões. Além disso, a negociação implicou a transferência de um
conjunto de mais de 20 hospitais. Mas, ao que tudo indica, a grande aposta do
novo controlador é mesmo o segmento de planos privados de saúde.
Paulo Kliass
Publicado no Cartamaior
Passada a ressaca eleitoral dos
municípios, o tema mais comentado na área da saúde deixa de ser a dificuldade
de atendimento à população em razão da falta de recursos orçamentários. Não que
isso tenha sido resolvido com a eleição do prefeito e dos vereadores. Mas o que
tem chamado a atenção dos especialistas da área - além do importante debate a
respeito da falsa solução por meio das Organizações Sociais (OSs) - é o
negócio, literalmente bilionário, envolvendo a venda do maior grupo privado
brasileiro do setor, a Amil.
A transação teve início há vários
meses e correu em sigilo entre as partes interessadas: o grupo presidido pelo
empresário brasileiro Edson Bueno e a mega corporação norte-americana,
UnitedHealth – maior do setor naquele país e uma das maiores no mundo. Algumas
informações só começaram a ser reveladas de forma mais ampla a partir de meados
de outubro, quando as intenções foram confirmadas, bem como as cifras
envolvendo o negócio. O resumo da ópera é que a multinacional da saúde adquiriu
a empresa líder do mercado brasileiro pelo valor de R$ 10 bilhões.
Compra da Amil: legislação proíbe
estrangeiros de operar hospitais
A estratégia de penetração dos
novos atores no negócio de saúde em nosso País envolveu a compra dos planos de
saúde do grupo Amil, que já havia adquirido a Medial há alguns anos e, assim,
se consolidou como o maior agente privado do ramo. Além disso, a negociação
implicou a transferência de um conjunto de mais de 20 hospitais pertencentes à
empresa fundada por Bueno. No entanto, ao que tudo indica, a grande aposta do
novo controlador é mesmo o segmento de planos privados de saúde, com a
expectativa de ampliação e expansão de novos perfis de “clientes e
consumidores”. Aliás, essa é exatamente a terminologia utilizada, confirmando a
tendência de mercantilização radical desse serviço público, ainda que a
Constituição Federal (CF) o assegure como um direito amplo e universal à nossa
população.
Não bastasse a magnitude dos
valores envolvidos e a elevada sensibilidade da matéria como futuro estratégico
de uma das políticas públicas mais importantes, a transação está marcada por um
conjunto preocupante de elementos obscuros e polêmicos. Vejamos alguns deles.
A CF estabelece, em seu artigo
199, a proibição de empresas estrangeiras atuarem na saúde, “salvo nos casos
previstos em lei”. Pois bem, em 1998, tal aspecto foi regulamentado pela Lei nº
9.656 e não foi previsto nenhum dispositivo autorizando a operação de
hospitais. Ou seja, em termos objetivos, continua sendo proibida a posse e a
gestão desse tipo de serviço por grupos como a UnitedHealth. Utilizando-se da
desculpa esfarrapada de que o “foco” do negócio são os planos de saúde e que os
hospitais seriam elemento secundário para o novo controlador, o argumento foi
aceito pela direção da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), órgão
regulador e fiscalizador do sistema, que aprovou mesmo assim a venda sem
nenhuma restrição.
Ameaça à concorrência e rapidez
na aprovação
Por outro lado, a operação não
foi objeto de avaliação por parte do órgão federal que cuida das condições de
defesa da concorrência e risco de cartelização, o CADE. Além da venda caracterizar
a continuidade de concentração de poder econômico do maior grupo atuante no
setor, a condição de novo proprietário aponta claramente para uma ampliação
estratégica de sua presença no setor econômico da saúde em nossas terras. Se
adicionarmos o ingrediente de que sua lógica de funcionamento obedecerá, a
partir de agora, aos interesses definidos pelos norte-americanos, causa
estranheza a liberalidade com que tal acordo foi sancionado pelas instâncias do
Estado brasileiro.
A agilidade com que o processo
foi avaliado no interior da ANS também chamou a atenção dos profissionais que
acompanham o setor. Em geral, os processos envolvendo o órgão regulador da
saúde privada levam meses para serem aprovados ou indeferidos. No caso dessa
transação, a agência levou apenas 2 semanas para emitir seu parecer final,
conferindo o aval para que a Amil fosse vendida aos americanos. O tratamento do
dossiê com tais requintes de “eficiência administrativa excepcional” põe
novamente em relevo a delicada relação entre os dirigentes dos órgãos
reguladores e as empresas objeto de regulamentação e fiscalização. É amplamente
conhecido o fenômeno chamado de “captura”, em que os interesses públicos acabam
sendo deturpados pela atuação dos responsáveis pelas agências ocorrer mais de
acordo com a lógica dos interesses das próprias empresas.
No caso concreto, há evidências
de que diretores da ANS frequentaram espaços da vida privada do presidente da
Amil, além de terem sido dirigentes de empresas do próprio setor, como a
concorrente Medial, que terminou por ser vendida ao próprio grupo de Bueno.
Assim, esse tipo de relação incestuosa no âmbito público/privado coloca em
cheque a capacidade das agências defenderem, de fato, os interesses públicos e
dos usuários do sistema de saúde.
UnitedHealth: riscos de
mercantilização e de americanização
A venda do grupo por valores
bilionários deve servir como elemento de reforço da preocupação com o futuro da
saúde pública em nosso País. A decisão estratégica do grupo norte-americano
certamente levou em consideração cenários de longo prazo, construídos para o
chamado “mercado” da saúde. Não obstante a determinação constitucional pelo
caminho do SUS, o fato é que os sucessivos governos, no âmbito federal e
demais, têm contribuído para o sucateamento do nosso sistema público de saúde.
Ao promover contingenciamento de verbas orçamentárias, ao permitir a extinção
de fontes importantes de financiamento (como a aceitação passiva do fim da
CPMF) e ao estimular o modelo de privatização/concessão/terceirização por meio
das OSs, o Estado brasileiro termina por sinalizar que sua opção estratégica
pode ser mesmo pelo fortalecimento do setor privado na área. Só o futuro dirá.
Ora, se o caminho adotado será
mesmo o da continuidade da chamada “americanização” de nosso sistema de saúde,
então faz todo o sentido o investimento bilionário efetuado pelo grupo
UnitedHealth. Porém, mais uma vez, estaremos pegando o bonde errado e atrasado
da História.
Os Estados Unidos estão
justamente tentando promover importantes mudanças em seu próprio modelo. Está
em debate a possibilidade de recuperação parcial da presença do Estado na
saúde, uma vez que o sistema de mercantilização absoluta revelou-se injusto do
ponto de vista social e incapaz de dar conta das necessidades de saúde da
população norte-americana. É claro que todo esse quadro foi dramatizado, ao
longo dos últimos anos, em função do aprofundamento da crise
econômico-financeira e da situação de penúria social.
No caso brasileiro, a estratégia
do novo gigante da saúde parece estar em sintonia com o discurso do governo a
respeito da ilusão, criteriosamente espalhada aos quatro ventos, a respeito da
chamada “nova classe média”. Ao invés de reforçar os aspectos positivos de
inclusão sócio-econômica e de recuperação das condições de vida de segmentos
até então excluídos, o governo opta por um caminho simplista e perigoso.
Parcela importante das famílias passou a contar com níveis mais elevados de
renda real por conta de fatores diversos, tais como o Bolsa Família, os benefícios
da previdência social, a recuperação dos valores do salário mínimo e a elevação
dos rendimentos mais baixos de uma forma geral. Porém, é importante lembrar que
trata-se de grupos de perfil econômico da base da pirâmide social. Com isso, o
discurso oficial acaba sendo impregnado pelos interesses de aprofundar a
mercantilização dos serviços públicos, a exemplo da saúde e da educação.
Saúde privada e os riscos da
qualidade no atendimento
O foco passa a ser a destinação
de parte da renda suplementar para o consumo de todo tipo de mercadoria. E aí
incluem-se as mensalidades de educação infantil, fundamental, média e superior,
bem como a compra de planos privados de saúde. As novas camadas que passam a
engrossar esses níveis um pouco mais elevados de renda familiar são
bombardeadas com os padrões de consumo das faixas que se situam no alto da
pirâmide. Como o Estado não consegue oferecer serviços de saúde de qualidade e
na quantidade necessária, a ilusão de eventual satisfação das necessidades
acaba ocorrendo por meio da oferta privada.
Não construamos nenhuma fantasia
a respeito das intenções da UnitedHealth quanto à saúde de nossa população.
Trata-se de negócio apenas, puro “business”, nada mais. E a lógica de uma
aquisição empresarial envolvendo R$10 bilhões é a do rápido retorno sobre o
capital investido e a maximização dos ganhos daqui para frente. Como o balanço
contábil e financeiro de uma empresa capitalista envolve sempre a superioridade
das receitas sobre as despesas, a orientação será arrecadar no limite superior
e gastar o mínimo possível. Ora, uma racionalidade dessa natureza obviamente
deixa em segundo plano os aspectos de qualidade de tratamento e os riscos a
respeito da saúde e da vida dos cidadãos.
Isso não significa isentar o
serviço público de suas deficiências e do longo percurso a percorrer para
aperfeiçoar a qualidade do atendimento proporcionado. Aliás, não fosse por tais
problemas reais, talvez não houvesse tanto espaço para o crescimento da
alternativa privada. No entanto, a mercantilização dos serviços de saúde
apresenta o sério risco de conferir ares de legalidade à exclusão, quando as
imagens dos indivíduos sendo barrados à porta de centros de tratamento e
hospitais nos vêem à cabeça. Caso a operação bilionária se confirme mesmo como
fato consumado, o caminho passa pelo reforço da regulação e da fiscalização do
poder público, com o objetivo de evitar que os maiores prejudicados sejam, uma
vez mais, os próprios usuários do sistema.
Paulo Kliass é Especialista em Políticas
Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal e doutor em
Economia pela Universidade de Paris 10.
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