Professor Kabengele
Munanga: Sem cotas raciais, as políticas universalistas não são capazes de
diminuir o abismo entre negros e brancos no País. Foto: CartaCapital
por Adriana
Marcolini, em CartaCapital
Nascido no antigo
Zaire, atual República Democrática do Congo, em 1942, o professor de
Antropologia da Universidade de São Paulo Kabengele Munanga aposentou-se em
julho deste ano, após 32 anos dedicados à vida acadêmica. Defensor do sistema
de cotas para negros nas universidades, Munanga é frequentemente convidado a
debater o tema e a assessorar as instituições que planejam adotar o sistema.
Nesta entrevista, o acadêmico aponta os avanços e erros cometidos pelo Brasil
na tentativa de se tornar um país mais igualitário e democrático do ponto de
vista racial.
CartaCapital: O senhor
afirma que é difícil definir quem é negro no Brasil. Por quê?
Kabengele Munanga: Por causa do
modelo racista brasileiro, muitos afrodescendentes têm dificuldade em se
aceitar como negros. Muitas vezes, você encontra uma pessoa com todo o fenótipo
africano, mas que se identifica como morena-escura. Os policiais sabem, no
entanto, quem é negro. Os zeladores de prédios também.
CC: Quem não assume a
descendência negra introjeta o racismo?
KM: Isso tem a ver
com o que chamamos de alienação. Por causa da ideologia racista, da
inferiorização do negro, há aqueles que alienaram sua personalidade negra e
tentam buscar a salvação no branqueamento. Isso não significa que elas sejam
racistas, mas que incorporaram a inferioridade e alienaram a sua natureza
humana.
CC: O mito da
democracia racial, construído por Gilberto Freyre e vários intelectuais da sua
época, ainda está impregnado na sociedade brasileira?
KM: O mito já
desmoronou, mas no imaginário coletivo a ideia de que nosso problema seja
social, de classe socioeconômica, e não da cor da pele, faz com que ainda
subsista. Isso é o que eu chamo de “inércia do mito da democracia racial”. Ele
continua a ter força, apesar de não existir mais, porque o Brasil oficial
também já admitiu ser um país racista. Para o brasileiro é, porém, uma vergonha
aceitar o fato de que também somos racistas.
CC: O senhor
observa alguma evolução nesse cenário?
KM: Houve grande
melhora. O próprio fato de o Brasil oficial se assumir como país racista,
claro, com suas peculiaridades, diferente do modelo racista norte-americano e
sul-africano, já é um avanço. Quando cheguei aqui há 37 anos, não era fácil
encontrar quem acompanhasse esse tema. Hoje, a questão do racismo é debatida na
sociedade.
CC: O sistema de
cotas deve ser combinado com a renda familiar?
KM: Sempre defendi
as cotas na universidade tomando como ponto de partida os estudantes
provenientes da escola pública, mas com uma cota definida para os
afrodescendentes e outra para os brancos, ou seja, separadas. Por que proponho
que sejam separadas? Porque o abismo entre negros e brancos é muito grande.
Entre os brasileiros com diploma universitário, o porcentual de negros varia
entre 2% e 3%. As políticas universalistas não são capazes de diminuir esse
abismo.
CC: Somente os
estudantes vindos da escola pública são incluídos nas cotas?
KM: Sim, com
exceção da Universidade de Brasília (UnB). Lá, as cotas não diferenciam os que
vêm da escola pública e os da particular. Porém, em todas as universidades o
critério é uma porcentagem para os negros, outra para os brancos e outra para
os indígenas, todos provenientes da escola pública. Dessa forma, os critérios
se cruzam: o étnico e o socioeconômico. Tudo depende da composição demográfica
do estado. Em Roraima, por exemplo, sugeri que se destinasse um porcentual
maior para a população indígena, proporcional à demografia local.
CC: Quantas
universidades adotaram o sistema de cotas no Brasil?
KM: Cerca de 80. É
interessante observar que há muita resistência nas regiões Norte e Nordeste. Lá
eles ainda acreditam que a questão seja apenas social.
CC: O sistema
deve passar por avaliação para definir a sua renovação ou suspensão?
KM: Qualquer
projeto social não deve ser por tempo indeterminado. No sistema em vigor,
algumas universidades estabeleceram um período experimental de 10 anos, outras
de 15. Posteriormente, vão avaliar se seguem adiante.
CC: Em sua
opinião, por que a Universidade de São Paulo ainda não aprovou as cotas?
KM: A USP poderia
ter sido a primeira universidade a debater o sistema, porque aqui se produziram
os primeiros trabalhos intelectuais do Sudeste que revelaram o mito da
democracia racial. Como é uma universidade elitista, ficou presa à questão de
mérito e excelência. Não é oficial, mas está no discurso dos dirigentes. A
outra refere-se à questão do mérito. Eles ainda acreditam que o vestibular
tradicional seja um princípio democrático. De certo modo acredito que a
Universidade de São Paulo ainda esteja presa ao mito da democracia racial.
Entre as universidades paulistas, apenas a Federal de São Paulo adotou as
cotas. A Unesp também está de fora.
CC: O racismo é
uma ideologia. De que forma podemos desconstruí-la? Qual o papel da escola?
KM: Como todas as
ideologias, o racismo se mantém porque as próprias vítimas aceitam. Elas o
aceitam por meio da educação. É por isso que em todas as sociedades humanas a
educação é monopólio do Estado. Falo da educação em sentido amplo, ou seja,
aquela que começa no lar. A socialização começa na família. É assim que,
enquanto ideologia, o racismo se mantém e reproduz. A educação colabora para a
perpetuação do racismo.
CC: A escola
brasileira está preparada combater o racismo?
KM: As leis 10.639
e 11.645 tornam obrigatório o ensino da cultura, da história, do negro e dos
povos indígenas na sociedade brasileira. É o que chamamos de educação
multicultural. As leis existem, mas há dificuldades para que funcionem.
Primeiro é preciso formar os educadores, porque eles receberam uma educação
eurocêntrica. A África e os povos indígenas eram deixados de lado. A história
do negro no Brasil não terminou com a abolição dos escravos. Não é apenas de
sofrimento, mas de contribuição para a sociedade.
CC: Uma
estudante angolana foi assassinada recentemente em São Paulo, mas a mídia não
deu a devida atenção. Por que isto acontece?
KM: A imprensa é um
microcosmo da sociedade e ignora, ou finge ignorar, o racismo. Por isso, quando
ocorre um fato desta natureza, não o julga devidamente. Mas a mídia brasileira
também não dedica espaço para o continente africano.

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