VISTA CANSADA
Otto Lara Resende
Otto Lara Resende
Folha de São Paulo, 23 de fev. de 1992
Acho que
foi Hemingway quem disse que olhava cada
coisa à sua volta como se visse pela última vez. Pela última ou pela primeira
vez? Pela primeira vez foi outro escritor quem disse. Essa idéia de olhar pela
última vez tem algo de deprimente. Olhar de despedida, de quem não crê que a
vida continua, não admira que o Hemingway tenha acabado como acabou. Fugiu
enquanto pôde do desespero que o roía - e daquele tiro brutal.
Se eu morrer,
comigo morre um certo modo de ver, disse o poeta. Um poeta é só isto: um certo
modo de ver. O diabo é que, de tanto ver, a gente banaliza o olhar. Vê
não-vendo. Experimente ver pela primeira vez o que você vê todo dia, sem ver.
Parece fácil, mas não é. O que nos cerca, o que nos é familiar, já não desperta
curiosidade. O campo visual da nossa rotina é como um vazio.
Você sai todo
dia, por exemplo, pela mesma porta. Se alguém lhe perguntar o que é que você vê
no seu caminho, você não sabe. De tanto ver, você não vê. Sei de um
profissional que passou 32 anos a fio pelo mesmo hall do prédio do seu escritório. Lá estava sempre, pontualíssimo,
o mesmo porteiro. Dava-lhe bom-dia e às vezes lhe passava um recado ou uma
correspondência. Um dia o porteiro cometeu a descortesia de falecer.
Como era ele?
Sua cara? Sua voz? Como se vestia? Não fazia a mínima idéia. Em 32 anos, nunca
o viu. Para ser notado, o porteiro teve que morrer. Se um dia no seu lugar
estivesse uma girafa, cumprindo o rito, pode ser também que ninguém desse por
sua ausência. O hábito suja os olhos e lhes baixa a voltagem. Mas há sempre o
que ver. Gente, coisas, bichos. E vemos? Não, não vemos.
Uma criança vê
o que o adulto não vê. Tem olhos atentos e limpos para o espetáculo do mundo. O
poeta é capaz de ver pela primeira vez o que, de fato, ninguém vê. Há pai que
nunca viu o próprio filho. Marido que nunca via a própria mulher, isso existe
às pampas. Nossos olhos se gastam no dia-a-dia, opacos. É por aí que se instala
no coração o monstro da indiferença.

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