Antônio David e Lincoln Secco,
especial para o Viomundo
Em Botucatu, próspera cidade do
oeste paulista, a elite local foi às ruas para protestar no mesmo dia 20 de
junho em que a esquerda foi expulsa da Avenida Paulista por militantes de
direita. Um metalúrgico de 45 anos vestia uma camisa do Partido Comunista
Revolucionário com a foice e o martelo. Dois jovens declarando-se do MPL e sem
dizer os nomes mandaram aquele homem retirar sua camisa, pois aquela não era
uma manifestação de partidos.
Por que dois jovens que nunca
trabalharam e talvez nunca lutaram por nenhuma causa coletiva, podiam se
dirigir naquela forma a um operário comunista? Em tempo: não existia até aquele
momento MPL em Botucatu.
Os ataques físicos à esquerda
partidária e ao próprio Movimento Passe Livre deixaram as esquerdas perplexas.
É que há muito ela se sentia dona das ruas. Por mais que repudiemos tais
ataques, é preciso dizer que não são manifestos de intelectuais (embora
importantes) e defesa do direito democrático de erguer qualquer bandeira que
calarão os direitistas nas ruas.
Os militantes mais maduros
lembram que em 1988, quando um grupo de carecas de direita tentou invadir um
comício de primeiro de maio na Praça da Sé em São Paulo, eles foram
violentamente reprimidos pela esquerda. Mesmo nas manifestações maiores era
impensável a presença de alguém com símbolos de direita nas ruas. A Direita não
se manifestava assim ou o fazia em locais isolados.
Que a esquerda seja reduzida a
isto seria lamentável. O primeiro passo para sair do impasse é compreender que
há nas ruas uma classe média híbrida, mas claramente influenciada pela mídia
conservadora. Suas opiniões são irracionais, embora manipuladas racionalmente
pela imprensa.
A composição social da maioria
dos manifestantes pelo menos até o fim de junho revelou uma rebelião da classe
média com a participação um pouco maior de pobres em algumas regiões do país.
Segundo a Folha de S. Paulo, 84% dos manifestantes paulistas do dia 17 de junho
não tinham preferência partidária, 71% participaram pela primeira vez num
protesto e 53% têm menos de 25 anos. Os estudantes eram 22% entre os
manifestantes e pessoas com ensino superior 77%.
A composição social determina a
agenda do movimento? A classe média é uma classe em trânsito. Como num ônibus,
alguns querem entrar. Mas diferentemente de um ônibus lotado, muitos têm medo
de descer. Só uma pequena parcela acredita mesmo que vai ascender rapidamente à
classe superior. Ora, uma classe em trânsito é uma classe em transe. Ela é
capaz de unir programas opostos num mesmo movimento. Ela pode oscilar para a
esquerda e a direita.
Nas manifestações de 2013 é
possível que estivessem jovens da classe média tradicional com medo de descer e
jovens beneficiários das melhorias sociais induzidas pelo Governo Lula. Estes
querem “entrar no ônibus” porque suas expectativas subiram mais do que sua
condição social.
O que as manifestações nas
últimas duas semanas mostraram? Que havia uma demanda represada latente por
radicalização na sociedade. Ou seja, por mais que se esforce e seja
parcialmente bem-sucedido na estratégia de arbitragem de interesses, o governo
cada vez menos conseguirá evitar a polarização de classe, que agora chegou às
ruas.
Aqui é necessário fazer uma
digressão. A classe trabalhadora brasileira não é um todo homogêneo. Possui
frações. Além do proletariado fabril, cujo paradigma é o metalúrgico, há uma
nova classe trabalhadora, predominantemente jovem, que ascendeu via ensino
superior privado, que consome mais, tem maiores expectativas, mas não enxerga
perspectivas de futuro no mercado de trabalho. Por isso, vive sob tensão. E as
ruas mostraram que essa tensão pode ser canalizada tanto pela esquerda como
pela direita.
Por outro lado, há uma outra
fração da classe trabalhadora, muito superior em tamanho, que ainda vive em
condições de pobreza e miséria, e que constitui a principal base social e
eleitoral do lulismo. Segundo André Singer, essa fração quer mudanças, mas
possui um traço conservador: rejeita a radicalização política, pois associa o
tumulto social ao desemprego e à carestia. Para mantê-los a seu lado e
favorecê-los, a estratégia dos governos Lula e Dilma consiste em evitar a
radicalização. De fato, este setor tem sido beneficiado: a pobreza e a
desigualdade estão caindo – o traço conservador está na lentidão do processo.
Mas há aqui um paradoxo. O
governo tem razões para evitar a radicalização política: a radicalização
suscitaria crises, instabilidade, fuga de capitais etc., o que tenderia a
elevar o nível de desemprego e a afetar diretamente o subproletariado. Nessa
situação, além do risco de ver bloqueado o processo (lento) de redução da
pobreza, essa fração de classe provavelmente enxergaria na direita uma
alternativa política; some-se a isso o fato de que hoje a classe média
tradicional é, dentre todas as classes, aquela que está se sentido mais
prejudicada e tem maior força de ânimo para ir às ruas manifestar seu
descontentamento com pitadas de protofascismo, como já ocorreu outrora na
história do Brasil.
Porém, na medida em que viabiliza
a ascensão social dos de baixo, a estratégia precisa viabilizar a organização e
a mobilização da nova classe trabalhadora, caso contrário essa fração de classe
poderá optar por alternativas conservadoras – e a explosão que houve agora o
comprova. Se a nova classe trabalhadora pender para a direita, não se trata de
perder apenas o governo nas urnas. É o processo em curso de combate à pobreza e
à desigualdade que será bloqueado.
Dito isso, o impasse da
estratégia do lulismo pode ser colocado nestes termos: de um lado, é necessário
evitar a radicalização, pois sua base social rejeita a radicalização; de outro,
é necessário preparar-se para a radicalização, pois, na medida em que essa base
social ascende, a radicalização torna-se inevitável. Mas como preparar-se para
a radicalização, senão através da organização, mobilização e luta? A estratégia
do lulismo só poderá viabilizar-se se tiver força para superar-se, ultrapassar
o paradoxo inscrito nela mesma.
A radicalização ensaiada em 2005
não teve eco nas ruas, só nas redes virtuais. Hoje, tem apoio de massas e
aprovação de uma parte imensa dos expectadores. A presidenta Dilma Roussef
parece ter feito dois movimentos ousados. O primeiro é legitimar nas
manifestações os interlocutores de esquerda: o MPL, o qual de fato já foi
ultrapassado pelas ruas, e o MTST. O segundo movimento da presidenta foi jogar
as manifestações contra o Congresso e este já acusou o golpe e chamou a
proposta de Constituinte exclusiva de autoritária.
Mais do que bom ou ruim, estamos
diante de uma janela histórica. Cabe a esquerda aproveitá-la. Sobretudo ao PT.
O problema é que há muito tempo não faz parte da sua estratégia mobilizar a
sociedade, pois o lulismo se baseia na acomodação e não no conflito. Voltamos,
assim, ao paradoxo. Saberá o PT identificar e assumir a inevitável necessidade
de radicalização inscrita em sua própria estratégia de não radicalização?
*Lincoln Secco é Professor de
História Contemporânea na USP; Antonio David é Pós Graduando em Filosofia na
USP
Comentários
Postar um comentário
12