Ascensão de uma civilização da imagem com a onipresença da
televisão, retorno da escrita com a emergência do e-mail e da internet... E se,
ao considerar como rivais esses dois meios de comunicação – o texto e a imagem
–, terminássemos por perder de vista suas naturezas gêmeas e sua intimidade
primordial?
por Gérard Mordillat
Na Idade Média, os peregrinos penduravam em seus chapéus
minúsculos espelhos, convencidos de que quando se prostrassem diante da santa
relíquia, ao final de seu périplo, a imagem desta persistiria no amuleto.
Persistência da imagem piedosa que os protegeria dos perigos, das doenças, do
mal, do diabo e de seus demônios. Esses pequenos espelhos baratos eram feitos
de chumbo polido. Essa indústria, esse comércio, foi a primeira atividade de
Johannes Gutenberg, que tinha feito seu aprendizado como ourives e dominava não
apenas o trabalho dos metais mas também suas ligas. Ele fabricou e vendeu esses
pequenos espelhos aos peregrinos até que a prática fosse esquecida, perdida, ou
que ele se tivesse cansado. Liberto de uma atividade tão medíocre, ele se
lançou na fabricação de letras de imprensa móveis, resistentes e reprodutíveis.
É sem dúvida exagerado afirmar que Gutenberg inventou a
imprensa. Por outro lado, é certo que foi ele quem sintetizou os elementos
conhecidos, mas dispersos, que iriam levar ao seu aperfeiçoamento moderno e a
seu desenvolvimento. Ele foi, então, merecidamente considerado como “o primeiro
a imprimir um livro digno deste nome” (uma Bíblia), mesmo se, dentre as
primeiras tentativas, encontramos – um belo símbolo – cartas de indulgência.
Cartas de trinta linhas que eram amplamente comercializadas pela Igreja e que
garantiam anos no paraíso a seus compradores.
No dia 31 de outubro de 1517, Martinho Lutero fixou sobre as
portas do castelo de Wittenberg suas “95 teses” contra as indulgências, indignando-se
que se pudesse vender o céu para financiar Albert de Brandebourg (1490-1568),
que ambicionava o cargo de arcebispo de Mayence – a cidade de Gutenberg! Seus
alunos o recopiaram e mandaram imprimir. Essas palavras em letras de chumbo
foram as primeiras armas dos monges-soldados que conduziram à Reforma...
O espelho de chumbo que conservava o reflexo do objeto
observado (imagem santa ou vulgar) e o chumbo da palavra impressa (religiosa ou
profana) são, portanto, dois elos de uma corrente que ninguém seria capaz de
separar. Existe uma ligação tangível entre a persistência da imagem no espelho
e a da palavra sobre a página impressa, entre a literatura e a imagem. A
palavra e a imagem se tornaram perfeitos sinônimos. Assim, é impossível limitar
o termo “imagem” à sua dimensão pictural ou fotográfica, assim como a palavra
não pode ser reduzida a seu sentido aparente. Entre ambas, há uma irresistível
atração, uma condensação extrema de sentido, precipitada de emoções, fissão
nuclear de expressões num corpo infinitamente pequeno cuja explosão produzirá a
obra. Para significá-lo com força, talvez fosse necessário forjar um ideograma,
que, num único signo, diria: letra-palavra/imagem-reflexo.
Palavra/imagem: dois espelhos face a face, irmãos siameses
nascidos de um mesmo ovo. O ovo de chumbo de Gutenberg.
A partir da sua invenção, duas bíblias se fundiram numa só:
a impressa (a Bíblia para ser lida) e a para ser vista, a imensa iconografia
cristã, considerada como a “Bíblia dos analfabetos”.
***
Nos tempos antigos, quando uma morte atingia uma casa,
parava-se o pêndulo dos relógios, os ponteiros dos relógios de pulso. Depois,
nesse tempo suspenso, como numa tela pintada, cobriam-se os espelhos com um
pano opaco. Os espelhos não deviam refletir a imagem do morto para que esta não
viesse substituir a do vivo.
Os antigos eram prudentes: esse reflexo do espelho é o olhar
impossível de manter; é o olhar da morte que encara o vivo se nenhum véu o
impedir. Aí está o perigo, a ameaça. Num set de filmagem, num cenário onde
existem diversos espelhos, para determinar a posição exata da câmera, há uma
regra que se expressa numa frase infantil: “Você não me vê, mas eu te vejo”. Em
outras palavras, se o espelho vê a câmera, a câmera se verá no espelho, e com
ela todos os técnicos que a rodeiam. Então é imprescindível encontrar um lugar
num ângulo tal que a câmera escape a esse reflexo mortal para o filme.
O costume de cobrir os espelhos na casa de um morto
desapareceu, mas a ideia de um poder mágico do reflexo persiste sob outras
formas. Nem que fosse apenas pelas imagens que penduramos nas paredes de nossas
casas, nos livros que mantemos à vista. Esses objetos nos parecem opacos,
inofensivos como espelhos encobertos. Grave erro: para nossa felicidade ou
infelicidade, as telas, os escritos (estes espelhos sem reflexo) têm efeitos. O
espelho apresenta uma imagem invertida àquele que se olha nele, assim como a
palavra, feita de letras de chumbo, se escreve invertida na caixa onde é
composta. Talvez seja por isso que o reflexo – seja ele figura ou escrita, arte
em todo caso – sempre desafia a morte; sempre desafia esse inverso da vida que,
livro após livro, filme após filme, tela após tela, nós procuramos distinguir
na escuridão que nos envolve. Qualquer que seja o assunto – sem que seja
necessário colocar em cena ossos ou um crânio –, uma Bíblia, um texto, uma
tela, um filme, uma fotografia é uma vaidade cuja finalidade é relembrar a cada
um que é mortal. Lembrança sem indulgência, essas imagens livrescas ou
picturais só existem enquanto reflexos de nós mesmos. Mas somos muito
facilmente leitores, espectadores distraídos... Não sabemos ver, não sabemos
ler por causa do véu que frequentemente é colocado sobre nossos olhos. As
imagens, como numa definição de palavras cruzadas, ocultam, como uma tela: “dá
a ver e impede de ver”. Lê-las, apesar de tudo, analisá-las, compreendê-las,
nada é além de tentar ler a si mesmo, se analisar, se compreender para além do
véu, apenas sob o olhar da morte.
Como então não se interrogar de novo e sempre sobre esse
confronto, não para saber o que significa, mas, muito mais dolorosamente, para
que ele serve; para que ele nos serve? Para que serve o véu que nos cega, o
reflexo que nos deslumbra? Como responder às questões que nos são dirigidas pelas
imagens, sejam elas pintadas, fotografadas, cinematografadas, sonoras ou
nascidas do livro sempre lido e relido, palavra por palavra, letra por letra?
Como mergulhar na tinta da palavra mais simples, a mais tênue, para descobrir a
noite dentro dela, tão vasta que uma vida inteira nunca será suficiente para
explorá-la?
Em As meninas de Diego Velasquez, o reflexo do rei e da
rainha no espelho do fundo não é importante. É uma armadilha, uma brincadeira
do artista. O único reflexo que vale, é a tela onde o próprio Velasquez encara
o espectador. Quando um pintor, um fotografo, um escritor realiza um retrato –
ou até um autorretrato –, o que ele pinta, fotografa ou escreve, é o retrato do
espectador ou do leitor. O retrato deste ou desta que, diante da obra, busca
desesperadamente se reconhecer nos traços que lhe são estranhos; que busca se
ver no espelho de um outro sem entender que ele olha, sem véu, a morte de
frente.
O caráter enigmático das imagens – ainda uma vez, de todas
as imagens, incluindo as palavras consideradas como imagens! – é intrínseco;
seja Velasquez, a pintura abstrata, uma imagem de São Sulpício, uma plaquinha
de escrita cuneiforme, hebraico, latim, ou o retrato de um pequeno branco
norte-americano por Walker Evans, cada imagem levanta uma questão precisa.
Ainda mais necessário entender que para além da armadilha da representação ou
da narrativa, o que nós vemos, o que nós lemos, somos nós. Mais de uma vez, o
pintor Francis Bacon expôs suas telas atrás de um vidro, para ter certeza de
que os espectadores “se veriam”; e eles se viam! E o que eles viam era
imediatamente da ordem do trágico. Era dessas “verdades amargas ocultas até
hoje” das quais falava São Justino.
Eram eles, terrivelmente eles, em Bacon.
As imagens nos penetram pelo olho, pela orelha, por todos os
poros da nossa pele. Sejam as paisagens que atravessamos, aqueles que somos de
dia como de noite, pintura, cinema, fotografia, televisão, palavras escritas,
palavras ouvidas nos irrigam de imagens e fazem bater nosso coração. É por isso
que as letras de chumbo como os pequenos espelhos de Gutenberg nos assustam
tanto quanto nos fascinam. Nosso corpo é um corpo de imagens que o sono exalta
nos sonhos. E é a pele dos sonhos que nomeamos “obras de arte” para
respeitá-las, quer dizer para ao mesmo tempo mantê-las à distância e
admirá-las.
Gérard Mordillat
Escritor e cineasta. Última obra publicada: Rouge dans la
brume [Vermelho na bruma], Calmann-Lévy, Paris, 2011.
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