Os bens públicos globais são uma proposição de restringir os
direitos de propriedade, sobre bens de utilidade e interesse publico. A água, a
terra, o ar, as sementes, são bens públicos globais. Eles se confrontam com a
propriedade privada e o controle do capital quando este quer transformar estes
bens em mercadoria
por Inge Kaul
É necessário repensar o equilíbrio entre “privado” e
“público”, entre as atividades dos atores “privados” em âmbito global (Estados,
grandes empresas, ONGs e indivíduos) e o domínio público mundial. Como levar os
diferentes atores a serem mais responsáveis por suas ações – e especialmente
pelos danos que possam causar?
Começa a surgir uma reflexão, mesmo nos círculos mais
neoliberais, a partir dos seguintes eixos:
• Uma regulamentação excessivamente tolerante de determinado
país acaba fazendo com que seus custos (sociais, econômicos ou ambientais)
sejam arcados por outros, o que não é apenas injusto, mas também ineficaz;
• As desigualdades crescentes comportam aquilo que os
economistas chamam de importantes “externalidades negativas”: a pobreza de uns
mina a prosperidade de outros.
Essa análise é particularmente aplicável à poluição
transfronteiriça, às epidemias, às privações humanas (miséria ou violação dos
direitos fundamentais são fermentos da emigração) e ao direito comercial
(investidores buscam segurança em regimes de propriedade intelectual, regulação
bancária etc.).
Uma nova ferramenta
teórica
Na era da globalização a resposta às necessidades “privadas”
(incluindo os interesses nacionais) passa cada vez mais pela realização de
objetivos comuns e pela cooperação internacional. Para isso, o conceito de
“bens públicos globais” é especialmente útil.
Há uma primeira categoria, tradicional, de bens públicos
globais. Estas se encontram “fora” dos Estados, ou nos limites de suas
fronteiras, e sua regulamentação constitui o que se convencionou chamar de
“assuntos externos”. Assim, o espaço e os oceanos, que existiam antes de
qualquer atividade humana, são regidos por regulamentações internacionais. No
século XVII foram assinados os primeiros tratados internacionais para garantir
livre acesso ao alto-mar. Com a intensificação das atividades econômicas
internacionais ao longo de todo o século XIX e início do XX, multiplicaram-se
acordos desse tipo: transporte de mercadorias e correspondência, telecomunicações,
aviação civil. Quando são multilaterais e de envergadura planetária, eles
compõem um bem público global – pois criam um quadro regulamentar comum. Esse
primeiro tipo de bens públicos globais é hoje mais importante do que nunca, em
razão do crescimento das atividades econômicas internacionais e da globalização
da tecnologia e das comunicações (Internet).
As questões mundiais que estão no topo da agenda política
constituem um segundo tipo de bens públicos, que já não estão simplesmente “do
lado de fora”, no exterior dos Estados, mas atravessam as fronteiras, saindo
assim do simples campo dos “assuntos externos”. Durante muito tempo
consideramos os bens públicos naturais (camada de ozônio) como gratuitos,
realizando um consumo excessivo. Medidas corretivas, a exemplo da redução do
uso de clorofluorcarbono (CFC) e de energias não-renováveis, devem agora ser
aplicadas em toda parte, no plano nacional.
Em certo sentido, esses bens públicos globais, que
acreditamos estar “do lado de fora”, tornaram-se questões de política nacional.
Inversamente, bens públicos tradicionalmente considerados nacionais (saúde,
gestão do conhecimento, eficiência do mercado, estabilidade financeira, e até a
lei, a ordem, os direitos humanos e a justiça econômica) ultrapassam a soberania
nacional.
O controle de epidemias é uma das pedras angulares da
cooperação internacional há mais de um século, porém seu funcionamento já não
pode apoiar-se na mera coordenação de sistemas nacionais de alerta. Em outras
palavras, essas questões de política mundial exigem – mais do que acordos de
princípio (como os que garantem a liberdade de circulação de navios
estrangeiros em alto-mar) – uma harmonização das políticas nacionais e das
efetivas mudanças em curso.
Vários fatores explicam a emergência desse novo tipo de bens
públicos globais. Em primeiro lugar, a maior abertura das fronteiras facilitou
a extensão de “males globais”: social, desvalorização competitiva e até
comportamentos de risco (consumo de tabaco). Em segundo lugar, a globalização porta
um risco sistêmico global: volatilidade inerente aos mercados financeiros
internacionais, mudanças climáticas planetárias, explosões políticas provocadas
pelo crescimento das desigualdades... Um terceiro fator é o poder crescente do
setor privado e das firmas transnacionais, além da sociedade civil e ONGs. Com
objetivos próprios, eles pressionam os governos a aderir a normas políticas
comuns, sejam elas técnicas ou de respeito aos direitos humanos.
Como garantir a produção de um bem? Quando se trata de bens
privados, o investimento e a produção são, em princípio, motivados pela demanda
– e as empresas privadas planejam cuidadosamente sua produção para garantir
eficácia e competitividade. Já a demanda por bens públicos, particularmente a
demanda por bens públicos globais, é temperada pelo medo de que nem todos
paguem sua parte.
O Protocolo de Montreal, assinado em 1987 para reduzir as
emissões de CFC, com o objetivo de lutar contra a destruição da camada de
ozônio apresenta objetivos simples e define incentivos claros, como uma ajuda
adicional para que os países mais pobres possam respeitar seus compromissos
internacionais, e penalidades (sob a forma de sanções comerciais) para aqueles
que não os respeitarem. Portanto, a exemplo desse protocolo, existem
estratégias para a produção de bens públicos globais1.
Três diferentes classes de bens implicam procedimentos
específicos:
• Alguns bens públicos globais, como o ar puro (ou, mais
modestamente, a redução dos gases de efeito estufa), demandam um “procedimento
aditivo”. Eles só podem ser obtidos pela soma de um grande número de contribuições
de igual importância. Em outras palavras, uma tonelada de gás de efeito estufa
economizada em Bangladesh é igual à mesma quantidade no Brasil ou no Peru, nos
Estados Unidos ou na Alemanha. Claro que o objetivo só será alcançado se todos
aceitarem as mesmas regras, oferecendo contribuições nos quadros dos limites
globais, seja em produto (reduzindo efetivamente suas emissões) ou em dinheiro
(comprando direitos de emissão de outros países), de acordo com os
procedimentos defendidos pelos Estados Unidos em Kyoto, em 1998;
• Para outros bens públicos a estratégia adequada é socorrer
o elo mais fraco. Por exemplo, para evitar a propagação de doenças contagiosas,
todos os países devem adotar conjuntamente medidas profiláticas. Se um quebra a
cadeia de prevenção, os esforços de todos os outros serão em vão. Como o custo
do mal global resultante da ausência de ajuda é muito maior do que o custo da
própria ajuda, torna-se eficaz (e não apenas necessário) prestar apoio ao ator
mais fraco;
• Finalmente, há bens públicos globais, sobretudo no campo
do conhecimento, que assentam num único avanço decisivo. Basta inventar a
vacina contra a poliomielite em um lugar do mundo para que ela possa ser
utilizada em toda parte – com a condição, no entanto, de que as patentes não
impeçam o acesso das populações mais pobres à aplicação de tais descobertas2.
Em todos os casos, é indispensável uma colaboração integrada
entre diferentes atores, tanto em escala nacional como internacional.
Apesar da importância crescente dos bens públicos globais,
os Estados continuam a se comportar no cenário internacional como atores
“privados”: preocupam-se acima de tudo com seu “interesse nacional”,
considerando muitas vezes que a melhor opção, a mais racional para eles, é
esperar que outros decidam prover um bem público, para então aproveitar-se
gratuitamente dele – atuando como “passageiros clandestinos”.
Princípio de justiça
Nos países mais ricos, os fundos para a manutenção do
planeta – intervenções em tempos de crise financeira, proteção da camada de
ozônio, luta contra o aquecimento global – são muitas vezes retirados de
recursos de apoio ao desenvolvimento ou de fundos de emergência para os países
pobres. Estimativas indicam que aproximadamente um quarto dos recursos
anualmente alocados como ajuda internacional ao desenvolvimento serve de fato
às perspectivas globais, ou seja, às atividades destinadas a manter um
equilíbrio do mundo, e não a permitir que os mais pobres satisfaçam suas
necessidades e interesses nacionais (“privados”).
O que se propõe? Em primeiro lugar um estudo sistemático do
conceito, a análise dos efeitos dos bens públicos globais sobre a vida
cotidiana. Quais são, por exemplo, os impactos da busca da estabilidade
financeira sobre o emprego e a aposentadoria? Quais as consequências do
crescimento das desigualdades sobre as migrações internacionais e a paz?
Somente quando a opinião pública perceber que o bem-estar
depende dos bens públicos globais e da cooperação internacional é que os
políticos sentirão o dever de enfrentar essas necessidades, de trazer o
“exterior” (a camada de ozônio) para as questões nacionais, e de repensar o
“interior” (saúde, aposentadoria) como uma questão de política internacional.
Nessa perspectiva, o envolvimento dos parlamentares nacionais
em todas as decisões relativas à cooperação internacional é uma prioridade,
mesmo que seja apenas para pegar essas questões “de fora”, geralmente confiadas
aos tecnocratas, e trazê-las de volta para o cidadão (ver boxe).
Para isso, um pré-requisito de qualquer discussão sobre bens
públicos globais é fundamentá-las no princípio da justiça mundial. Mesmo que um
bem global possa efetivamente revestir-se de um caráter público, nem todos lhe
atribuem necessariamente o mesmo valor.
Um banqueiro de investimentos ocidental dará grande
prioridade à estabilidade financeira, aprovando o controle da malária por conta
de suas viagens. Já o camponês do Sul preferirá que nos debrucemos sobre a
doença, dado que a volatilidade da moeda o afeta de maneira menos direta. Do
mesmo modo, prioridades diferentes podem ser estabelecidas em relação à
propriedade intelectual, caso se queira promover o investimento privado em
pesquisa, ou favorecer a disseminação do conhecimento.
Um programa de bens públicos globais deve considerar de
maneira equitativa as prioridades das diferentes populações envolvidas. E é
necessário, evidentemente, que esses novos bens públicos não agravem as
desigualdades existentes. A Internet é o exemplo mais gritante desse dilema,
permitindo, por um lado, difundir conhecimento com um custo mínimo e, por
outro, criando uma fratura cada vez maior entre “inforricos” e “infopobres”.
Da mesma maneira, a existência de um sistema de livre troca
– em si um bem público global – favorece, num mundo desigual, os mais fortes,
suscitando assim uma desconfiança em relação à política mundial. A maioria das
negociações internacionais se dá em torno dos bens públicos globais que
interessam mais aos ricos, negligenciando os interesses de outros países. A
prioridade dada a determinado bem público global é formulada em função das
preferências de um clube de países ricos. A equidade é uma dimensão importante
de promoção de bens públicos mundiais, e não é de espantar que a desigualdade
de representação dos interesses nas instâncias internacionais tenha sido
denunciada nas manifestações desde Seattle e Washington.
Para além de seu valor instrumental, a justiça é em si um
bem público global. É um recurso inesgotável – o fato de um indivíduo ser
tratado com justiça em nada diminui as chances de outra pessoa ser tratada da
mesma forma. Quanto mais amplamente se aceite e encoraje o conceito e a prática
da equidade, maior será a confiança de todos em poder contar com ela um dia.
Sem uma justiça, que, por definição, se aplique a todos os povos, regiões e
gerações, é vã a pretensão de defender o interesse geral.
A noção de “prioridades globais compartilhadas” existe há
muito tempo. Ela certamente foi uma inspiração após as devastadoras guerras do
século XX. A criação da Organização das Nações Unidas (ONU) foi motivada por
essa perspectiva. Assim como o Plano Marshall de reconstrução da Europa e, no
mesmo modelo, o sistema internacional de ajuda ao desenvolvimento dos países
mais pobres.
É chegado o tempo de fazer renascer essa idéia das
“prioridades globais compartilhadas”, sob a forma, mais atual, dos “bens
públicos globais”. Essa noção poderá desempenhar um papel decisivo para
transformar a gestão da globalização, inspirada numa visão utópica da nova
sociedade.
1 Para uma abordagem
completa e rigorosa dessa questão, ler Todd Sandler, [Mudanças globais. Uma
abordagem dos problemas ambientais, políticos e econômicos], Cambridge
University Press, Cambridge, 1997.
2 Ler Martine
Bulard, “Les firmes pharmaceutiques organisent l’ sanitaire” [Empresas
farmacêuticas organizam o sanitário], janeiro de 2000.
Nenhum comentário:
Postar um comentário