Em um centro de detenção no Arizona, latinos são mantidos sob temperaturas congelantes; muitos contraem pneumonia e outras doenças
Do www.ig.com.br
No momento em que a patrulha de fronteira avançou sobre
Cláudia e seu marido, Marvin, enquanto tentavam atravessar o Rio Grande, uma
fronteira natural entre o México e os Estados Unidos, a salvadorenha de 31
anos, mãe de duas crianças, sentiu-se vagamente aliviada. Era o fim de uma
árdua jornada de 18 dias desde El Salvador, de onde a família fugiu para
escapar das mãos – e facas – de uma gangue criminosa. Porém, era o começo de um
novo e inesperado suplício: ela foi separada do marido e presa com os filhos –
um menino pré-adolescente e uma menina, ainda bebê – para as celas cujo nome
tem se tornado conhecido entre os imigrantes. “Nos levaram para as famosas
hieleras”, diz Cláudia.
As hieleras, ou “os freezers”, é como imigrantes e alguns
agentes da patrulha de fronteira se referem às gélidas celas de detenção que
ficam ao longo da divisa entre EUA e México. As instalações são usadas para
abrigar imigrantes ilegais temporariamente, até que possam ser transferidos
para uma prisão das forças legais de Imigração e Alfandega (ICE, em inglês), de
onde são enviados aos seus países de origem, ou soltos até as audiências de
imigração.
Depois de serem detidos, Marvin e Claudia prestaram uma
queixa contra a patrulha da fronteira, o que pode levar os agentes a
enfrentarem ações disciplinares. O bebê do casal ainda hoje tem uma tosse
persistente, segundo Claudia. “É assim que eles nos fazem sentir absolutamente
sem valor, como se tivesse cometido um crime horroroso”.
Segundo entrevistas e documentos jurídicos, muitos
imigrantes são presos nestas salas cujas temperaturas são mantidas tão baixas
que homens, mulheres e crianças acabam desenvolvendo doenças associadas ao
frio. As celas são superlotadas, com comida, água e padrões de higiene
inadequados – o que causa mais doenças.
Em 2011, uma pesquisa feita com recém-imigrantes pelo grupo
de defesa No More Deaths mostrou que 7 mil dentro dentre 13 mil imigrantes
entrevistados enfrentaram condições desumanas nas celas da patrulha de
fronteira. Cerca de 3 mil afirmaram terem sofrido frio extremo.
O conturbado debate no congresso americano sobre expandir a
patrulha de fronteira com o México e revisar o sistema de imigração no país
jamais tocou no assunto do tratamento aos imigrantes ou as condições das celas
de patrulha. Mas, para milhares de homens e mulheres, esses prédios significam
uma recepção dura logo depois do acreditavam ter sido a parte mais difícil da
jornada, a travessia da fronteira. Além disso, os imigrantes presos têm passado
mais tempo nesas celas temporárias porque as instalações da ICE já estão muito
lotadas e não há agentes de fronteira suficientes para resolver rapidamente
seus problemas.
Em junho, a senadora Barbara Boxer, uma democrata da
Califórnia, propôs uma emenda ao pacote de revisão da imigração, impondo um
limite de pessoas presas por cela, uma temperatura adequada, água potável,
itens de higiene e acesso a cuidados médicos. Porém, a emenda foi retirada da
versão do Senado. Em setembro, outra deputada democrata, Lucille Roybal-Allard,
também da Califórnia, incluiu pontos similares no projeto de lei “Protect
Family Values at the Border Act” (“Proteger Valores Familiares na Fronteira”,
em inglês), que atualmente está sendo discutida no congresso.
O repórter Luis Megid, Univision (parceira da CIR),
conseguiu visitar as celas provisórias, de concreto com privadas de alumínio.
Não lhe foi permitido entrar em uma cela com detentos para julgar a
temperatura, mas o oficial Daniel Tirado garantiu que agentes dão cobertores a
quem pedir. O local pareceu mais limpo do que descrito pelos imigrantes, mas
Christopher Cabrera, vice-presidente do Conselho de Patrulha de Fronteira,
sindicato que representa os 21 mil agentes da ICE, contou que a equipe de
limpeza é imediatamente acionada quando há uma visita ou inspeção especial de
investigação.
É claro que as estações estão superlotadas. Segundo o
oficial de patrulha da fronteira Juan Ayala, outro dia ele levou quase cinco
horas para preparar 732 sanduíches de mortadela para um único almoço na estação
da patrulha em McAllen, no Texas. Ele mesmo carregou os sanduíches e os sucos
em um carrinho de compras, e os entregou aos 732 imigrantes adultos detidos da
estação naquele dia.
A estação, segundo Cabrera e Ayala, foi construída para
abrigar entre 200 e 250 presos.
A tortura do frio
Dentre todas as adversidades, os imigrantes ex-detentos
relatam que a pior era mesmo o frio extremo. Muitos dos que atravessaram a
fronteira e acionaram advogados e grupos de direitos concordaram dar seus
depoimentos para esta reportagem, sob a condição de anonimato.
Adonys, 15, que migrou de Honduras em julho para juntar-se à
sua mãe nos Estados Unidos, disse que a patrulha de fronteira o apreendeu
atravessando a divisa perto de McAllen, no meio de um grupo de 28 homens,
mulheres e crianças. Já na estação, os oficiais o obrigaram, a despir seu
casaco – ele ficou apenas com uma camiseta – e tirar o cadarço dos sapatos.
“Quando agachei para desamarrar o sapato, senti um agente jogando água gelada
em mim. Ele ficou rindo”. Cinco outros policiais ficaram parados, sem dizer
nada. Depois, o colocaram em uma cela fria, com camiseta molhada e tudo. “Pedi
algo para me cobrir e um deles disse ‘Não, você vai ficar aí desse jeito’”,
lembra Adonys. “Estava muito, muito frio. Era insuportável. Não conseguia
aguentar.”
Sofia, uma mulher de 25 anos que também fez pedido de
refúgio nos EUA, ficou presa ali por duas semanas. Segundo ela, a cela era tão
fria que dava para ver sua respiração. “É tão frio que você treme e os lábios
racham”.
Apesar das condições relatadas, existem poucas queixas
legais sobre a detenção de curto prazo. Geralmente, os advogados dos imigrantes
se importam mais com a questão imediata de como ficar nos EUA. No começo deste
ano, a organização Americanos por Justiça Imigratória, sediada na Flórida,
entrou com um processo legal por danos a sete mulheres e um homem detidos nas
hieleras de estações no sul do Texas.
O problema, entretanto, se repete ao longo de toda a
fronteira dos EUA com o México, de acordo com advogados e ativistas. “Não
poderia ser mais difundido”, diz James Duff Lyall, um advogado de causas
migratórias da ACLU (American Civil Liberties Union) no Arizona.
Punição sem crime?
A preocupação, segundo alguns advogados de imigrantes
detidos, é que eles estejam sendo colocados em lugares gelados para serem
punidos – sendo que o propósito da detenção de fronteira é assegurar que
pessoas procurando abrigo ou encarando deportação compareçam às audiências.
Elas não são acusadas de nenhum crime.
Lyall, da ACLU, explica que a detenção de imigração é regida
pela Quinta Emenda da Constituição Americana, que proíbe condições que
consistam em punição até que o processo seja julgado, incluindo a privação de
comida, roupa, abrigo e cuidados médicos adequados. Ele também relata violações
como a falta de acesso a um advogado e aos consulados, e a coerção de detentos
a assinarem ordens de remoção voluntária.
Um dos problemas é que a Agência de Proteção de Fronteira e
Alfândega não é sujeita a inspeções regulares que garantam cumprimento dessas
diretrizes.
A política da Agência dita que “sempre que possível”
detentos não podem ser mantidos em prisões temporárias por mais de 12 horas.
Passadas 24 horas, um memorando tem que ser enviado para o encarregado pela
estação de patrulha. Depois de 72 horas, o chefe do setor deve ser avisado.
Para advogados de direitos humanos, as condições nas
“hieleras” violam padrões internacionais. Para Michele Garnet McKenzie,
diretora de advocacia na organização Advogados pelos Direitos Humanos, se a
temperatura é rebaixada no intuito de humilhar ou degradar os detentos, se
conformaria um tipo mais grave de violação. “Há um momento em que (a
temperatura) é deliberadamente abaixada como forma de coerção e privação de
sono”, disse McKenzie. “E é aí onde se tem a argumentação para uma queixa
legal”.
Viagem de El Salvador para uma cela de detenção
Para Cláudia e sua família, as celas de detenção frias foram
um verdadeiro choque.
Eles deixaram San Salvador, capital de El Salvador, às
pressas. Encheram duas pequenas mochilas com algumas roupas, fraldas e
dinheiro, e pegaram um ônibus em direção ao norte. Marvin tinha sacado seu
pagamento como motorista de ônibus no dia anterior, e Cláudia tinha um pouco de
dinheiro que conseguiu como vendedora ambulante.
O casal acabara de receber a notícia de que a família fora
“denunciada” – marcada para morrer – pela MS-13, a gangue que controlava o seu
bairro. Isso porque Marvin vira membros do grupo torturando um cunhado de
Cláudia, que tinha no peito a tatuagem de uma falange rival. Por um tempo a
gangue permitiu que a família ficasse em paz; mas quando veio a ameaça, eles
tiveram que fugir.
Durante 18 dias, viajaram em ônibus lotados e velhos até
Cancún, no México, e dali para a cidade de Reynosa, na fronteira com o sul do
Texas.
O bebê pegou um resfriado. Sem dinheiro, tiveram que ficar
oito dias numa casa de um cartel de “coyotes” que atravessam os imigrantes pela
fronteira. Só conseguiram atravessar o Rio Grande quando um familiar enviou a
quantia do Canadá. Foram presos logo depois de cruzarem o rio.
Uma vez dentro da instalação da patrulha de fronteira,
Cláudia recebeu um cobertor que reflete calor, parecido com um saco de
salgadinhos. O filho foi para uma cela com outros adolescentes, ninguém contou
a ela onde seu marido estava, e o bebê tossia muito. A pequena cela estava
cheia.
Milhas longe dali, em outra estação da patrulha de
fronteira, Marvin também estava numa cela lotada e fria. Ali não havia espaço
sequer para agachar-se, quanto mais deitar e dormir. As luzes eram mantidas
acesas o tempo todo, e o oficiais faziam barulho quando algum dos presos
fechava os olhos. Além disso, não havia colchões, apenas o chão de concreto
gelado, debaixo de ventiladores que sopravam um ar gelado.
Em ambas celas, a privada não tinha privacidade. Na cela de
Claudia, uma câmera de segurança mirava o assento, e ela podia ver os oficiais
assistindo toda vez que uma mulher, desesperada, usava o banheiro. Não havia
chuveiros, sabonete ou escovas de dentes.
Claudia comia dois sanduíches por dia, de mortadela no pão
branco. A água tinha gosto de lama, e ela teve medo de beber, pois estava
amamentando a bebê, que tossia cada dia mais. Foram então levadas a um
hospital, onde Cláudia pôde banhá-la e vesti-la com roupas limpas. De volta à
cela, os oficiais não deram os remédios receitados pelo médico.
A família viveu assim por seis dias, ou 144 horas. Sem ter
nenhum conhecido nos Estados Unidos, Claudia e suas crianças hospedaram-se no
La Posada Providencia, um abrigo de imigrantes em San Benito, Texas, cuja diretora,
a irmã Zita Telkamp, ajudou a localizar Marvin.
O bebê ainda está doente e Cláudia tem pesadelos com a
patrulha de fronteira. Agora, o plano, segundo Marvin, é seguir lutando. “Para
que eles não nos mandem de volta.”

Comentários
Postar um comentário
12