Tarso Genro (*) - Carta Maior
O Brasil ficou em segundo lugar, em 2013, no ranking entre
os 90 países que elevaram taxa de juros, só perdendo para a República de
Gâmbia, fechando-a em 10% ao ano. Paralelamente o CEBL (sigla da instituição em
inglês) – Centro de Pesquisas Econômicas e Negócios - registra que em 2023
seremos a 5ª economia do mundo. Prevê, aquela instituição insuspeita de
proteger nossos governos, que alcançaremos daqui a dez anos um PIB de 3,2
trilhões de dólares com o crescimento, portanto, de 1 trilhão de dólares no PIB
entre 2013 e 2023.
Para que tenhamos uma ordem de grandeza relativa do que está
acontecendo em nosso país, lembremos que
a proposta do arquiteto da política de reformas na China Popular, Deng Xiaoping
(1904 – 1997) foi chegar no seu país em 2050
- numa nação de 1 bilhão e 300 mil habitantes no dias de hoje - a um PIB
de 6 trilhões de dólares, “quando teremos” – dizia Deng - “uma renda per
capita, de 4 mil dólares”, com uma
população de 1,5 bilhão de pessoas.
Quatro mil dólares, com uma forte distribuição de renda
já teria sido um impacto gigantesco no
mercado interno em 2050, considerando ainda que a China - já nos próximos 10
anos - portanto até 2024, retirará da miséria e da pobreza mais duzentas
milhões de almas. Mas, as previsões do Presidente Deng “furaram”: a China já
chegou em 2012 a um PIB de 8,28 trilhões de dólares, mesmo reduzindo seu crescimento em função da
crise europeia e americana, promovendo já em 2013 uma renda “per capita” de
mais de 9.000 dólares ano.
A China é um Estado Nacional unificado há mais de 2.5OO anos
e fez, recentemente, uma poderosa Revolução Popular. Esta revolução instaurou
no poder um Partido Comunista que centralizou com poderes quase absolutos, o
Governo e a Política. Em sucessivas fases de disputas permeadas por ações
anárquicas de violência a China abriu uma etapa nacional-desenvolvimentista,
integrada na economia global, que preparou o país para ser a economia mais
forte do Século. No século XXI a China pelo menos dividirá hegemonia sobre o
mundo, com os países capitalistas mais desenvolvidos, mas certamente em
condições de superioridade militar e econômica.
Sobre o caso chinês – seu processo de desenvolvimento
econômico e social acelerado - podemos prestar atenção exclusivamente nos seus
métodos não democráticos (dentro da perspectiva das democracias ocidentais) ou,
por escolha ideológica, só no fato histórico formidável de um país que tirou da
miséria e da doença “um Brasil e ½”, em mais ou menos trinta anos. Ou, se
escolhermos, podemos fazer uma terceira opção e prestar atenção - para fazer
justiça ao seu povo e aos seus lutadores e dirigentes - nos dois processos: seu
crescimento espetacular, combinado com a promoção social dos mais pobres, num
regime político não democrático para os nossos olhos, num país que até há pouco
foi praticamente feudal, tornou-se “agrário” e
depois industrialmente atrasado.
Partir deste olhar mais abrangente para concluir se aquilo
que acontece na China é, ou não, um progresso humanista de cunho social, que
tem elementos importantes de valor universal, não é um olhar manipulatório. O
que ocorre ali pode ter sido a única saída de uma civilização de 5.OOO anos,
cujos conteúdos culturais e políticos jamais experimentaram os processos de
modernização política e social semelhantes à Revolução Francesa, à Revolução
Americana ou à Gloriosa Revolução Inglesa. As chacinas coloniais e imperiais,
que estas mesmas revoluções levaram adiante, não invalidaram as suas conquistas
civilizatórias, sem “luzes” e sem humanidade, que fomentaram o desenvolvimento
capitalista como progresso nos seus moldes clássicos.
Para pensar o Brasil como 5ª. economia mundial, creio que devemos adotar a terceira hipótese:
ver o processo como um todo, sem descarte do compromisso com a democracia e a
República, com os direitos humanos e com a sustentabilidade. Verificar, a
partir daí, o que podemos aproveitar do
universal que tem a experiência chinesa, para que cheguemos em 2023, não
somente como quinta economia mundial, mas no mínimo a 5ª. em distribuição de renda, 5ª.em
educação, 5ª.em sustentabilidade, 5ª. em melhor saúde pública, 5ª. em melhor
mobilidade urbana, 5ª. em respeito aos direitos humanos.
Parto desta reflexão porque de nada adianta ser a quinta
economia do mundo, mantendo as desigualdades sociais e econômicas que ainda
existem no Brasil.
Carregamos nas costas do progresso a exclusão, a violência,
a insegurança e os brutais contrastes entre ricos e pobres, que não somente são
geratrizes de todos os tipos de violência, mas também se apoiam na criação de
empregos de baixa qualidade e qualidade de vida, material e cultural, muito inferior ao possível e
desejável nas grandes regiões metropolitanas.
Nossos governos federais não conseguiram uma correlação de
forças favorável, não só para obter o volume de recursos necessários para
financiar a saúde pública, taxando as movimentações financeiras, como também
não conseguiram condições políticas para uma Reforma Tributária, que pudesse reordenar de forma mais democrática
e eficiente as relações federativas, no plano econômico-financeiro.
O Prefeito Fernando Haddad, por exemplo, neste momento sofre
uma forte campanha de difamação política pela grande imprensa por pretender
adotar um mínimo de justiça tributária, com a simples correção dos valores do IPTU
– o que fizemos em 1990 em Porto Alegre com apoio dos Conselhos Regionais do
Orçamento Participativo e dos movimentos sociais, que hoje frequentemente
tornam-se visíveis somente em demandas
mais imediatas.
Tivemos no país avanços significativos na distribuição de
renda, na inclusão social e educacional, na defesa dos pobres do campo, na
criação de milhões de empregos, que dão um nível de subsistência mínimo aos
assalariados da nação.
Em compensação fomos “obrigados”, pelo “mercado”, a aumentar
a taxa de juros, mesmo com índices reduzidos
de crescimento na economia, o que implica em reconhecer que o Brasil já
não é mais o mesmo, é verdade, mas os fundamentos do Brasil atual - que não é
mais o mesmo - precisam de reformas para que possamos ser outro país,
integralmente.
A grande questão política, para a esquerda que recusa a
fantasia histórica de que está em curso uma revolução socialista no mundo ou
que há possibilidades concretas de um horizonte socialista à médio prazo, é a
seguinte: o que fazer para que a democracia “volte a ter sentido”, como diz
Boaventura Souza Santos? Até agora o Estado Democrático não criou condições
para interferir, de molde a proporcionar uma taxa de juros compatíveis com os
níveis internacionais. Nesta questão, estamos apenas à frente da remota
Gâmbia (país da África Ocidental com uma
população ligeiramente superior a porto Alegre), o que nos obriga a pensar
quais as mudanças estruturais que “devemos”, para que a taxa de juros, portanto, compatibilize-se com
o processo de desenvolvimento?
Deixando de lado a fantasia de que se trata, apenas, de
arbitragem voluntarista da Presidenta ou do Banco Central e tendo consciência
que, na verdade, esta deve ser uma “guerra mundial” política, para vencer um
tema que começa por decisões internas sobre o modelo de desenvolvimento. Lembro
que a China adotou na sua estratégia –como escreveu Perry Anderson- com “a combinação do que é agora, de acordo
com qualquer medida convencional, uma economia predominantemente capitalista, com o que todavia é, inquestionavelmente
–de acordo com qualquer medida convencional- um Estado comunista, sendo ambos
os mais dinâmicos da sua classe até hoje”. Ou seja: planejamento de longo curso
através do Estado, dinâmica de mercado capitalista contida por regras de
distribuição “pétreas”, monolitismo político para aplicação das normas do novo
modelo.
Se quiséssemos enquadrar nas categorias do marxismo
tradicional o que ocorreu na China após os anos sessenta, poder-se-ia dizer que a Revolução
Cultural como forma específica de
revolução política “permanente”, foi
sucedida por uma “Nova política Econômica”
(a NEP leninista), de longo
prazo, que tende a se tornar economia “permanente”. Assim como o sujeito
político (Partido-Estado) cria o mercado e suas relações, estas relações novas
recriam o sujeito (Partido-Estado), que será permanentemente outro. Como
“outro”, mudado pela nova sociedade que ele produziu, é que vai reportar-se aos
resultados obtidos, tanto para aumentar as conquistas dos trabalhadores no novo
modelo, bem como para aumentar ou diminuir as rendas das classes ricas, que
estão surgindo neste processo.
O próprio capitalismo, sem perder seu eixo e sua fúria,
assim como o “modelo chinês”, vão esbarrar em situações-limite, nem sempre em
função das suas contradições internas, mas muito fortemente em função dos
limites da naturalidade (crise de fornecimento de energia fóssil, destruição
ambiental ampliada, esgotamento do modelo produtivo agrícola predatório,
esgotamento de recursos naturais não renováveis), cujos efeitos (“estufa” e
outros) já são plenamente visíveis. Isso quer dizer que as amarras que impedem
hoje as mudanças, no médio prazo, podem ser rompidas e assim será agregada à
crítica do capitalismo, não só a crítica aos seus regimes brutais de violência
e exploração que ele semeou no mundo, mas também a possibilidade de liquidação,
através dele, da sobrevivência do gênero humano, o que atinge inclusive aquela
parte da sociedade planetária que o capitalismo prometeu e deu uma vida melhor.
Para atuar de maneira produtiva neste novo ciclo de lutas,
que já se abre com a “rearrumação” internacional, já em curso pela intervenção
do modelo chinês, não podemos cair na tentação simplista e despolitizada
apresentada, por exemplo, por Michael Löwy, aqui nesta Carta Maior: que só
existem duas esquerdas na Europa, uma “oficial, institucional” e outra
“radical”: o “sistema” e o “anti-sistema”.
Se é verdade que tal fórmula pode ter eco e dar prestígio em
setores radicalizados da academia e entre uma pequena-burguesia com dramas
existenciais, em função das crises atuais, promove, como diz Marilena Chauí uma
posição “ingênua, que “ninguém leva à sério” e levanta uma barreira à
construção de uma nova hegemonia, promovida pelos distintos pensamentos de
esquerda, que se expressam numa sociedade civil extremamente complexa, tanto
pela via eleitoral, como pelos movimentos sociais mais diversos. Uma sociedade
que não mais se move exclusivamente
a partir dos conflitos entre capital e
trabalho, e nem mesmo somente a partir dos choques entre “incluídos” e
“excluídos”, mas que expõe suas contradições agudas também em questões
relacionadas como a sustentabilidade, as novas relações de família, os novos
“modos de vida”, a diversidade sexual, a
expulsão dos imigrantes, a pobreza endêmica nas grandes periferias.
Penso que as esquerdas no país devem abordar
programaticamente estas novas exigências para o futuro, já neste processo
eleitoral. Não somente celebrando as conquistas que tivemos nestes doze anos,
mas sobretudo redesenhando a utopia concreta, pois “o objetivo concretamente
antecipado rege o caminho concreto” (Bloch). Isso significa apontar as reformas
na política e na economia, necessárias não somente para acabar com a miséria
absoluta, mas para antecipar um programa para atacar as brutais desigualdades
de renda e de padrão de vida, anunciador de um socialismo democrático renovado.
Por enquanto, a “utopia concreta está presa com âncoras
pesadas no fundo real da sociedade capitalista” (Altvater). O “levantar
âncoras” poderá ser uma nova Assembleia Nacional Constituinte”, no bojo de um
amplo movimento político -por dentro e por fora do Parlamento- inspirado pelas
jornadas de junho: com partidos à
frente sem aceitar a manipulação dos
cronistas do neoliberalismo, abrigados na grande mídia. Para estes, as
organizações políticas são um estorvo,
pois os seus partidos são as suas empresas. Se não mexermos no futuro, daqui
para diante, o passado vai recobrar seu peso. E voltaremos aqui no Brasil a uma
sociedade inteiramente regulada pelo FMI e pelas agências risco, cuja novidade,
provavelmente, será o velho “choque de
gestão”.
(*) Governador do Rio Grande do Sul
Créditos da foto:
Imprensa/Palácio Piratini
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