Léa Maria Aarão Reis* - Carta Maior
“Dizer ‘coma de forma saudável’ em um país subdesenvolvido soa como uma piada.
Significa comer frutas quatro vezes por dia, folhas, alimentos orgânicos, sem
agrotóxicos. É um discurso que se deve fazer, sim, para alertar as pessoas, mas
a prática é difícil. De qualquer modo, o Brasil está comendo melhor, as pessoas
fazem mais exercícios e isso é parte da prevenção secundária de doenças.”
A observação é do médico Ernani Saltz, chefe do Serviço de
Oncologia do Hospital Federal Cardoso Fontes do Ministério da Saúde, no Rio de
Janeiro. Ele atende a um grande número de mulheres e homens idosos por força da
sua especialização, que trata do câncer, hoje considerado uma moléstia
“crônico-degenerativa” por conta da longevidade esticada, como ele lembra.
Saltz coordenou a Campanha Nacional de Combate ao Câncer
incluída na Campanha Nacional de Combate ao Fumo e comenta também: “A vida
saudável é cara; há sempre um medicamento para vender ao idoso e um laboratório
oferecendo remédio para tudo. O idoso acaba hipermedicado. Ora, não existe
experiência médica sobre uma pessoa que toma seis, sete remédios ao mesmo
tempo; ela ainda não foi realizada e não se sabe qual o resultado da interação
desses diversos medicamentos no organismo.” Ele ressalta: “A indústria farmacêutica
está vendendo a ideia de que, para cada transtorno, inclusive para a
infelicidade, temos um remédio. Às vezes, as pessoas estão tristes por causa de
um fato muito concreto, mas a sociedade não aceita.”
Na virada do século 19 para o 20, ele lembra, a expectativa
de vida no Brasil era de 35 anos. As pessoas morriam de infecções e de
acidentes. Hoje, no sul e no sudeste do país essa expectativa é igual à da
Bélgica. “O país passou da fase da mortalidade infantil para a da doença
crônico-degenerativa.”
As linhas entre meia idade, juventude, envelhecimento e
velhice começam a se apagar. Muita gente madura atua com energia e vitalidade e
vive conforme suas expectativas. Já as novas gerações dão mais atenção à saúde
preventiva – o que não ocorria antes. Para garantir um futuro confortável para
os novos velhos de agora é importante promover campanhas e ações educativas
para desconstrução de estereótipos, para a valorizar e estimular a participação
deles na sociedade. Vale lembrar que, segundo relatório recente do Banco
Mundial do fim de 2013, a produtividade nos mercados de trabalho pode aumentar
em até 25% com a inclusão dos idosos no processo.
Da parte da sociedade é preciso reivindicar e estimular a
criação de centros de convivência para os mais velhos e o aprofundamento das
políticas públicas de saúde existentes, embora elas tenham dado um passo
adiante no Brasil, de onze anos para cá, com as diversas ações inclusivas do
governo. També é necessário resistir à indústria da doença, que despreza a
preservação da saúde e cuja clientela preferencial é composta pelos idosos,
mais vulneráveis à dependência da figura do médico onipotente e às drogas
químicas.
O programa Farmácia Popular que distribui medicamentos de
uso contínuo aos idosos é um exemplo. Outro, a inclusão obrigatória nos planos
de saúde privada de determinados tratamentos necessários à grande maioria dos
mais velhos - fisioterapia em geral, fisioterapia cardíaca, RPG.
Mas é necessário mais: apoiar, por exemplo, a prática dos chamados
cuidados de longa duração. O estado tem obrigação, segundo a Organização
Mundial de Saúde, de fornecê-los, assim como apoio social para as pessoas com
alguma limitação severa. Considerado pela OMS como direito humano fundamental,
esta prática tem sido formalizada em acordos internacionais. A responsabilidade
dos cuidados de longa duração, serviço que já faz parte do sistema de
seguridade social em países desenvolvidos, deve ser “compartilhada entre
estado, família e mercado privado”, assinala a demógrafa Ana Amélia Camarano no
volume ''Cuidados de longa duração para a população idosa / um novo risco
social a ser assumido?'' (Ipea/2010.)
O estado deve aumentar os investimentos no desenvolvimento
de programas domiciliares e comunitários eficazes, de custos mais baixos, para
atender à população necessitada, é o que registra Camarano. “Qualidade de vida
desperta anseio por mais qualidade de vida, por mais e melhores serviços”,
acaba de lembrar a presidenta Dilma Roussef em seu discurso em Davos.
Outro aspecto de saúde pública relacionado aos idosos é
apontado pelo neurologista e psiquiatra Marco Aurelio Negreiros, com vasta
clientela de indivíduos de mais idade, no Rio de Janeiro. Ele chama a atenção
para o fato de, às vezes, ser o próprio paciente idoso quem busca as tais
“soluções mágicas” através de pílulas. O próprio paciente reforça a cultura da
indústria médica da hipermedicalização.
“As substâncias que causam dependência e contidas em
tranquilizantes, benzodiazepínicos e medicamentos com tarja preta, quando
receitados de forma exagerada - para dizer o mínimo - são muito usadas pelos
idosos. Proporcionam conforto químico, mas tornam o idoso dependente. Acalmam e
aplacam a ansiedade, mas não tratam o distúrbio. Geram depressão e distúrbios da
memória,” ele diz. O uso excessivo de benzodiazepínicos, típico da cultura
brasileira, no entender de Negreiros, é caso de saúde pública. Eles não são
mais tão usados na Europa nem nos Estados Unidos, onde o assunto vem sendo
discutido cada vez mais amiúde apesar do lobby agressivo da indústria
farmacêutica.
Os benzodiazepínicos têm efeitos prejudiciais cognitivos que
ocorrem com frequência nos idosos e também podem piorar um quadro de demência.
Em 2012, um estudo concluiu que a utilização de benzodiazepínicos por pessoas
com 65 anos ou mais está associada ao aumento de aproximadamente 50% no risco
de demência.
O psiquiatra americano Peter Breggin, da Universidade de
Ithaca, estado de Nova Iorque, reforça: ”Atualmente, as pessoas usam estas
drogas para a ansiedade, para a obesidade, para a menopausa, para tudo. Elas
são as mais complicadas na hora de abandoná-las. É mais difícil deixá-las do
que a sair do vício do álcool ou de opiáceos.''
No Brasil, segundo Negreiros, há até pessoas físicas
vendendo essa medicação. “Certa vez, um paciente me contou,” diz ele, “que
comprava benzodiazepínicos sem receita médica com alguém que os vendia em seu
apartamento. Como se fosse uma boca de fumo de benzodiazepínicos.”
“A opinião corrente, infelizmente,” diz por sua vez Ernani
Saltz, “é a de que os remédios e os exames são mágicos. Na medicina, o exame
mais sofisticado é hoje relegado ao segundo plano: o exame físico. Poucos
médicos examinam de fato o paciente. As pessoas se referem a esta prática como
a dos ‘médicos de antigamente’ e isso é terrível.”
“Temos que examinar e apalpar os pacientes; mas a prática
caiu em desuso. Há uma fantasia corrente de que os exames radiológicos e de
laboratório vão resolver tudo – e não resolvem. Há uma falsa segurança das
pessoas ao se submeter a eles. Ouvir e examinar, apalpar os pacientes e,
eventualmente, encontrar alguma lesão precoce, apenas a mão experiente do
médico e o seu conhecimento são capazes de descobrir.”
Houve um movimento de alegada falta de equipamentos médicos
em cidades do interior do país, por parte de alguns profissionais da saúde, ano
passado, quando se iniciou o programa Mais Médico que se inclui com destaque
nas ações públicas da saúde favorecendo também os novos velhos brasileiros:
seis mil e 600 profissionais atuando em mais de duas mil cidades do país e
beneficiando 23 milhões de indivíduos. Em março próximo, 13 mil médicos
atenderão a 45 milhões de pessoas – crianças, moços e idosos. São os dados
apresentados pela presidenta Dilma Rousseff no seu discurso de fim de ano.
Se por um lado há situações em que há falta de equipamentos
– como mamógrafos, por exemplo - por outro, em alguns locais distantes de
centros urbanos, não existem técnicos nem médicos capacitados para operar as
máquinas com eficiência e analisar com precisão os exames.
Os estrangeiros e os brasileiros contratados para o Mais
Médicos são orientados para trabalharem na saúde da família e na medicina
geral. É o que ocorre em Cuba, por exemplo, onde os estudantes se formam apesar
da carência de recursos materiais. O oposto de alguns jovens médicos – nem
todos eles, é claro - formados nas universidades brasileiras os quais, em
seguida, com a prática vigente, acabam sendo parceiros da indústria
farmacêutica no mercantilismo da saúde (principalmente da saúde dos idosos e
das crianças) e no desinteresse pelo paciente.
Nos recentes resultados do exame de suficiência aplicado
pelo Conselho de Medicina de São Paulo quase 60% dos formandos foram
reprovados. Segundo o próprio Cremesp a deficiência se deu na “solução de
eventos frequentes no cotidiano da prática médica.” Muitos desses jovens médicos
demonstraram não conhecer o diagnóstico ou tratamento adequados para situações
comuns e problemas de saúde tais como pneumonia, tuberculose, hipertensão e
atendimento de urgência – vários deles, distúrbios que atingem com frequência
os mais velhos.
E 67% dos formandos não souberam afirmar que o grau de
redução da pressão arterial é o principal fator determinante na diminuição do
risco cardiovascular em paciente hipertenso – geralmente pacientes mais idosos.
Atualmente, há uma procura maior por parte dos estudantes de
Medicina, no país, pela especialidade da Geriatria. “Investir” no idoso,
adotando expressão mercantil própria do sistema neoliberal, se torna “bom
negócio”. Que seja assim desde que o negócio beneficie ricos e pobres em
atendimento adequado e digno. Todos os indivíduos, ricos e pobres, desejam
envelhecer ativos, com saúde e reivindicam qualidade de vida.
Como anota Saul Leblon nesta página, “a desigualdade
continua obscena, mas as placas tectônicas se movem.” Isto se aplica à velhice
dourada dos bairros elegantes e dos condomínios de luxo aos idosos das favelas
e das comunidades dos conjuntos populares. Aos velhos pacientes do SUS e aos
dos planos privados de saúde.
A professora de Psicologia Social da PUC-RJ, Teresa Creuza
Negreiros, costuma descrever a nossa época como o mundo do “aperta botão e
passa cartão”. Um mundo que pode ser vivido pelo idoso com maior dificuldade,
como ela diz, o que não significa que a maioria deles se furte a ele: “O velho
não é mais o estorvo que era no passado; não é um cidadão de segunda classe e
não deseja se ver excluído.”
*Autora do livro Novos velhos – viver e envelhecer bem (Ed.
Record)
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