Como uma correlação de forças favorável se transforma em uma derrota demolidora? A exumação de 1964 sugere a resposta a esta pergunta.
Saul Leblon – Carta Maior
Como uma correlação de forças
favorável se transformou em uma derrota política de consequências históricas
demolidoras?
A pergunta ecoa obrigatória na
exumação do Brasil de 1964.
Mas a resposta extrapola a necessidade de se
compreender o país que existia há meio século
para iluminar os dias que correm,
as horas que urgem.
A história não cabe em fascículos
solteiros.
A versão dos vencedores de ontem
presta serviços aos interesses de hoje que disputam a hegemonia com o objetivo
de sempre.
Impedir que a sociedade destrave
os ferrolhos da riqueza acumulada e
altere a matriz redistributiva da que será construída.
Uma simplificação monocausal em
torno 1964 remete ameaças a 2014.
Ela é disseminada por aqueles que
formam o intestino delgado e sinuoso do golpismo, onde se reprocessa tudo no
formato de democracia e lei.
Inclua-se aí os fulanizadores da
história, especialistas na arte de abstrair interesses graúdos sem tornar a
narrativa entediante.
O que eles sugerem é que 1964
nada mais foi que um mal passo do país;
um escorregão sob a presidência de um
político hesitante e mulherengo.
Esse, o epitáfio à geração que há
50 anos defendia reformas para cicatrizar as feridas da tradição social brasileira.
Hoje, com a mesma dissipação,
tenta-se personificar o ‘problema’ do país na ‘Dilma autoritária’; agora também ‘má gestora’.
Importa, sobretudo, rebaixar o debate em torno
daquilo que interliga o passado ao presente e condiciona o futuro: a disputa em
torno da agenda do desenvolvimento brasileiro.
Qual país? Para quem? Como chegar
lá? Onde e por que os recursos estrangulam?
Sobre 1964, a dissipação coloca
na mesa incômoda dos 50 anos a guloseima ecumênica que a tudo perdoa: ‘a
polarização conduziu ao golpe’, diz o glacê sobre a massa aerada por 20 anos de
censura, tortura e repressão.
‘Era inevitável, qualquer um dos
lados o faria a qualquer momento’, reiteram os confeitos aspergidos na memória
nacional.
Em resumo: os vencidos foram
responsáveis pela violência dos vencedores; a direita apenas se antecipou à
ruptura cevada entre a hesitação de Jango e a radicalização ao seu redor.
A premissa está na ponta da
língua dos colunistas, na rememoração lucrativa encadernada pelos amigos do regime
e na boca dos torturadores cada vez mais desinibidos pela impunidade.
Fatos.
O governo Jango durou apenas 31
meses – de setembro de 1961 a 1º de abril de 1964.
Durante todo o período esteve
acossado pelo bafo renitente do golpismo, sobrando ao Presidente um espaço reduzido
de tempo e circunstancia para planejar sua ação e o país.
Ainda assim, a correlação de
forças barrou o conservadorismo em todas as tentativas de se impor à sociedade
por medidas unilaterais.
Por isso foi dado o golpe, ou não
haveria necessidade dele.
A direita dispunha, como hoje, do
dispositivo midiático, do dinheiro graúdo --local e forâneo, de um pedaço da
classe média e de fileiras do Exército.
Mas seu fôlego eleitoral era
raquítico e o pulmão político declinante (como hoje).
O projeto americanófilo carimbado
em sua testa consolidara-se no imaginário popular como risivelmente entreguista
(não sem boa dose de razão); seu recorte elitista recendia à casa grande, de
onde urgências da senzala eram descartadas nas respostas aos desafios do desenvolvimento.
Lembra algo?
Antes de recorrer às armas, à
repressão, à censura e à tortura, o espírito golpista tentou por duas vezes
restringir a democracia que lhe era desfavorável, sendo sucessivamente
derrotado no campo aberto do escrutínio popular.
O desenlace, portanto, não foi
uma reação de autodefesa, como querem os vulgarizadores da fatalidade, mas o
epílogo de uma progressão de minigolpes frustrados.
No aquecimento, tentou-se impedir
a posse de Jango em 1961, após a renúncia de Jânio Quadros.
Só a resistência organizada – é
oportuno escandir a palavra or-ga-ni-za-da - impediu a consumação do golpe
branco.
Em 27 de agosto, o então
governador Leonel Brizola personificou esse requisito com a criação da ‘Cadeia da Legalidade’ no
Rio Grande do Sul.
De início, formada por uma rede
de rádios gaúchas, a resistência operava
do porão do Palácio Piratini, para onde o líder gaúcho requisitara os transmissores da rádio Guaíba,
de Porto Alegre. As tropas da Brigada Militar protegiam o Palácio em vigília
diuturna.
Através das ondas médias e curtas
ocupava-se o noticiário 24 horas por dia.
Brizola conclamava o povo a ir às ruas em defesa da
legalidade democrática, contra o golpe da junta militar que, em Brasília, recusava
autorização para Jango, em viagem oficial ao exterior, retornar ao país.
Aos poucos, outras emissoras de
Porto Alegre e do interior do Estado uniram-se à Rede, que chegou a cravar 100%
de audiência no estado.
O efeito contagiante da
resistência iniciada em Porto Alegre romperia a fronteira gaúcha para formar uma cadeia com 104 emissoras de todo o Brasil e de países
vizinhos.
Boletins noticiosos em inglês,
espanhol e alemão passaram a ser emitidos.
Foram 10 dias que abalaram o
Brasil.
Finalmente, o III Exército rachou
e declarou solidariedade ao movimento.
O conjunto forçou o Congresso
complacente a buscar uma solução negociada.
A escolhida, todavia, circunscreveria
Jango nas amarras de um parlamentarismo que reduziu sua posse a um simulacro de transferência de
poder.
Em 7 de setembro de 1961,
Goulart receberia a faixa presidencial,
mas não o mando de governo.
Descarnado dos instrumentos
constitucionais, o Presidente gastou dois anos de seu mandato na agonia
parlamentar.
Se não conseguiu evitar a posse,
o conservadorismo logrou engessar o país agravando seus impasses para corroer,
ainda mais, as bases frágeis do investimento, acelerar a fuga de capitais e
adicionar pressão à caldeira inflacionária.
Criou-se assim o lastro para
legitimar o discurso udenista do
desgoverno, de um Brasil aos cacos, prestes a se estilhaçar –‘se não for hoje,
de amanhã não passa’.
A sensação de familiaridade não é gratuita.
Com a insatisfação crescente, em
janeiro de 1963, Jango convoca um plebiscito para decidir sobre a manutenção ou
não do sistema parlamentarista.
O clima confuso criado pelo
artifício conservador era respirado em cada esquina.
Mas o discernimento popular não
se deixou levar pelos falsos diagnósticos.
Cerca de 80% dos brasileiros
votaram pelo restabelecimento dos poderes constitucionais ao Presidente (ouça
aqui a campanha popular contra a camisa de força parlamentarista feita por artistas do radio
https://www.youtube.com/watch?v=MSD-RW2Kxak).
Um ano e três meses depois viria
o golpe.
Possivelmente contra um terceiro
revés contratado no calendário eleitoral, se a democracia perdurasse até a
sucessão de Jango.
Pesquisas do maleável Ibope,
mantidas em sigilo até recentemente, e levadas à rua entre 20 e 30 de março
–entre o comício da Central do Brasil e o golpe de Estado - desmentiam
o consenso anti-governo alardeado
por uma mídia que exortou, apoiou e justificou
a derrubada violenta do Presidente da República, em 31 de março de 1964.
Ontem como hoje, a emissão
conservadora foi decisiva para levar a classe média brasileira a adotar um discernimento moralista e golpista
em relação aos desafios enfrentados
pelo processo de desenvolvimento.
E mesmo assim, apenas uma parte dela.
Os dados colhidos cirurgicamente
em meio a esse bombardeio certamente influenciaram a disposição golpista.
Pelas urnas é que não haveria de
ser.
O que eles mostravam repita-se, dias antes do golpe, é que
69% dos entrevistados avaliavam o governo Jango entre ótimo, bom e regular (15%, 30% e 24%,
respectivamente). Apenas 15% o consideravam ruim ou péssimo. E o mais
importante: 49,8% cogitavam reeleger o Presidente, caso ele se candidatasse em
1965 e nada menos que 59% apoiavam as
medidas anunciadas no comício da Central
do Brasil, considerado a ‘ruptura’ legitimadora
do funeral democrático.
É oportuno lembrar que antes de
se valer do recurso dos decretos
–assinados no palanque da Central do Brasil-- Jango propôs ao Congresso a convocação de um
outro plebiscito.
Em 16 de março de 1964, a notícia era dada
assim na Folha:
‘O presidente João Goulart
encaminhou ontem ao Congresso, em Brasília, a mensagem de abertura dos trabalhos
da nova sessão legislativa e sugeriu uma reforma constitucional ampla que vise
a democratização da sociedade. O presidente Jango também sugeriu a concessão do
direito de voto aos analfabetos e praças e a elegibilidade dos sargentos, além
de querer incorporar ao processo democrático todas as correntes do pensamento
político. Outra sugestão do presidente é uma consulta popular (plebiscito) para
a apuração da vontade nacional sobre as reformas de base’
O Congresso rejeitou a proposta de consultar a
sociedade sobre a ampliação da democracia e da ação pública nos gargalos do
desenvolvimento.
Se havia extremismo em bolsões à esquerda,
como se alegava , o fato é que a radicalização golpista fechava todas as portas
às tentativas de formação democrática das grandes maiorias indispensáveis a um
ciclo sustentável de desenvolvimento.
A corneta da crispação midiática
entoava justamente o funeral dessa possibilidade.
A rejeição doentia ao governo, às
suas propostas e aos seus métodos, distorcia, boicotava e interditava o debate
para desmoralizar e criminalizar as
bandeiras progressistas.
Décadas de censura e monopólio
das comunicações fariam o resto depois, a estender a qualquer agenda de mudança
do país a mesma demonização dispensada às reformas de base em 64.
Ou não terá sido essa a reação
quando, no calor dos protestos de junho de 2013, a Presidenta Dilma propôs uma consulta
popular para destravar a reforma do sistema político brasileiro -- raiz da
hegemonia do dinheiro grosso na democracia?
Um pedaço do que se abortou e se reprimiu em 1964 seria
restituído vinte e quatro anos depois pela Constituição de 1988.
Bancadas conservadoras, todavia,
impuseram importantes revezes ao resgate do tempo perdido.
A anistia recíproca, seria a mais ostensiva
delas; mas também o interdito, na
prática, à reforma agrária massiva, ademais da adoção de um labiríntico sistema político que condicionaria o trânsito
da redemocratização.
As dores do parto persistem, 16
anos depois.
Um Presidente consagrado nas
urnas pela sociedade nem por isso escapa do balcão de negócios parlamentar – e através dele, do dinheiro grosso, para
obter a maioria no Congresso (leia a coluna de Marias Inês Nassif; nesta pág).
Ainda assim, a Constituinte legislou
avanços indiscutíveis.
O voto ao analfabeto; a
aposentadoria rural; o salário mínimo único, bem com o sistema único de saúde
são alguns exemplos.
O conjunto fixou parâmetros de um
Estado social que ainda hoje os interesses plutocráticos tentam reverter ou não
permitem regulamentar .
Mas o que é sobretudo importante
na compreensão dos conflitos que interligam o presente ao passado é
que o calendário da ditadura e da
redemocratização inscreveram o desenvolvimento brasileiro em um paradoxo
histórico.
A contrapelo da supremacia neoliberal que
florescia em praticamente todo o mundo capitalista nos anos 80, navegava-se
aqui nas águas de uma democracia social infante.
Não mais decretada no palanque da
Central do Brasil, mas consagrada nas páginas de uma Constituição que prometia
mais do que o mercado global estava
disposto a ceder então.
O ciclo tucano no poder (95/2002)
foi uma tentativa de sincronizar a história do país pulando as folhas do
calendário reservadas ao acerto de contas com a ditadura para engatar o mercado
brasileiro às reformas neoliberais, sopradas com força cada vez maior no mundo.
Não é preciso reiterar
estatísticas. O impacto qualitativo dessa elipse fala por si.
A supremacia mercadista
instituída nos oito anos de poder do PSDB influenciaria de forma marcante toda a estrutura do desenvolvimento do país.
As privatizações são o exemplo
matricial.
Ademais do seu recorte
expropriador, elas subtraíram o poder de planejar a economia através da ação
indutora dos grandes orçamentos
centralizados.
Por pouco não se perdeu também o
BNDES. Ou o Banco do Brasil. E a Petrobrás, que os coveiros de ontem defendem
agora com brios patrióticos.
A construção interrompida de um
Brasil sucessivamente barrado em 1964 e
pelas reformas liberalizantes promovidas entre 1989 e 2002 encontrou uma
segunda chance na eleição de Lula, em 2002.
Os resultados não tardaram a
aparecer.
Bastou uma fresta de avanços nas políticas
sociais, no emprego, no crédito e ,
sobretudo, na recomposição de poder aquisitivo do salário mínimo e o mercado interno emergiu como um leão
faminto.
Em menos de uma década
consolidou-se uma faixa de consumo de massa que já reúne 53% da população e 46%
da renda nacional.
A crise mundial de 2008 eclodiu
no meio desse percurso.
Quando a blindagem financeira e
ideológica do sistema fraquejou, porém, revelou-se com maior nitidez ainda um
país que já não cabia em estruturas desenhadas para 1/3 de sua população.
As desproporções inscritas nesse
conflito ocupam o centro do debate político e macroeconômico atual, em que
duelam dois diagnósticos.
Um quer submeter a sociedade a um
freio de arrumação classista.
‘Os aeroportos estão
insuportáveis’ .
O bordão síntese do arrocho
ceva a ignorância da classe média em
relação aos desafios do desenvolvimento (leia o artigo de Antonio Lassance: ‘Somos educados para o
analfabetismo econômico’; nesta pág).
Não se nega a existência de gargalos seculares
fartamente diagnosticados e assumidos
como prioridade dos PACs: transportes,
energia, portos, habitação etc.
O que se argui é o xamanismo
segundo o qual, a restituição de plenos
poderes aos deuses dos mercados é a
única penitência capaz de dar a esses vazios o lastro de recursos que pode
preenche-los com obras e prazos compatíveis com as urgências da economia e da
sociedade.
O conflito entre o reformismo
reprimido nos anos 60 e seu resgate social na Carta de 1988, e os interesses
assim contrariados, explica um bom pedaço da
hiperinflação vivida nos anos 80.
O Plano Real domou-a.
Em troca de conceder ao dinheiro
graúdo outra salvaguarda, que não apenas
a remarcação desenfreada dos preços:
juros siderais passaram a defender a liquidez da dissonância histórica
que caracteriza o capitalismo brasileiro hoje.
A saber: uma tentativa tardia de construção de um Estado de Bem
Estar Social, em um mundo de supremacia das finanças desreguladas, de
fronteiras liquefeitas e de direitos
sociais dissolventes.
A cada passo do pé esquerdo
social do Brasil, o direito rentista tenta passar-lhe a rasteira para obriga-lo a recuar.
A chantagem é amplamente
veiculada pelo jornalismo obsequioso
como virtuosa.
Para crescer o país precisa
baixar os juros e alongar o financiamento requisitado ao investimento de longo
prazo.
Mas nada disso ocorrerá sem
escalpelar o ‘custo Brasil’.
Ou seja, renunciar a uma das mais vantajosas singularidades do sistema econômico
brasileiro: políticas sociais e
salariais que ativam o seu gigantesco
mercado de massa.
Nada feito, replicam os mercados.
Na prática esse repto impõe ao
Brasil o terceiro juro real mais alto do mundo na categoria das economias
emergentes.
A informação é do ranking do
banco Morgan, citado pelo Wall Street Journal (27/03).
A Selic, taxa básica brasileira, está em
10,75% ao ano.
Compare-se: a mexicana é de
3,5% e a nigeriana , de 12%.
Objetivamente falando, o que o
Brasil tem para estar mais perto da
frágil Nigéria do que do convulsivo
México?
O Brasil tem a anacrônica
teimosia de pretender que o desenvolvimento sirva para construir um Estado do
Bem Estar social em pleno século XXI.
É isso que explica a
‘precificação financeira’ do país, uma espécie de ditadura monetária às
reformas de base do nosso tempo -- incompreensível até para banqueiros mais
sensatos, mas justificada vivamente pela mídia isenta.
Da excrescência cultivada como
virtude derivam outras: o câmbio afogado em dólares especulativos, por
exemplo, que valoriza o Real
incentivando a importação de manufaturas
e a necrose da planta industrial
brasileira, por exemplo.
A dimensão política do
desenvolvimento é tão explícita que só uma escandalosa ocultação de suas
premissas permite reduzir os impasses atuais a um problema de gestão da Dilma
–ou de corrupção do ‘lulopetismo’, a exemplo da caricatura do Presidente
bonachão dos anos 60.
A maior lição desses 50 anos de
derrotas e resistências, porém, é que
não basta recusar a interpretação
do adversário.
É preciso acreditar na própria. E
dar a essa convicção uma consequência
organizativa.
A pergunta inicial insiste no
pano de fundo: ‘Como uma correlação de
forças favorável se transforma em uma
derrota política de consequências históricas demolidoras?’
A exumação dos 50 anos sugere que
a resposta estaria relacionada mais à
ausência de liderança disposta a organizar
o protagonismo do interesse coletivo, do que à aquiescência ou a
prostração da sociedade diante da ação
conservadora.
Nesse malfadado ponto de encontro
reside talvez o mais perigoso e atual
alerta de 1964 a 2014.
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