segunda-feira, 31 de março de 2014

A exumação do presente

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Como uma correlação de forças favorável se transforma em uma derrota demolidora? A exumação de 1964 sugere a resposta a esta pergunta.

Saul Leblon – Carta Maior

Como uma correlação de forças favorável se transformou em uma derrota política de consequências históricas demolidoras?

A pergunta ecoa obrigatória na exumação do Brasil de 1964.

 Mas a resposta extrapola a necessidade de se compreender o país que existia há meio século  para  iluminar os dias que correm, as horas que urgem.


A história não cabe em fascículos solteiros.

A versão dos vencedores de ontem presta serviços aos interesses de hoje que disputam a hegemonia com o objetivo de sempre.

Impedir que a sociedade destrave os ferrolhos da riqueza acumulada e  altere a matriz redistributiva da que será construída.

Uma simplificação monocausal em torno 1964  remete ameaças a  2014.

Ela é disseminada por aqueles que formam o intestino delgado e sinuoso do golpismo, onde se reprocessa tudo no formato de democracia e lei.

Inclua-se aí os fulanizadores da história, especialistas na arte de abstrair interesses graúdos sem tornar a narrativa entediante.

O que eles sugerem é que 1964 nada mais foi que um mal passo do  país; um escorregão  sob a presidência de um político hesitante e mulherengo.

Esse, o epitáfio à geração que há 50 anos defendia reformas para cicatrizar as feridas da tradição social brasileira.

Hoje, com a mesma dissipação, tenta-se personificar o ‘problema’ do país na ‘Dilma autoritária’;  agora também ‘má gestora’.

 Importa, sobretudo, rebaixar o debate em torno daquilo que interliga o passado ao presente e condiciona o futuro: a disputa em torno da agenda do desenvolvimento brasileiro.

Qual país? Para quem? Como chegar lá? Onde e por que os recursos estrangulam?

Sobre 1964, a dissipação coloca na mesa incômoda dos 50 anos a guloseima ecumênica que a tudo perdoa: ‘a polarização conduziu ao golpe’, diz o glacê sobre a massa aerada por 20 anos de censura, tortura e repressão.

‘Era inevitável, qualquer um dos lados o faria a qualquer momento’, reiteram os confeitos aspergidos na memória nacional.

Em resumo: os vencidos foram responsáveis pela violência dos vencedores; a direita apenas se antecipou à ruptura cevada entre a hesitação de Jango e a radicalização ao seu redor.

A premissa está na ponta da língua dos colunistas, na rememoração lucrativa encadernada pelos amigos do regime e na boca dos torturadores cada vez mais desinibidos pela impunidade.

Fatos.

O governo Jango durou apenas 31 meses – de setembro de 1961 a 1º de abril de 1964.

Durante todo o período esteve acossado pelo bafo renitente do golpismo, sobrando ao Presidente um espaço reduzido de tempo e circunstancia para planejar sua ação e o país.

Ainda assim, a correlação de forças barrou o conservadorismo em todas as tentativas de se impor à sociedade por medidas unilaterais.

Por isso foi dado o golpe, ou não haveria necessidade dele.

A direita dispunha, como hoje, do dispositivo midiático, do dinheiro graúdo --local e forâneo, de um pedaço da classe média e de fileiras  do Exército.

Mas seu fôlego eleitoral era raquítico e o pulmão político declinante (como hoje).

O projeto americanófilo carimbado em sua testa consolidara-se no imaginário popular como risivelmente entreguista (não sem boa dose de razão); seu recorte elitista recendia à casa grande, de onde urgências da senzala eram descartadas nas respostas  aos desafios do desenvolvimento.

Lembra algo?

Antes de recorrer às armas, à repressão, à censura e à tortura, o espírito golpista tentou por duas vezes restringir a democracia que lhe era desfavorável, sendo sucessivamente derrotado no campo aberto do escrutínio popular.

O desenlace, portanto, não foi uma reação de autodefesa, como querem os vulgarizadores da fatalidade, mas o epílogo de uma progressão de minigolpes frustrados.

No aquecimento, tentou-se impedir a posse de Jango em 1961, após a renúncia de Jânio Quadros.

Só a resistência organizada – é oportuno escandir a palavra or-ga-ni-za-da - impediu a consumação do golpe branco.

Em 27 de agosto, o então governador Leonel Brizola personificou esse requisito  com a criação da ‘Cadeia da Legalidade’ no Rio Grande do Sul.

De início, formada por uma rede de rádios gaúchas,  a resistência operava do porão do Palácio Piratini, para onde o líder gaúcho  requisitara os transmissores da rádio Guaíba, de Porto Alegre. As tropas da Brigada Militar protegiam o Palácio em vigília diuturna.

Através das ondas médias e curtas ocupava-se o noticiário 24 horas por dia.
Brizola  conclamava o povo a ir às ruas em defesa da legalidade democrática, contra o golpe da junta militar que, em Brasília,  recusava  autorização para Jango, em viagem oficial ao exterior,  retornar ao país.

Aos poucos, outras emissoras de Porto Alegre e do interior do Estado uniram-se à Rede, que chegou a cravar 100% de audiência no estado.

O efeito contagiante da resistência iniciada em Porto Alegre romperia a fronteira gaúcha para  formar uma cadeia com  104 emissoras de todo o Brasil e de países vizinhos.

Boletins noticiosos em inglês, espanhol e alemão passaram a ser emitidos.
Foram 10 dias que abalaram o Brasil.

Finalmente, o III Exército rachou e declarou solidariedade ao movimento.

O conjunto forçou o Congresso complacente a buscar uma solução negociada.

A escolhida, todavia, circunscreveria Jango nas amarras de um parlamentarismo que reduziu sua  posse a um simulacro de transferência de poder.

Em 7 de setembro de 1961, Goulart  receberia a faixa presidencial, mas não o mando de governo.

Descarnado dos instrumentos constitucionais, o Presidente gastou dois anos de seu mandato na agonia parlamentar.

Se não conseguiu evitar a posse, o conservadorismo logrou engessar o país agravando seus impasses para corroer, ainda mais, as bases frágeis do investimento, acelerar a fuga de capitais e adicionar pressão à caldeira inflacionária.

Criou-se assim o lastro para legitimar o discurso udenista  do desgoverno, de um Brasil aos cacos, prestes a se estilhaçar –‘se não for hoje, de amanhã não passa’.

A sensação de familiaridade  não é gratuita.

Com a insatisfação crescente, em janeiro de 1963, Jango convoca um plebiscito para decidir sobre a manutenção ou não do sistema parlamentarista.

O clima confuso criado pelo artifício conservador era respirado em cada esquina.

Mas o discernimento popular não se deixou levar pelos falsos diagnósticos.

Cerca de 80% dos brasileiros votaram pelo restabelecimento dos poderes constitucionais ao Presidente (ouça aqui a campanha popular contra a camisa de força parlamentarista feita  por artistas do radio https://www.youtube.com/watch?v=MSD-RW2Kxak).

Um ano e três meses depois viria o golpe.

Possivelmente contra um terceiro revés contratado no calendário eleitoral, se a democracia perdurasse até a sucessão de Jango.

Pesquisas do maleável Ibope, mantidas em sigilo até recentemente, e levadas à rua entre 20 e 30 de março –entre o comício da Central do Brasil e o golpe de Estado -  desmentiam  o consenso anti-governo  alardeado por uma mídia que  exortou, apoiou e justificou a derrubada violenta do Presidente da República, em 31 de março de 1964.

Ontem como hoje, a emissão conservadora foi decisiva para levar a classe média brasileira a adotar  um discernimento moralista e  golpista  em relação aos desafios  enfrentados pelo processo de desenvolvimento.

 E mesmo assim, apenas uma parte dela.

Os dados colhidos cirurgicamente em meio a esse bombardeio certamente influenciaram a disposição golpista.

Pelas urnas é que não haveria de ser.

O que eles mostravam  repita-se, dias antes do golpe,  é que  69% dos entrevistados avaliavam o governo Jango  entre ótimo, bom e regular (15%, 30% e 24%, respectivamente). Apenas 15% o consideravam ruim ou péssimo. E o mais importante: 49,8% cogitavam reeleger o Presidente, caso ele se candidatasse em 1965 e nada menos que  59% apoiavam as medidas anunciadas  no comício da Central do Brasil, considerado a ‘ruptura’  legitimadora do funeral democrático.

É oportuno lembrar que antes de se valer do recurso dos decretos  –assinados no palanque da Central do Brasil--  Jango propôs ao Congresso a convocação de um outro plebiscito.

 Em 16 de março de 1964, a notícia era dada assim na Folha:

‘O presidente João Goulart encaminhou ontem ao Congresso, em Brasília, a mensagem de abertura dos trabalhos da nova sessão legislativa e sugeriu uma reforma constitucional ampla que vise a democratização da sociedade. O presidente Jango também sugeriu a concessão do direito de voto aos analfabetos e praças e a elegibilidade dos sargentos, além de querer incorporar ao processo democrático todas as correntes do pensamento político. Outra sugestão do presidente é uma consulta popular (plebiscito) para a apuração da vontade nacional sobre as reformas de base’

 O Congresso rejeitou a proposta de consultar a sociedade sobre a ampliação da democracia e da ação pública nos gargalos do desenvolvimento.

 Se havia extremismo em bolsões à esquerda, como se alegava , o fato é que a radicalização golpista fechava todas as portas às tentativas de formação democrática das grandes maiorias indispensáveis a um ciclo sustentável de desenvolvimento.

A corneta da crispação midiática entoava justamente o funeral dessa possibilidade.

A rejeição doentia ao governo, às suas propostas e aos seus métodos, distorcia, boicotava e interditava o debate para desmoralizar  e criminalizar as bandeiras progressistas.

Décadas de censura e monopólio das comunicações fariam o resto depois, a estender a qualquer agenda de mudança do país a mesma demonização dispensada às reformas de base em 64.

Ou não terá sido essa a reação quando, no calor dos protestos de junho de 2013, a Presidenta Dilma propôs uma consulta popular para destravar a reforma do sistema político brasileiro -- raiz da hegemonia do dinheiro grosso na democracia?

Um pedaço do  que se abortou e se reprimiu em 1964 seria restituído vinte e quatro anos depois pela Constituição de 1988.

Bancadas conservadoras, todavia, impuseram importantes revezes ao resgate do tempo perdido.

 A anistia recíproca, seria a mais ostensiva delas; mas também o  interdito, na prática, à reforma agrária massiva, ademais da adoção de um labiríntico  sistema político que condicionaria o trânsito da redemocratização.

As dores do parto persistem, 16 anos depois.

Um Presidente consagrado nas urnas pela sociedade nem por isso escapa do balcão de negócios parlamentar  – e através dele, do dinheiro grosso, para obter a maioria no Congresso (leia a coluna de Marias Inês Nassif; nesta pág).

Ainda assim, a Constituinte legislou avanços indiscutíveis.

O voto ao analfabeto; a aposentadoria rural; o salário mínimo único, bem com o sistema único de saúde são alguns exemplos.

O conjunto fixou parâmetros de um Estado social que ainda hoje os interesses plutocráticos tentam reverter ou não permitem regulamentar .

Mas o que é sobretudo  importante  na compreensão dos conflitos que interligam o presente ao passado é que  o calendário da ditadura e da redemocratização inscreveram o desenvolvimento brasileiro em um paradoxo histórico.

 A contrapelo da supremacia neoliberal que florescia em praticamente todo o mundo capitalista nos anos 80, navegava-se aqui nas águas de uma democracia social infante.

Não mais decretada no palanque da Central do Brasil, mas consagrada nas páginas de uma Constituição que prometia mais do que o mercado  global estava disposto a ceder então.

O ciclo tucano no poder (95/2002) foi uma tentativa de sincronizar a história do país pulando as folhas do calendário reservadas ao acerto de contas com a ditadura para engatar o mercado brasileiro às reformas neoliberais, sopradas com força cada vez maior no mundo.

Não é preciso reiterar estatísticas. O impacto qualitativo dessa elipse fala por si.

A supremacia mercadista instituída nos oito anos de poder do PSDB influenciaria de forma marcante  toda a estrutura do desenvolvimento do país.

As privatizações são o exemplo matricial.

Ademais do seu recorte expropriador, elas subtraíram o poder de planejar a economia através da ação indutora dos  grandes orçamentos centralizados.

Por pouco não se perdeu também o BNDES. Ou o Banco do Brasil. E a Petrobrás, que os coveiros de ontem defendem agora com brios patrióticos.

A construção interrompida de um Brasil sucessivamente   barrado em 1964 e pelas  reformas liberalizantes   promovidas entre 1989 e 2002 encontrou uma segunda chance na eleição de Lula, em 2002.

Os resultados não tardaram a aparecer.

 Bastou uma fresta de avanços nas políticas sociais, no emprego, no crédito e ,  sobretudo, na recomposição de poder aquisitivo do salário mínimo e  o mercado interno emergiu como um leão faminto.

Em menos de uma década consolidou-se uma faixa de consumo de massa que já reúne 53% da população e 46% da renda nacional.

A crise mundial de 2008 eclodiu no meio desse percurso.

Quando a blindagem financeira e ideológica do sistema fraquejou, porém, revelou-se com maior nitidez ainda um país que já não cabia em estruturas desenhadas para 1/3 de sua população.

As desproporções inscritas nesse conflito ocupam o centro do debate político e macroeconômico atual, em que duelam dois diagnósticos.

Um quer submeter a sociedade a um freio de arrumação classista.

‘Os aeroportos estão insuportáveis’ .

O bordão síntese do arrocho ceva  a ignorância da classe média em relação aos desafios do desenvolvimento (leia o artigo de Antonio  Lassance: ‘Somos educados para o analfabetismo econômico’; nesta pág).

Não se  nega a existência de gargalos seculares fartamente diagnosticados e  assumidos como prioridade dos PACs: transportes,  energia, portos, habitação etc.

O que se argui é o xamanismo segundo o qual, a  restituição de plenos poderes aos deuses dos mercados  é a única penitência capaz de dar a esses vazios o lastro de recursos que pode preenche-los com obras e prazos compatíveis com as urgências da economia e da sociedade.

O conflito entre o reformismo reprimido nos anos 60 e seu resgate social na Carta de 1988, e os interesses assim contrariados, explica um bom pedaço da  hiperinflação  vivida nos anos 80.

O Plano Real domou-a.

Em troca de conceder ao dinheiro graúdo outra  salvaguarda, que não apenas a remarcação desenfreada dos preços:   juros siderais passaram a defender a liquidez da dissonância histórica que caracteriza o capitalismo brasileiro hoje.

A saber: uma tentativa  tardia de construção de um Estado de Bem Estar Social, em um mundo de supremacia das finanças desreguladas, de fronteiras liquefeitas  e de direitos sociais dissolventes.

A cada passo do pé esquerdo social do Brasil, o direito rentista tenta passar-lhe  a rasteira para obriga-lo a recuar.

A chantagem é amplamente veiculada pelo jornalismo obsequioso  como virtuosa.

Para crescer o país precisa baixar os juros e alongar o financiamento requisitado ao investimento de longo prazo.

Mas nada disso ocorrerá sem escalpelar  o ‘custo Brasil’.

Ou seja, renunciar  a uma das mais vantajosas  singularidades do sistema econômico brasileiro:  políticas sociais e salariais que  ativam o seu gigantesco mercado de massa.

Nada feito, replicam os mercados.

Na prática esse repto impõe ao Brasil o terceiro juro real mais alto do mundo na categoria das economias emergentes.

A informação é do ranking do banco Morgan, citado pelo Wall Street Journal (27/03).

 A Selic, taxa básica brasileira, está em 10,75% ao ano.

Compare-se: a mexicana é de 3,5%  e a nigeriana , de 12%.

Objetivamente falando, o que o Brasil  tem para estar mais perto da frágil Nigéria do que do convulsivo  México?

O Brasil tem a anacrônica teimosia de pretender que o desenvolvimento sirva para construir um Estado do Bem Estar social em pleno século XXI.

É isso que explica a ‘precificação financeira’ do país, uma espécie de ditadura monetária às reformas de base do nosso tempo -- incompreensível até para banqueiros mais sensatos, mas justificada vivamente pela mídia isenta.

Da excrescência cultivada como virtude derivam outras: o câmbio afogado em dólares especulativos, por exemplo,  que valoriza o Real incentivando a importação de manufaturas  e a  necrose da planta industrial brasileira, por exemplo.

A dimensão política do desenvolvimento  é tão explícita  que só uma escandalosa ocultação de suas premissas permite reduzir os impasses atuais a um problema de gestão da Dilma –ou de corrupção do ‘lulopetismo’, a exemplo da caricatura do Presidente bonachão dos anos 60.

A maior lição desses 50 anos de derrotas e resistências, porém, é que  não basta recusar a interpretação  do adversário.

É preciso acreditar na própria. E dar a essa convicção uma consequência  organizativa.

A pergunta inicial insiste no pano de fundo:  ‘Como uma correlação de forças favorável se transforma  em uma derrota política de consequências históricas demolidoras?’

A exumação dos 50 anos sugere que a  resposta estaria relacionada mais à ausência de liderança disposta a organizar  o protagonismo do interesse coletivo, do que à aquiescência ou a prostração da sociedade  diante da ação conservadora.


Nesse malfadado ponto de encontro reside talvez o mais perigoso e atual  alerta de 1964 a 2014.

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