Passados 50 anos do golpe contra Jango, relações entre os
poderes não estão equilibradas. PMDB teve duas décadas de vantagem em relação
aos demais partidos e garantiu força desproporcional no Legislativo
por Diego Sartorato, da RBA
São Paulo – Na semana em que o golpe de 1964 completa 50
anos, o Brasil testemunhou a conclusão de um processo turbulento para a
aprovação do Marco Civil da internet: em atrito com o governo por conta de
cargos no primeiro escalão federal e motivado pelos interesses das empresas de
telecomunicações, o PMDB articulou um “blocão” de parlamentares da base aliada
que declarou independência com o objetivo de impedir a presidenta Dilma
Rousseff (PT) de passar projetos pelo Legislativo – a pressão popular a favor
do Marco Civil e a intervenção do governo junto aos menores partidos do grupo
acabou esfarelando o “blocão” e garantindo a aprovação do projeto, mas não sem
causar importante desgaste político à principal aliança de Dilma para as
eleições de 2014 e modificar pontos importantes do projeto.
À primeira vista, a ditadura e os recentes embates do
governo com a bancada do PMDB no Congresso parecem assuntos desconexos, mas
estão intimamente relacionados. De acordo com cientistas políticos, o
relacionamento entre os poderes Executivo e Legislativo foi mal esquadrinhado
durante a redemocratização, e o PMDB teve papel predominante nesse processo.
Enquanto os demais partidos engatinhavam após o fim do bipartidarismo (que
durou de 1966 a 1979, ou até 1985 para os partidos autodenominados
“socialistas” ou “comunistas”) e a governista Arena se desfazia em legendas
menores, o MDB transferiu praticamente todo o acúmulo do período em que foi a
única oposição legalizada na política institucional para a formação do PMDB.
Ainda hoje é o partido com maior número de prefeitos e parlamentares eleitos no
Brasil, além de contar com o mais alto número de filiados. De acordo com a
Justiça eleitoral, o PMDB tem 2,2 milhões de filiados no Brasil, seguido por PT
(1,5 milhão), PP (1,4 milhão), PSDB (1,3 milhão) e PDT (1,2 milhão).
“O tamanho do PMDB vem de sua origem como MDB. Ele saiu na
frente dos demais durante a redemocratização porque já estava organizado em
diversos municípios, tinha muita capilaridade no interior do país. É, também,
resultado da Assembleia Nacional Constituinte, que não foi terreno neutro: lá,
o PMDB organizou forças em torno do ‘Centrão’, que pode ser considerado o
primeiro bloco ‘independente’ montado para se contrapor às rupturas mais
radicais com o status quo da época”, explica Aldo Fornazieri, diretor acadêmico
da Escola de Sociologia e Política de São Paulo.
Na Assembleia Constituinte, eleita em 1986 para redigir a
Constituição de 1988, o PMDB tinha nada menos que 54% dos parlamentares,
seguido pelo PFL, com quase 30% dos representantes. Ambos os partidos faziam
sustentação ao governo do presidente José Sarney (1985-1990), mas, durante o
debate sobre a nova Constituição, grupos de interesse no interior de cada uma
das siglas entraram em conflito e abriram espaço para que os partidos de
esquerda conquistassem influência desproporcional em relação ao seu número de
constituintes (PT, PDT, PCdoB, PSB e PCB somavam apenas 9% das cadeiras da
Constituinte). Uma nova maioria começou a se reorganizar para impedir garantias
constitucionais trabalhistas consideradas “excessivas” pela direita, e, segundo
o artigo “Procurando o Centrão”, dos cientistas políticos Rafael Freitas,
Samuel Moura e Danilo Medeiros, da Faculdade de Ciências USP, consolidou-se
como ‘Centrão’ apenas quando o sistema presidencial correu o risco de ser
substituído por outra forma de governo, o que poderia inviabilizar esse tipo de
manobra.
“No Brasil, Executivo e Judiciário são muito fortes em
relação ao Legislativo, mesmo que a Constituição de 1988 tenha resgatado
atribuições dos parlamentares. O principal ponto de conflito é o orçamento: o
Executivo elabora e executa o orçamento federal, e ao Legislativo sobra a
função de apenas aprovar os projetos. Isso é compensado pelas emendas
parlamentares, mas, também, pela partilha de cargos na administração,
geralmente levando deputados ou senadores a cargos no governo. Essa relação é
uma relação viciada desde o princípio”, avalia Fornazieri.
Segundo Antônio Augusto de Queiroz, do Departamento
Intersindical de Análise Parlamentar (Diap), as estratégias de pressão sobre um
poder Executivo inchado funcionaram tão bem que suas condicionantes foram mantidas
no sistema político atual e são utilizadas até hoje com frequência. “Desde a
redemocratização, não houve nenhum período pré-eleitoral em que não tenha
havido crise entre os partidos da base aliada. O sistema representativo
brasileiro, em que se permite coligações proporcionais em meio a um
pluripartidarismo inchado e confuso, faz com que os partidos que lideram os
governos, embora tenham muitos poderes à frente do Executivo, não consigam
dominar o Legislativo. É isso que gera o presidencialismo de coalizão e esse
tipo de relacionamento entre os poderes”, aponta.
“A rebelião na Câmara, no fim das contas, só gerou espuma,
mas a presidenta Dilma pagou pra ver a criação do blocão e perdeu. Para lidar
com esse sistema, ela precisa de mais articulação política para lidar com os
interesses dos partidos que não querem entrar em uma disputa eleitoral com a
perspectiva de perder cada vez mais espaço para o partido que lidera a
coalizão”, resume. Outra saída, segundo Toninho e Fornazieri, seria uma reforma
política que despersonalizasse o voto e acabasse com as coligações, fatores de
confusão para o eleitor: quando o PT, partido identificado com a
centro-esquerda, se une ao PP, da centro-direita, e um pode promover
parlamentares do outro para o Congresso, é mais difícil que a vontade popular
seja expressada no poder Legislativo de forma organizada ou coerente.
João Francisco Meira, pesquisador político da empresa de
pesquisas Vox Populi, aponta essa atuação “chantagista” do Congresso como um
dos principais fatores da baixa popularidade dos parlamentares junto aos
eleitores. “Os políticos do Congresso Nacional são os mais mal avaliados, e são
responsáveis por grande parte do desejo de mudança que permeia o eleitorado.
Basta ver que, durante os protestos do ano passado, alguns dos alvos de maior
fúria dos manifestantes foram as casas legislativas estaduais e municipais”,
reflete. “Ao mesmo tempo, o eleitor raramente sabe em quem votou para o
Legislativo, porque a campanha é confusa. É necessário ter um sistema de votação
em que se vote em propostas políticas, e não em pessoas, para facilitar a
compreensão do processo”, completa.
Em 2013, após os protestos de junho, a presidenta Dilma e a
parcela mais à esquerda da base aliada defenderam a proposta de convocar uma
nova Constituinte para debater uma reforma política que atenderia, em parte, a
essas demandas: entre as propostas defendidas pelos petistas estavam o voto em
lista, que acabaria com as coligações e com o voto em deputados individuais,
direcionando o voto às legendas, e o fim do financiamento privado de campanha,
que permite a eleição de parlamentares “patrocinados” por grupos econômicos e
incentiva a formação de “blocões” de interesses privados consoantes,
independentemente da legenda dos parlamentares. A proposta foi rechaçada pelo
Congresso, com participação central do PMDB na organização dos “rebeldes” da
base aliada.
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