Flávio Aguiar – Carta Maior
Hoje não há condições para que se dê um golpe de estado do
tipo que depôs o presidente João Goulart em 1964. Nem as Forças Armadas têm
condição, membros, lideranças, etc., para isto, nem um putsch destes tem apoio
de parcela significativa da população. Pesquisa divulgada pelo DataFolha (de
empresa famosa pelo empréstimo das camionetas para a OBAN) é eloquente neste
sentido: 62% apóiam a democracia, 14%
admitem a possibilidade de que uma ditadura seja melhor, 16% acham que tanto
faz.
Para quem ache tais números ainda duvidosos, é bom consultar
a série histórica pró-democracia: 43% em 1989, 54% em 1995, 59% em 2003 – o ano
em que a posse de Lula deveria provocar um “êxodo” de empresários, lembram?
Estamos progredindo. (matéria de Ricardo Mendonça, “Convicção na democracia é
redorde, mostra pesquisa”). Além disto, 75% acham que não há risco do país cair
numa ditadura.
Mas isto não quer dizer que os espíritos herdeiros do golpe
de 64 estejam dormindo de pijama. Estão de pijama talvez os militares saudosos
dos bons tempos do golpe, a maioria hoje na reserva. Mas os espíritos e os
motivos que deflagraram o golpe continuam em estado de alerta. Também alguns
dos meios, não todos. Vamos às comparações.
1) Pressões internas. O golpe foi deflagrado contra a) as
prometidas reformas de base, sobretudo a reforma agrária; b) os movimentos
populares, que foram criminalizados pela ditadura; c) o aumento da participação
na renda nacional por parte dos trabalhadores;
d) as sucessivas derrotas que os partidos conservadores sofriam nas
eleições, inclusive com o aumento das bancadas de partidos populares (então
ditos “populistas”) em órgãos legislativos; e) a ameaça de quebra da hierarquia
militar, configuradas em revoltas como a dos sargentos em 63 e a dos
marinheiros em 64, esta, aliás, liderada por um talvez já então, talvez no
futuro, agente provocador, o cabo Anselmo. De todos estes motivos que animaram
as nossas “classes conservadoras”, apenas o “e” deixou de estar presente hoje.
A fúria contra os programas de aumento da renda dos mais pobres continua a
existir.
2) A manifestação armada. Esta se deu no clima da Guerra
Fria, que facilitava os pronunciamentos militares, açulados, no caso da América
Latina, pela ameaça da Revolução Cubana. Este clima hoje não existe mais. Mas
no novo contexto, os golpes de estado deste lado do hemisfério (no Egito recentemente
houve um golpe ainda no estilo tradicional, sobre cuja natureza os Estados
Unidos e a União Europeia fizeram vista grossa, inclusive sobre a recente
condenação à morte de 529 membros da Irmandade Muçulmana) mudaram de tática e
de natureza. Eles são dados agora via Poder Judiciário e Poder Legislativo,
baseados na prática dos dois pesos e quatro medidas. O primeiro destes novos
golpes foi o da primeira eleição de George Bush, contra Al Gore. Feita a fraude
no estado da Flórida, a Suprema Corte dos EUA aceitou-a, numa votação apertada,
por 5 x 4.
Depois vieram aberrações como a declaração de
inconstitucionalidade do plebiscito preparado por Manuel Zelaya em Honduras, o
golpe parlamentar contra Eduardo Lugo no Paraguai. No Brasil criou-se o
linchamento de dirigentes petistas no Supremo – ainda quem sem atingir o
ex-presidente e a presidenta – baseado na diferenciação de procedimentos: para
aqueles reservou-se uma aplicação hetorodoxa, herética, na verdade, da “teoria
do domínio do fato”, exigindo que os acusados provassem a sua inocência, e do
julgamento com direito a impropérios e estardalhaço na mídia. Para seus colegas
pessedebistas envolvidos em acusações semelhantes, preservou-se a ordem
jurídica do “fato dos domínios”, isto é, continuou valendo a ideia de que todo
e qualquer julgamento deve seguir o passo a passo caracteristico dos domínios
jurídicos, começando nas instâncias inferiores e culminando nas superiores.
3) A participação da mídia conservadora. Este motivo e este
meio continua intacto. Em 64 a mídia fez campanha contra o governo de Goulart e
sem empenhou na conspiração. Depois, durante algum tempo, praticou a
auto-censura em relação seus jornalistas. Ocultou as pesquisas que reconheciam
a popularidade de Goulart e sua provável vitória em eleições futuras. Favoreceu
as Marchas com Deus e a Família. Hoje esta mídia faz campanha sistemática
contra o governo, manipula dados e manchetes, fez sucessivos progroms em seus
quadros em eleições anteriores, e estimula veladamente ou de modo escancarado
as manifestações contra o governo, desde junho, dizendo que não prega a
violência, mas na prática açulando-a.
4) A pressão externa. Esta foi capitaneada em 64 pelo
governo norte-americano. Hoje não há condições nem tempo para isto. Entretanto
as pressões externas continuam a haver, lideradas pela mídia de inspiração
neoliberal, como The Economist e Financial Times, com participação menor de
outros meios,como o Wall Street Journal. O objetivo é desacreditar o governo de
Dilma Rousseff e fazer campanha contra o Brasil, a Copa, os “gastos públicos”,
etc., campanha esta devidamente articulada com a mídia conservadora local. A
campanha vem obtendo sucesso, pelo menos no que se refere a conquistar espaço
em outras mídias. Falar mal do Brasil virou moda. Fazer comentarios absurdos
também, como o da comparação entre a Copa em 2014 com o clima de euforia da
Copa de 70, ainda que esta se realizasse no México. Há uma construção
consiciente da desinformação sistematizada: tudo o que acontece no Brasil é
ruim, o governo é inepto e – para os mais à esquerda – aderiu ao pacto das
elites nacionais que marginalizam o povo. Resta para este último argumento o
paradoxo de que estas mesmas elites – pelo menos seus membros conservadores –
almejam ardentemente “verem-se livres desta mulher”, para repetir expressão
extremamente sexista e pejorativa que ouvi recdentemente.
5) Apesar das semelhanças há algumas diferenças
significativas entre 64 e hoje, para além da impossibilidade de um golpe
militar tradicional hoje em dia no Brasil. Do lado pró-golpista há o fato de
que cresceu muito no Brasil uma esquerda de espírito sectário e estreito, que
quer fazer tudo para derrubar o governo Dilma/Lula. No plano institucional ela
apóia tudo o que a direita propõe e faz contra o governo, não apóia nenhuma
medida deste por mais positiva que seja. No plano da democracia direta incentiva a criação de um clima de violência
contra o governo, embora por vezes diga que não. É leniente, senão conivente
com black-blocs e coisas do gênero, fecha os olhos para os para-fascistas que
infestam estas manifestações, acha que estão na praça Tahir (a do passado)
fazendo da pregação anti-governo uma ladainha supostamente prérrevolucionária
já que as massas estão em ponto de ebulição, só não fervendo por causa da água
fria da dupla Lula/Dilma. Do lado anti-golpista, as organizações de
trabalhadores e democráticas se ampliaram notavelmente, e estão menos propensas
a cair em esparrelas como a da esquerda que em 54 se preparava para comemorar a
queda de Vargas e foi surpreendida, tanto quanto a direita, pela notícia do
suicídio, pela leitura da Carta Testamento no rádio, e pela tsunami popular que
saiu às ruas apeando os golpistas do pedestal em que imaginavam estar.
A ver o que passará.
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