Uma autoridade do Estado que se utiliza do cargo para
conclamar o repúdio a pessoas e a opiniões mostra que não sabe o que é ser um
democrata.
Antonio Lassance – Carta Maior
Irritado com as declarações do ex-presidente Lula à Rádio e
Televisão Portuguesa (RTP), contrárias à condução do processo do mensalão, o
presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Joaquim Barbosa, soltou
uma nota em defesa do processo e externando sua visão sobre o STF.
Nela, afirma que Lula tem “dificuldade em compreender o
extraordinário papel reservado a um Judiciário independente em uma democracia
verdadeiramente digna desse nome” e arremata dizendo que o STF é um "pilar
essencial da democracia brasileira".
Barbosa avalia que a declaração de Lula "é um fato
grave que merece o mais veemente repúdio", e que emite um sinal ruim ao
"cidadão comum".
"Cidadão comum", como sabemos, é uma daquelas
expressões orwellianas, usadas por quem acha que todos são iguais, mas alguns
são mais iguais que outros. Há cidadãos e "cidadãos comuns".
Na condição de "cidadão comum", creio que o fato
mais grave e que merece repúdio é alguém que se diz parte de um "pilar da
democracia" não admitir o direito de quem quer que seja de criticar o STF,
assim como podemos hoje criticar qualquer governo e o Congresso. São todos
órgãos do Estado, fundados e mantidos pelo cidadão.
O grave é uma autoridade do Estado se utilizar de seu cargo
para conclamar, em uma nota assinada enquanto presidente do Supremo Tribunal
Federal, o repúdio a pessoas e a opiniões.
Se alguém tem dificuldade para compreender alguma coisa em
matéria de democracia, de uma forma que seja "verdadeiramente digna desse
nome", esse alguém é o próprio Joaquim Barbosa.
Qualquer aula de introdução à Ciência Política e qualquer
cursinho sobre instituições políticas brasileiras mostram que o pilar da
democracia é o princípio da soberania popular.
Nossa Suprema Corte não é constituída por esse princípio.
Não é sócia fundadora da democracia. É fundada por ela. É ramo, e não raiz.
Barbosa poderia ter dito, por óbvio que seja, que o
Judiciário é um pilar da Justiça, da liberdade, dos direitos humanos, inclusive
contra os riscos dos governos da maioria.
Barbosa poderia e até deveria ter dito que esse não é um
órgão democrático e representativo, pois não é eleito, mas que não deve se
envergonhar disso. Trata-se de um órgão meritocrático, e até isso pode ser
posto em dúvida. Até que ponto os ministros que vão para o Supremo são, de
fato, os melhores? Há controvérsias saudáveis a respeito.
A confusão de Barbosa explica, em grande medida, sua
dificuldade de distinguir entre a missão do Judiciário e o serviço do
justiceiro.
Tal confusão demonstra de onde vem sua obsessão por invadir
o espaço reservado aos demais Poderes. Em seu cálculo, o risco institucional
vale menos que uma manchete. Daí o gosto pelos saltos triplos carpados
hermenêuticos, como disse um ex-ministro daquele mesmo STF, que também gostava
de praticar ginástica institucional.
O raciocínio rasteiro que subjaz à sua baboseira retórica
revelou-se, não faz muito tempo, na indecisão de Barbosa quanto a sair ou não
candidato. Embora já não possa se candidatar em 2014, até hoje ele continua
falando e agindo como candidato, e não como presidente de um Poder da
República.
Sua "lição" de estadista contra Lula mostra o
quanto Barbosa se desentende com o que é ser um estadista. Nem mesmo seu cargo
de presidente do Supremo; nem sua assessoria; nem sua toga esvoaçante foram
capazes de encobrir seu despreparo na hora de redigir uma nota em que deva
expressar uma correta definição sobre o que é e para que serve o STF.
O Supremo é um órgão essencial, mas hoje tristemente comandado
com mão de ferro - e como se isso fosse uma virtude, e não um veneno - por quem
não tem qualquer traço de estadista, muito menos de democrata.
(*) Antonio Lassance é cientista político.
Créditos da foto: Arquivo
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