por Clarice Victor / http://www.diplomatique.org.br/
No trabalho, a “cultura da
empresa” e as regras informais substituíram as estruturas reguladoras. Mas os
funcionários, e entre eles os executivos, não são bobos. Eles constroem dentro
das normas as diferenças entre sua realidade e um discurso oficial reconfortante.
O cinismo se revela paradoxalmente um poderoso aliado da organização do
trabalho e garante sua coesão.
“Os consultores de Stanwell estão
prontos para receber candidatos fora de série.” Em um comercial para o
lançamento de uma campanha de recrutamento do escritório de consultoria em
gerenciamento parisiense Stanwell, um jovem ator interpretando o papel do
recrutador, apelidado de Paul Stanwell, prepara-se para conduzir as
entrevistas.1 Diante dele o candidato é representado por um ventilador que
envia uma potente corrente de ar e bagunça toda a ordem de seu material de
escritório e também sua aparência conveniente de executivo: terno, gravata, ar
sério e impassível. O tom é de ironia; qualquer referência ao esforço e ao
trabalho é tratada como fora de moda.
Podemos nos espantar com essa
escolha para promover um escritório cuja função é colocar “especialistas” junto
a executivos dirigentes de multinacionais e cobrar por esse serviço muitos
milhares de euros por dia. Mas, por trás dessa encenação da destruição das
estruturas formais da organização, Stanwell deseja demonstrar sua concepção
“moderna” do trabalho.
Há algumas décadas, ela se baseia
essencialmente, como foi mostrado por Luc Boltanski e Eve Chiapello em 1999, em
Le nouvel esprit du capitalisme, nos valores de autenticidade e liberdade.2 O
discurso administrativo louva a realização pessoal, a autonomia, a
criatividade. A organização do trabalho se caracteriza pelo fim do recurso ao
poder coercitivo, substituído por um poder normativo não menos eficiente, que
repousa sobre a instrumentalização das emoções e dos afetos. Os trabalhadores
são incitados a aderir aos “valores” da casa, resumidos pelo termo “cultura de
empresa”, cujo objetivo é encantar e até mesmo sacralizar o trabalho.
“O trabalho é divertido”; “Não é
trabalho, é arte” (“Work is fun”, “It’s not work, it’s art”): são muitas as
expressões utilizadas pelos técnicos em informática que o sociólogo Gideon
Kunda3 levantou em seu estudo etnográfico de um grande grupo de tecnologia nos
anos 1980. Ele insistia a respeito do investimento do gigante da informática
para construir aquilo que chamava de “ideologia” da empresa, por meio do
emprego de uma série de símbolos: culto à personalidade do fundador, exaltação
da tecnologia como fator do progresso humano, referências quase religiosas ao
trabalho nos discursos em vídeo transmitidos repetidas vezes etc.
Com sua campanha promocional, o
escritório Stanwell pretende, quanto a si, fazer a economia da construção de
uma ideologia de empresa. Seu comercial se caracteriza pela anulação total da
instituição-empresa em benefício do indivíduo emocional e narcisista. Ele
termina com o slogan: “Stanwell recruta personalidades. A sua”. Em vez de
apresentar a identidade do escritório, como poderia ser esperado em uma
campanha promocional, ele valoriza, paradoxalmente, sua ausência. Nada é dito
sobre os fundadores, a “história”, os “valores”. Ao contrário, trata-se de
colocar em cena seu apagamento em benefício das “personalidades”, conceito vago
e vazio que visa dar a ilusão de que a atividade profissional está desconectada
de qualquer contexto social. A atmosfera sombria da encenação e o roteiro
reduzido a uma demonstração de violência ilustram ao mesmo tempo o vazio e o
espírito mercenário que caracterizam o trabalho contemporâneo no mundo da
consultoria em gerenciamento e dos bancos.
Cultura do cada um por si
Uma organização deliberadamente
tão pouco estruturada é uma garantia de liberdade para o indivíduo? Uma
garantia de relações salariais igualitárias? Um convite à criatividade? Uma
imersão nesse meio profissional mostra, ao contrário, a arbitrariedade e, por
vezes, a violência das relações salariais. Mas, longe de suscitar a
contestação, estas dão espaço a uma cultura do cada um por si e do cinismo que,
alimentada pela organização, favorece paradoxalmente a coesão da empresa.
O escritório de consultoria que
chamaremos de XYZ trabalha para transnacionais, em particular com bancos. Entre
as múltiplas funções que exercem junto a seus clientes, seus consultores cobrem
frequentemente uma necessidade de mão de obra de alto nível dentro de grandes
projetos. O XYZ é na verdade um escritório de consultoria “operacional”, cujos
clientes são, na maioria, executivos com cargos de diretores médios (ou middle
management), em oposição aos escritórios de consultoria de “estratégia”
(McKinsey, Boston Consulting Group e Bain & Co), que se dirigem às
direções-gerais.
Os funcionários, tanto os
consultores como os internos, criticam aberta e severamente a organização do
trabalho. Alguns sentem um mal-estar diante do tratamento “degradante” que lhes
é infligido. “Estou cansada de ser jogada como um pacote para cá e para lá”,
solta uma consultora. Outro julga seu trabalho cotidiano desprovido de
interesse: “Joguei meu cérebro e meu diploma no lixo. [...] E dizer que existe
gente que constrói pontes... E nós, fazemos o quê? Slides!”.4 Todos se entregam
regularmente à difamação de seus superiores hierárquicos, que julgam
“incompetentes” e chamam de “vendedores de bazar”. Eles consideram às vezes o
modelo econômico do escritório de consultoria injusto: “Porque o cara te coloca
[numa empresa cliente], ele ganha os prêmios e é pago dez vezes melhor do que
você. Mas ele não fez nada, e nem foi ele, no fundo, quem conseguiu te colocar
lá”, revolta-se um. Mas os superiores hierárquicos também não ficam atrás e se
deleitam em desvalorizar seu próprio trabalho diante de seus subalternos:
“Estamos na categoria da excelência operacional.5 Não somos o produto de luxo,
somos o macarrão da marca Walmart”, diz um gerente. A organização consegue
assim neutralizar qualquer contestação ao prescrever aos trabalhadores uma
tomada de distância entre sua função e a organização.
Em junho de 2011, durante um
almoço de trabalho para poucas pessoas, Raphaël, um diretor6 do XYZ, expôs sua
teoria sobre os objetivos da missão para o cliente – a venda de uma consultoria
é realizada de modo personalizado, junto a um executivo da empresa, e não junto
à empresa em si. Aqui, a missão consiste na reorganização em nível europeu de
uma atividade de um grande banco após uma evolução regulamentar. Raphaël
explica que, do seu ponto de vista, a evolução regulamentar é um “pretexto”
para a reorganização. “O cliente é pequeno, deve estar no gerenciamento de
projetos, alguma coisa do gênero. Ele vê a evolução regulamentar chegando.
Ninguém se preocupa. Ele joga sua cartada: vai ver seus chefes, propõe ser
chefe de projeto. Acrescenta: ele diz que vai ‘racionar’, reduzir os custos,
demitir. E seus chefes ficam contentes. Se ele conseguir, será promovido.”
O risco de ser sincero
Ele evoca em seguida O príncipe,
de Maquiavel,7 para explicar a presença do XYZ nesse projeto: “O que não é
bem-visto de fazer deve ser feito por outros [no caso, os consultores]”. Ele
desenvolve sua exposição para além da missão e chega ao assunto da organização
XYZ em si. Ele aconselha seus jovens subalternos a “nunca acreditar naquilo que
[lhes] dizem” e a aprender a “manipular”. Ele recomenda sempre falarem de
“generalidades”, sem se lançar em “precisões”. Ele insiste diversas vezes a
respeito da obra de Arthur Schopenhauer, A arte de sempre ter razão, cuja
leitura recomenda.
Dos consultores, espera-se que
“usem uma máscara”, que “joguem o jogo” do especialista comprometido com seu
trabalho pelo bem de seu empregador. Uma adesão sincera, no entanto, é
considerada ingênua e suscita o desprezo. Kunda, em seu estudo etnográfico do
grupo de tecnologia já citado, mostrava como os trabalhadores resistiam
individualmente à ideologia da empresa se persuadindo de que se tratava de um
jogo de papéis. “É apenas um papel que você interpreta” (“It’s just a game you
play”). No XYZ, devemos ser lúcidos, mas também deixar transparecer essa lucidez:
“jogar”, mas também deixar transparecer que se trata “apenas de um jogo”.
Édouard, um consultor, mostra,
por exemplo, uma adesão à organização que é grosseira demais para ser sincera,
de modo a deixar uma ironia subentendida. Ele não hesita em empregar fórmulas
grandiloquentes quando se dirige a seus superiores hierárquicos: “Eu acredito
na aventura XYZ”, “Aprendo muito com você” etc. Sem serem bobos, e precisamente
porque percebem nele uma lucidez e uma capacidade de brincar com esses códigos,
os chefes apreciam muito seu comportamento, a despeito do fato de – ou
justamente por isso –, como deixaram claro alguns de seus responsáveis, saberem
que ele está fingindo.
A prescrição de um distanciamento
com relação ao trabalho se traduz pela celebração de comportamentos que podem
ser considerados antiéticos. Sylvain Thine, em sua tese de Sociologia sobre o
mundo da consultoria,8 mostra assim como um consultor se vê reconhecido por ter
conseguido vender ao seu cliente uma prestação de consultoria sem utilidade
real nem de seu ponto de vista nem do ponto de vista de seus superiores
hierárquicos. No XYZ, o autor de tal proeza seria considerado “poderoso”.
Longe de aderirem a uma cultura
de empresa, os consultores do XYZ são convidados a tomar consciência da
“realidade”, quer dizer, a ausência de valores que não sejam relacionados ao
benefício de seu escritório – e de sua remuneração, que depende dele: “É a
vida”, “O que conta é a grana, o salário”... Boltanski e Chiapello mostraram a
capacidade do capitalismo de se renovar pela integração da “crítica artística”
que lhe tinha sido feita em maio de 68, segundo a qual a “inautenticidade” da
sociedade mercantil prejudicava a realização pessoal. Parece que o sistema de
gerenciamento atual consegue integrar todas as formas de crítica, incluindo a
crítica de sua hipocrisia, de suas contradições com os valores que prega e de
sua ausência total de atrativos. Sob a aparência de “princípio de realidade”,
vemos se realizar uma nova forma de ideologia de empresa, fundada desta vez sob
um cinismo assumido.
Empregado de um escritório
concorrente do XYZ, um jovem gerente testemunha: “Um dos meus chefes me disse:
‘Se você quer progredir aqui, tem duas opções: ou pega um cavalo – por exemplo,
um partnerque te coloca nos projetos –, sobe a ladeira em cima dele e joga ele
fora quando tiver chegado ao topo; ou é simpático com todo mundo, assim ninguém
fala mal de você e você progride tranquilamente”. Ele me disse ainda por cima
que a primeira opção funcionava melhor do que a segunda. “Eu faço as duas
coisas.”
Quanto mais a organização do
trabalho vai de encontro a seus valores morais pessoais, mais os funcionários a
assimilam como se fosse um terreno de jogo virtual, irreal, e aplicam
estritamente o comportamento que é esperado deles. Assim, Raphaël, o discípulo
de Maquiavel, se define como um homem de esquerda e demonstra regularmente suas
convicções, citando intelectuais como Naomi Klein ou Emmanuel Todd. No entanto,
quando ele é confrontado a uma situação como a reorganização descrita, não
intervém para acalmar seu cliente, como seu cargo permitiria fazer. Ele se
contenta em rir de uma mudança que pode se traduzir pela demissão injustificada
de diversos trabalhadores e cujo único beneficiado será a carreira de seu
cliente...
Clarice Victor
Clarice Victor é socióloga e
consultora na filial francesa de um escritório de consultoria em gerência. Este
artigo se inspira em um estudo etnográfico realizado em segredo em seu local de
trabalho – o escritório aqui chamado XYZ – entre 2011 e 2013
Ilustração: Daniel Kondo
1
www.stanwellrecrute.com.
2
Luc Boltanski e Eve Chiapello, Le nouvel esprit du capitalisme [O novo
espírito do capitalismo], Gallimard, Paris, 1999.
3
Gideon Kunda, Engineering culture: control and commitment in a high-tech
corporation [Cultura da engenharia: controle e compromisso em uma corporação de
alta tecnologia], Temple University Press, Philadelphia, 2006 [1. ed.: 1992].
4
Dispositivos de PowerPoint, principal instrumento de trabalho dos
consultores.
5
Segundo a tipologia estabelecida por Michael Treacy e Fred Wiersema em
The discipline of market leaders[A disciplina dos líderes de mercado]
(Addison-Wesley, Boston, 1995), a “excelência operacional” significa uma
qualidade razoável dos produtos e dos preços baixos, com a tônica no volume.
6
O cargo de diretor precede o de partner, ou sócio, em princípio o cargo
mais elevado de um escritório de consultoria.
7
Ler Olivier Pironet, “Machiavel contre le machiavélisme” [Maquiavel
contra o maquiavelismo], Le Monde Diplomatique, nov. 2013.
8
Sylvain Thine, “Les consultants et les systèmes d’information. La
déformation de l’espace du conseil français sous l’effet des nouvelles
technologies (1990-2005)” [Os consultores e os sistemas de informação. A
deformação do espaço da consultoria francesa sob o efeito das novas tecnologias
(1990-2005)], tese de doutorado, Ehess, Paris, 2008.
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