Uma viagem com Ariano Suassuna pelo sertão do Nordeste e
pela diversidade do mundo — pouco antes de Caetana levá-lo
Por Rosemberg Cariry - http://outraspalavras.net/
A vida de todos nós está sempre nos preparando surpresas,
umas difíceis, outras boas… Entre os bons acontecimentos da minha, está o
privilégio de ter encontrado Ariano Suassuna e com ele ter convivido, por
muitas semanas, viajando pelo sertão, realizando o O Nordeste de Ariano, com
produção e concepção de roteiro de Wagner Campos e Alexandre Nóbrega, produzido
pelo SESC Nacional.
Juntos, varamos os sertões do Ceará, Alagoas, Sergipe e
Bahia, só parando quando ouvimos a pancada do mar, o denso areal de Aracati,
onde Dom Sebastião – o Desejado se desencanta, com seu exército aluminoso, em
noite de lua cheia. Nestas andanças, erudito e simples na paciência
professoral, Ariano foi-se adentrando, nas artes barrocas populares e nas
lendas do povo, nas antropologias e interpretações da nação brasileira… De tudo
falou: de índios, de negros, de cafuzos, de brancos, de beatos, de cangaceiros,
de lutas e revoluções. “Oropa, França e Bahia” que se reinventam Brasil –
pátria dos encontros de todas as etnias e de todas as culturas, sob o signo da
universalidade e singularidade que nos engrandece e irmana.
Em várias ocasiões, diante de um curumim, nas ruínas de
Canudos, na Casa de Antônio Conselheiro, em Quixeramobim, vi o mestre Ariano
chorar. Ele se mostrava tão sensível, andava com o coração na mão e parecia
enternecido, quando a gente do povo o parava nas ruas; ou quando, nas aldeias,
os índios dançavam um Toré em sua homenagem e os quilombolas batucavam tambores
e sapateavam Zambé. Nessa caminhada, a ele eram destinados tão belos ritos, da
mesma forma que o Galo da Madrugada o homenagearia depois, no carnaval do
Recife. De todos, ele recebia muitas palavras carinhosas que se traduziam em
uma só ideia: “Olha o mestre Ariano, ele é um grande escritor e um defensor do
povo brasileiro”. Sim, Ariano Suassuna era um apaixonado pelo povo brasileiro,
parte indissociável dele, porque se fez sopro encantado desse mesmo barro; e
hoje, depois da sua morte, transformou-se em um defensor perpétuo e
desencarnado deste mesmo povo. Ele lutou a boa luta e não se entregou
facilmente. Gostava de dizer: “Tenho duas armas para lutar contra o desespero,
a tristeza e até a morte: o riso a cavalo e o galope do sonho. É com isso que
enfrento essa dura e fascinante tarefa de viver”.
A morte-mulher, que ele chamava Caetana, feiticeira e
sedutora, levou-o em seu cavalo branco, riscou os cascos da noite, atritou as
faíscas das estrelas e levantou o véu de poeira cósmica nas suaves vias
lácteas. A hora fatal foi cantada por Ariano com desassombro, com profundidade
e beleza, no poema “A Morte – O Sol do Terrível”:
Mas eu enfrentarei o Sol divino,
O Olhar sagrado em que a Pantera arde.
Saberei por que a teia do Destino
Não houve quem cortasse ou desatasse.
Não serei orgulhoso nem covarde,
Que o sangue se rebela ao toque e ao Sino.
Verei feita em topázio a luz da Tarde,
Pedra do Sono e cetro do Assassino.
Ela virá, Mulher, afiando as asas,
Com os dentes de cristal, feitos de brasas,
E há de sangrar-me a vista o Gavião.
Mas sei, também, que só assim verei
A coroa da Chama e Deus, meu Rei,
Assentado em seu trono do sertão.
Contador de histórias inigualável, com um humor solar,
alumioso, Ariano nos acalentava a alma com o riso e nos alimentava a mente com
suas sabedorias infindáveis. Para ele, o homem devia encarnar os arquétipos do
Rei, do Guerreiro, do cantador de histórias (o mentiroso) e do Palhaço. Ele
tinha na alma esses aspectos generosos da grandeza humana. Era um espírito
universal. O que Ariano Suassuna tinha de regional era justamente a sua
universalidade, amante que era do Cego Oliveira e de Cervantes, de Dostoievsky
e de Shakespeare, de Homero e de Garcia Lorca, de Molière e Goethe, de Lino
Pedra Azul e de Gil Vicente, de Guimarães Rosa e de Elomar. Mundos que se
reinventavam nos sertões sem porteiras, que Ariano carregava e recriava dentro
da alma. Este homem amava o Brasil por entender o que de universal herdara o
povo brasileiro, numa torrente de signos vindos de todas as culturas, povos e
etnias… Por isso, talvez, ele achava que “ao outro” ele só podia dar o melhor
de si, a sua própria originalidade.
Tido por alguns como conservador, Ariano Suassuna
surpreendia pelas suas ideias avançadas e politicamente arejadas. Ao modo de
Machado de Assis, gostava de denunciar o “Brasil oficial” (das elites e dos
exploradores do povo), que sempre corta a cabeça do “Brasil real” (os pobres e
deserdados dos campos e das cidades) cada vez que este povo avançava em suas
conquistas sociais e políticas. Gostava de citar o exemplo de Canudos e dizia
que cada vez que a polícia invadia uma favela, era Canudos que está sendo
devastada; que cada vez que explorávamos ou humilhávamos uma empregada
doméstica, era Canudos que estava sendo pisoteada; que cada vez que se
assassinava um líder camponês, indígena ou operário, era a cabeça de Antônio
Conselheiro que estava novamente sendo cortada… Canudos saía da história e do
sertão, para invadir as favelas cariocas e as cozinhas no nossos apartamentos
confortáveis de classe média ansiosa para entrar no “Brasil oficial”… Ariano
Suassuna marchou junto com Miguel Arraes em momentos decisivos e corajosos da
política nacional e terminou por se filiar ao Partido Socialista Brasileiro,
sendo o seu presidente de honra, embora preferisse o reisado de congo com suas
cores e brilhos, festas e repartição de comidas e dengos, nos terreiros da
gente humilde dos sertões e das cidades.
Se alguém me perguntasse o que, durante toda esta
convivência, ao lado dele, peregrinando por cidades, praias, serras, caatingas
e desertos, achei mais bonito ou mais importante em Ariano Suassuna, não me
seria difícil responder: foi o carinho e o amor que ele dedicava à Dona Zélia,
sua mulher – o grande amor da sua vida. Era comovente ver como ele a protegia,
como ele estava sempre se desfazendo em mimos por ela e lhe confessando a sua
paixão. Via-se ali um amor tão bonito que a todos nós comovia, como se aquele
sentimento fosse pura luz e irradiasse calor.
A todos da equipe de filmagem ele tratava com carinho e
tinha sempre, todos os dias, uma brincadeira para fazer, uma motivação para que
não desanimássemos da nossa difícil missão, quando a pessoa mais velha e mais
frágil, a que mais precisava de proteção e renovação de ânimo era ele. De
Petrus Cariry mangava porque se cansou na íngreme e pedregosa ladeira que leva
à Gruta de Angicos, onde morreram Lampião, Maria bonita e o seu bando; de
Júnior Sindeaux Jr. e Ezaquiel Rodrigues (eletricista e assistente) – espécie
de dupla de palhaços naturais, sempre inventando presepadas, ao modo de João
Grilo e Chicó – ria-se com fartura; de Dirceu Saggin (muito branco à sombra e
sempre vermelho ao sol), engenheiro de som, inventava antigos brasões e
fidalguias; com Wagner Campos, discutia políticas e conceitos filosóficos; com
Alexandre Nóbrega (esposo da sua filha Maria), apontava vontades e estirava a prosa
amiga; comigo falava de cantadores e de cinema… Sonhava ver os guerreiros
alagoanos em um filme, com a mesma beleza e dignidade dos samurais nos filmes
de Akira Kurosawa.
De toda a equipe, Dona Zélia e Ariano dedicavam especial
carinho e simpatia sincera à Bárbara Cariry e a Daniel Pustouka: era como se
esse casal de jovens enamorados os representassem na juventude, em todo o
frescor da vida e confiança no futuro. Para Bárbara e Daniel, Ariano Suassuna
pintou uma Igreja de Canudos e afetuoso lhes ofereceu. Era um quadro lindo – um
dos presentes mais bonitos que esses jovens terão recebido em suas vidas.
Maíra, minha outra filha, como presente, encantou-se com a magia de ouvir
Ariano narrar histórias, ao redor de uma fogueira, na Fazenda Magé, em Quixadá.
Depois de um longo intervalo, por causa de doenças
ocasionais do mestre Ariano, planejávamos retomar as filmagens, em outubro
próximo. De repente, chegou-nos a notícia de que Ariano sofrera um AVC
hemorrágico e estava internado no Real Hospital Português, em Recife. Ficamos
aflitos, preocupados, como se alguém da nossa família tivesse adoecido. Sim,
Ariano é alguém da nossa família, não apenas da minha ou da sua, mas de todos
nós nordestinos e brasileiros. Ariano é uma espécie de pai espiritual e mítico
de todos os artistas e intelectuais da minha geração. Mesmo os que, por falta
de informação ou por equívocos de interpretação, combateram as suas ideias. No
fundo, estávamos todos tocados pelo universo mágico e universal da sua
literatura, que superava as nossas diferenças ideológicas ou estéticas.
Ninguém lê Ariano Suassuna, impunemente, sem que a sua vida
se transforme. Confesso que o meu cinema tem muito de Ariano e do sertão que
ele me ensinou a desvendar, a intuir e ver para além das mais chãs aparências.
O meu primeiro filme de ficção, “A Saga do Guerreiro Alumioso”, é uma homenagem
e leitura compartilhada do universo sertânico e imaginoso de Ariano. Ler a
literatura de Ariano é um processo iniciático, feito o do cavaleiro da Távola
Redonda, que, à procura do Santo Graal, termina por encontrar a sua própria
alma e um sentimento profundo de pertencimento a um povo e lugar; não no
sentido de um regionalismo estreito, mas de um “lugar sagrado”, de onde se
torna possível amar o mundo e a diversidade cultural dos povos do planeta,
enquanto completamos o nosso processo de individuação, no sentido que lhe dava
Gustav Jung.
Dizem que, quando o homem morre, encanta-se e encontra sua
plenitude. O que sei é que, quando um grande homem morre, faz-se mais vivo do
que nunca. Todo morto é mágico, e sua história, livre dos limites da carne, já
pode ser contada e reinventada, pelos séculos afora. A plenitude de um homem é
a sua eterna reinvenção. Se antes éramos os filhos espirituais em luta edipiana
com o pai pela posse da “mãe arte”, com a morte do “pai”, somos seus herdeiros
e temos o compromisso de ajudar, como ele o fazia, na recriação ou
transformação do mundo. Acredito que mesmo a mais ousada vanguarda nordestina
(mesmo aquela que guarda fortes influências estrangeiras) é filha de Ariano,
muito embora com ele possa arengar. Em Ariano, todos se encontram: de Chico
Science a Caetano Veloso, de Elenilson a Samico, de Marlos Nobre a Antônio José
Madureira, de Gilberto Gil a Antônio Nóbrega, de Lenine a Wagner Campos, de
Cláudio Assis a Kléber Mendonça – todos beberam na mesma fonte luminosa das
artes populares e eruditas universais, por Ariano tão profundamente
valorizadas, antes de usarem os engenhos das misturas alquímicas e invenções
pós-modernas, para fazerem as suas artes brasileiríssimas. Toda vanguarda, ao negar
uma pretensa tradição, tenta dela se apoderar para melhor destruí-la e, ao
fazer isto, sela o seu destino: bebe “o veneno” da sua própria destruição
enquanto “vanguarda”, pois condenada está a também virar uma tradição, no ciclo
sem fim das dinâmicas culturais e das dialéticas históricas. É por isto que a
modernidade e as vanguardas do século XX ficaram tão antigas e têm um sabor de
tradição. São tão inofensivas e saborosas como uma tapioca com queijo, servida
com café quente, ao entardecer.
Ariano se foi, levado pela morte Caetana e as “asas rubras
de dragões antigos”, feito um guerreiro do reisado, que subiu pro céu e o seu
pai – o seu herói, o seu Rei – que cedo lhe roubaram, com sua mãe, em companhia
de São Pedro, está agora a recebê-lo na porta, para fazer de novo pulsar juntos
dois corações. Encantou-se feito Dom Sebastião. Com certeza, se existe mesmo
este céu do qual fala a tradição bíblica, deve ser como o céu imaginado pelo
poeta e cordelista José Pacheco – um céu que é uma representação do sertão, com
casa de varanda, pote de barro, terreiro para dança de guerreiros e congadas,
vaquejada e cantadores… Não tenho dúvida de que, neste momento, Ariano já deve
estar neste céu, arrodeado de gente boa (Luiz Gonzaga, Patativa do Assaré,
Jackson do Pandeiro, Paulo Freire, Padre Cícero, Severino Pinto, Antônio
Conselheiro, José de Alencar, João Ubaldo Ribeiro, Darcy Ribeiro, Padre
Ibiapina, Inácio da Caatingueira, Glauber Rocha, Jorge Amado, Dona Ciça do
Barro Cru, Gilberto Freire, Graciliano Ramos, Euclides da Cunha, Mestre
Vitalino, Rachel de Queiroz e João do Vale, entre centenas de outros… Gente que
não acaba mais), diante da sua Santa Compadecida – que compreende e perdoa os
pequenos pecados dos homens, contando causos e dando boas gargalhas.
Acho que hoje, no céu, a lua deve estar clara e deve fazer
frio, são tão frias as noites no céu… Daí esta fogueira que arde com a luz da
arte e ilumina o mundo. Sei que a saudade dói, mas num se avexe não, minha
gente… Vez por outra, Ariano virá dar umas voltinhas pelo sertão… Quererá
alumiar e se achegar às pessoas e coisas mais amadas que por ali sem querer
deixou… Só conseguirão vê-lo aqueles que têm na alma os olhos abertos para a
poesia… Ele virá encantado e alumioso, como Dom Sebastião, e aparecerá, nos lençóis
maranhenses e nas dunas do Cumbe, com seu exército alumioso formado por
violeiros, cantadores, mamulengueiros, rabequeiros, xilógrafos, cordelistas,
escritores, brincantes de reisados, dançarinos, mascarados, artistas plásticos,
romeiros, músicos, vaqueiros e milhares de palhaços de circo feito Chicós e
Joões Grilos, anti-heróis sertanejos resgatados da Comédia dell’arte e das
brumas dos séculos, pela alma generosa do povo mestiço, que tudo reinventa e
alimenta. Ele também surgirá sozinho nos corredores da casa bonita (na rua do
Chacon, no bairro de Poço de Panela, em Recife), de mansinho, leve com uma
pluma, apenas para se achegar a Dona Zélia e dizer (delicadamente em forma de
saudade), no seu ouvido: – “Zélia, meu amor, aí que saudade d’ocê”.
Salve, Mestre Ariano, de todos os sertões do mundo, teu nome
faz mais bonito o Brasil!
Fortaleza, 23 de julho de 2014
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