Austeridade aprofunda a crise do socialismo francês

O protesto estava limitado aos parlamentares do PS. Mas quando atravessou a linha vermelha e se instalou no coração do governo, Hollande cortou cabeças.

 
Paris - A guerra das esquerdas francesas e seu objeto de discórdia central, a austeridade, derrubou o segundo governo do presidente francês, François Hollande. O primeiro ministro, Manuel Valls, apresentou a renúncia completa de seu Executivo após um fim de semana no qual os representantes mais progressistas do gabinete criticaram a continuidade das políticas de austeridade e pediram uma mudança de rumo.  O paradoxo é tão extravagante como impiedoso: o encarregado de lançar o ataque foi quem, até o domingo, era o ministro da Economia, Arnaud Montebourg, ou seja, o encarregado dessa política econômica.

O ex-ministro é conhecido por suas posições contrárias ao dogma liberal, por seus ataques contra a globalização e suas posições a favor de um "capitalismo cooperativo". Montebourg deu uma entrevista ao jornal Le Monde, onde declarou que era peciso deixar de lado "a redução do déficit". Além disso, acrescentou que "a redução forçada dos déficits públicos é uma aberração econômica, um absurdo financeiro e um desastre político". Ante o socialismo militarizado de Manuel Valls e a linha assumida por François Hollande na qual prevalece sobretudo o rigor orçamentário, seus dias estavam contados. O presidente francês já havia dito que não havia "escapatória" em relação a essa política e Manuel Valls ratificou que as mudanças estavam "excluídas", ao mesmo tempo que tratou de "irresponsáveis"  os atores rebeldes do Partido Socialista que estão exigindo há meses outro horizonte.

A tempestade decapitou o governo formado há cinco meses, pouco tempo depois das calamitosas eleições municipais que custaram centenas de municípios ao PS francês. A contradição entre as promessas eleitorais - "meu inimigo é a finança", como disse Hollande na campanha, e a realidade do exercício do poder tornou inviável a convivência entre os dois grupos. O giro liberal de François Hollande deixou primeiro o país atônito e agora o envolve em uma contagem regressiva que o jornal Le Monde resume em seu editorial como "a última possibilidade de salvar a presidência".

A situação era insustentável. O protesto estava limitado até agora aos parlamentares do PS. Mas quando atravessou a linha vermelha e se instalou no coração do governo, Hollande e seu primeiro ministro não duvidaram em amordaçar o debate e sacrificar aqueles que o alimentavam. Custe o que custar, os dois responsáveis mantiveram o rumo: austeridade - economia de  50 bilhões de euros - e reativação da economia a partir da oferta mediante um custoso programa de apoio às empresas, o polêmico "pacto de responsabilidade". Arnaud Montebourg não é o único que desembarca do obediente barco de Hollande e Valls.

A ministra da Cultura, Aurelie Filippetti, anunciou que não fará parte do próximo governo. Benoît hamon, o ministro da Educação e também membro do grupo rebelde, está igualmente em questão. Segundo das instruções do chefe de Estado, Manuel Valls deve formar uma "equipe coerente com as orientações".

A socialdemocracia de François Hollande e Manuel Valls é muito contemplativa. Quem não está de acordo tem que se calar, é um "irresponsável", não entende que sim as reformas a esquerda "pode desaparecer" (Valls)  ou se choca com o carteiraço retórico segundo o qual "não existe outra saída para a crise".

Montebourg e Hamon representavam a garantia dada à ala esquerda do PS. Com sua saída de cena, o mandatário termina de isolar aqueles que contribuíram para sua vitória em maio de 2012. A primeira coisa que fez foi despachar a Frente de Esquerda de Jean-Luc Mèlenchon, depois eliminou os ecologistas do governo, mais tarde deslegitimou os senadores progressistas do PS e agora expulsa os irredutíveis.

Uma das representantes mais sólidas da ala esquerda do PS, Marie Noëlle Lienemann, disse que François Hollande se encontrava "como um rei nú". A maioria socialista na Assembleia Nacional pode se tornar instável. No início, os opositores socialistas à linha centrista liberal eram um pequeno grupo, logo passaram a ser dezenas. A eles foram se somando deputados ecologistas e e comunistas. O afastamento de Montebourg traça uma fronteira cada vez mais profunda entre o mandatário e suas tropas decepcionadas. A ameaça de uma dissolução da Assembleia nacional entra hoje em todos os cálculos.

O debate em torno da austeridade envenena a esquerda europeia há anos. O cruzamento de ideias se traduziu na França por uma ruptura insólita no interior de um mesmo partido. "A esquerda está em perigo de morte", dizia o primeiro ministro Manuel Valls cada vez que defendia suas reformas como condição de sobrevivência da socialdemocracia. Com certeza, respondia, Montebourg, mas é por causa dessas reformas que se morre. "As políticas de austeridade não funcionam e, além disso, são injustas", disse o ex-ministro ao se despedir de seu cargo.

Rigor orçamentário, reformas estruturais de corte liberal, compromissos com o empresariado, o coquetel irredutível da política europeia afundou o crescimento, o mercado de trrabalho e até um governo de perfil socialista retórico.

Paladino da hostilidade ao euro, crítico da Alemanha e da Comissão Europeia, Arnaud Montebourg era um incômodo ministro face à agenda reformista e estranguladora de Bruxelas. A imprensa liberal da Europa exulta de Alegria com sua renúncia. Seu afastamento, assim como o de outros ministros rebeldes, é um sinal de derrota e resignação da parte de um homem, François Hollande, que havia se apresentado como a alternativa socialdemocrata ao pensamento único do euroliberalismo. Junto com Manuel Valls, Hollande terminou encarnando uma socialdemocracia de quartel, autoritária, intolerante, vazia de toda mensagem e épica política, seca como um poço pré-histórico.

Tradução: Louise Antônia Leon


Créditos da foto: Getty Images

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