Programa de Marina pode ser resumido em uma linha: nova
política reserva 20% do orçamento para educação e saúde, mas entrega comando
fiscal à agenda do arrocho.
por: Saul Leblon - http://www.cartamaior.com.br/
O programa de Marina Silva, lançado na mesma sexta-feira em
que o Datafolha lhe dava uma vantagem de 10 pontos sobre Dilma Rousseff no
segundo turno - ao qual se credenciou depois de crescer nada menos que 13
pontos em 11 dias - tem 242 páginas.
É um livro.
Mas poderia ser resumido em uma linha: a ‘nova política’ da
novíssima Marina Silva é ortodoxa nas questões econômicas que condicionam o
destino da sociedade, e liberal nos costumes que já romperam as amarras do
presente.
Assim: o Brasil de Marina Silva entrega a moeda, os juros, o
câmbio, os salários, a política externa e a fiscal à supremacia dos mercados
financeiros.
Em resumo, o país renuncia ao comando do seu destino e ao
destino do seu desenvolvimento.
Mas acolhe o que já é um fato reconhecido até pela Justiça:
o justo pleito da união civil entre homossexuais e o direito à adoção de
crianças por casais gays, por exemplo.
Se do ponto de vista da evangélica Marina Silva isso pode
criar algum ruído junto a apoios prometidos – como o do pastor Silas Malafaia ,
um cruzado da homofobia (leia ’Ousar e vencer ou entregar o Brasil aos
mercados passivamente?; nesta pág); de outro lado, essa concessão é mais
que compensada pela abrangência de interesses contemplados por outras
diretrizes de superlativo impacto na repartição do poder e da renda.
Por exemplo, rebaixar o espaço estratégico do pré-sal na
política de desenvolvimento e resgatar o da energia nuclear.
Mas também fragilizar o Mercosul em benefício de acordos
bilaterais –leia-se subordinar a diplomacia brasileira à agenda hegemônica dos
livres mercados numa restauração da lógica da Alca sepultada desde 2003 (leia
mais no Blog-do-Emir; nesta pág.)
Marina Silva se oferece assim às elites e aos endinheirados
como uma espécie de ‘topa tudo’. Um candidatura desfrutável como um Bom Bril,
que se presta a mil e uma utilidades.
Não é pouco. E não surpreende que amplas parcelas do PSDB - e
da mídia que apoiava seu candidato, já tenham cristianizado Aécio Neves, para
embarcar no meteórico ônibus da ‘nova política’, rumo à Brasília.
Repita-se aqui o que disse Carta Maior em nota anterior. A
oportunidade representada por Marina Silva contempla aspirações de poder que
invariavelmente, desde 2002, encontraram dificuldade de se expressar através de
um palanque que emprestasse carisma popular a um projeto de raízes tão
excludentes.
Agora não mais, graças à ascensão desse super-bond chamado ‘nova
política.
De novo, vale repetir: trata-se de um retrofit político e
ideológico.
Retro, do latim “movimentar-se para trás” e fit do inglês,
adaptação, ajuste.
Termo originado da arquitetura, o retrofit é recomendável
quando um edifício chega ao fim de sua vida útil.
É uma opção para corrigir o desgaste e a decadência do uso
sem, todavia, alterar seus alicerces e estruturas de sustentação. Fica mais
barato e é funcional.
O programa de Marina Silva é um retrofit do neoliberalismo .
O desafio de vida ou morte do campo progressista nesse
momento é restaurar a transparência dos dois polos em confronto na sociedade
brasileira, dissimulados sob a aparência de uma ‘nova política’.
O calcanhar de aquiles do retrofit conservador é o
antagonismo entre a maquiagem da fachada e de alguns equipamentos e a rigidez
dos pilares e colunas estruturais.
Num edifício isso é contornável com algum jogo de decoração.
Numa sociedade pode ser insuportável.
A participação soberana e democrática da população nas
decisões sobre o desenvolvimento frequentemente evoca mudanças estruturais que
colidem com os interesses calcificados que a ‘nova política’ visa preservar.
Um exemplo resume todos os demais.
O programa de Marina Silva afirma que vai destinar 10% do
orçamento à educação em seu mandato –antes, portanto, do ciclo de dez anos
previsto pelo governo Dilma, que ancora sua projeção em ganhos com os royalties
do pré-sal, cuja centralidade será descartada em um governo do PSB.
Diz, ainda, que assentará 85 mil famílias de sem terra (em
2012 foram assentadas 23 mil).
E sinaliza que destinará outros 10% do orçamento à saúde.
Uma pergunta: fará tudo isso ao mesmo tempo em que entrega
aos centuriões do mercado o comando da política fiscal para procederem ao
arrocho no gasto público?
Não só.
Marina afirma apoiar o decreto de Dilma, demonizado pela
elite que a festeja, da Política Nacional de Participação Social.
É justo perguntar: participação em que, quando se terceiriza
aos operadores do mercado a prerrogativa de fixar os principais preços da
economia, entre eles a taxa de juros, delegada a um Banco Central independente?
(Leia
esclarecedor artigo de Paulo Klias sobre esse tema; nesta pág).
Marina e seus formuladores defendem a mesma autonomia em
relação a outros preços estratégicos.
O câmbio, segundo eles, deverá flutuar livremente.
Quanto aos salários (o terceiro preço decisivo no capitalismo),
já se antecipou que a política de valorização do salário mínimo adotada pelos
governos petistas será revertida.
É justo repetir a pergunta: assim encapsulada a economia nas
mãos do mercado, o que sobra à participação social endossada por Marina Silva?
Visto desse prisma da dinâmica econômica e social, o
programa de 242 páginas resume-se a um embrulho vistoso que guarda uma única
determinação implacável: devolver a agenda do desenvolvimento à supremacia dos
mercados.
A um custo social não mencionado, mas implícito.
Dizer que manterá o Bolsa Família , como o faz o calhamaço,
mas sinalizar com o arrocho do salário mínimo, implica devolver à miséria
milhões de famílias assalariadas.
Prometer assentar 85 mil sem terra e praticar uma política
cambial, monetária e tarifária como querem os operadores de mercado é enxugar o
chão com a torneira aberta: centenas de milhares de famílias serão cuspidas de
seus lugares e de seus empregos.
Por tudo isso, é pertinente dizer que o endosso de Marina à
política de participação social lançada por Dilma significa pouco mais que um
retrofit na palavra simulacro.
O conjunto, porém, envolve uma operação de potencial
lucrativo tão elevado que ao mercado compensa tolerar os penduricalhos da
‘professora que veio dos seringais’ –desde que a cozinha econômica fique, como
já se definiu que ficará, nas mãos experientes dos açougueiros do mercado
financeiro.
Não é só uma sucessão presidencial, portanto, o que está em
jogo.
É uma mutação histórica do desenvolvimento brasileiro que se
for implementada marcará funestamente a vida desta e de futuras gerações.
Diante da gravidade do que se avizinha, Carta Maior reitera
seu editorial anterior:
Ao aluvião de interesses graúdos - e de descontentamento
difuso, seduzido pelo glamour da ‘nova política’, não basta contrapor o
exaustivo balancete publicitário do que se conquistou e se incorporou à rotina
do país nestes últimos 12 anos.
É importante, mas não é suficiente.
É forçoso contrapor à ‘nova política’ aquilo que a desnuda e
afronta.
É urgente dizer pelo que se luta; e contra quem se trava a
batalha dos próximos dias e noites.
Essa é uma batalha
entre a democracia social e as forças regressivas mobilizadas pelos interesses
globais que acossam a economia brasileira.
É preciso escancarar a contradição entre o retrofit
messiânico que as expressa e as estruturas calcificadas que ele maquia.
É preciso contrapor a isso um salto efetivo da democracia
participativa que devolva à sociedade o poder reordenador que agora se pretende
terceirizar aos mercados.
Tornar esse salto palpável aos olhos da população requer um
símbolo de magnetismo equivalente às tarefas que essa agenda encerra em termos
de repactuação de metas, concessões, salvaguardas e organização política.
Um novo governo estruturado em torno dessa renegociação do
desenvolvimento requer um chefe de Casa Civil dotado, ao mesmo tempo, de inexcedível
sintonia com a Presidenta Dilma , e de incontrastável representatividade
popular.
Essa referência existe; já funciona de fato como líder
político do campo progressista; deveria ser oficializado desde já no anúncio
antecipado da composição de um segundo governo Dilma.
Seu nome é Lula.
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