É possível ser governo e colocar a história em banho-maria?
E nesse fogo brando, entregar aos centuriões do mercado o comando de setores
chaves da economia?
por: Saul Leblon - http://www.cartamaior.com.br/
É possível ser governo e colocar a história em banho-maria?
E nesse fogo brando, entregar aos centuriões do mercado o
comando de setores chaves da economia, sem perder o poder da iniciativa
política na sociedade?
É possível trazer os conflitos de classes para dentro da
equipe de governo, entregando ao dinheiro organizado a cogestão do mandato, e ainda assim avançar
para construir uma hegemonia que dê ao campo progressista a capacidade de, no passo seguinte, inverter a
sensação atual?
A de que vencemos, mas não levamos.
É possível contemplar os protagonistas do terceiro turno em
curso, outorgando-lhes fatias do Estado que não conquistaram nas urnas, sem
perder o apoio mobilizado daqueles que há 12 anos sustentaram a aposta no
projeto oposto, renovada por mais quatro em outubro de 2014?
É possível fazer tudo isso sem transformar o segundo mandato
de Dilma em um frango desossado da Sadia, destrinchado e servido em pedaços
inversamente proporcionais à métrica das urnas?
Elucubrações fervilhavam nos círculos progressistas neste
fim de semana marcado pela sinalização – ainda não oficial—dos nomes que
integrarão o núcleo duro do governo Dilma na área da economia.
A ver para crer, o pelotão será encabeçado pelo centurião do
arrocho fiscal, Joaquim-Mãos-de-Tesoura-Levy. O cetro lhe foi merecidamente
atribuído no 1º governo Lula, cujo início ortodoxo agora se aconselha a Dilma
em resposta ao cerco conservador, semelhante, em certos aspectos, ao terceiro
turno armado em 2003.
Coube então ao mesmo Levy, no comando da Secretaria do
Tesouro, ao lado de Antônio Palocci, na Fazenda, adotar o receituário de
arrocho fiscal e juros altos para combater a inflação, quebrar o descontrole da
dívida pública e resgatar a confiança dos investidores.
A travessia funcionou naquele caso.
E não se pode esquecer que as condições herdadas do ciclo
tucano eram acentuadamente piores que as atuais: a inflação lambia os 13%; a
dívida pública transitava acima de 60% do PIB; uma perversa associação entre
déficit externo alto e reservas indigentes convidava à fuga de capitais. O
dólar bailava nas alturas.
Levy/Palocci/Meirelles (este importado diretamente do Banco
de Boston para o BC de Lula) mostraram logo a que vinham.
A Selic foi esticada a 26% ao ano (hoje é de 11,5% e já
paralisa o país); o superávit primário foi fixado em 4,25% do PIB ( este ano,
descontados os investimentos do PAC e desonerações, será próximo a zero).
A tesoura nos gastos foi inclemente, com um porém.
A área social foi
poupada: o investimento neste caso aumentou
o equivalente a 0,58% do PIB
entre 2003 a 2006.
O Bolsa Família deu um piso à pobreza extrema.
Mas foi sobretudo o aumento do salário mínimo, de 40% no
período, que funcionou como contrapeso
ao arrocho, beneficiando milhões de famílias e aposentados.
A inércia do desastre tucano e o aperto econômico provocaram
uma redução de 12,6% do rendimento médio real do trabalhador no primeiro ano do
primeiro governo Lula.
A taxa média de desemprego nas cinco regiões metropolitanas
subiu de 11,7% para 12,3%.
Em 2004, o PIB retomou um ritmo forte de crescimento (4,9%),
e a taxa de desemprego caiu para 11,5%.
Não o suficiente, ainda, para reverter a ladeira do rendimento real dos
assalariados, que recuou mais 0,7%.
Só em 2005 ele cresceria, de fato, 2%; sem beneficiar,
todavia, os trabalhadores com carteira assinada (que tiveram queda de 0,8% na
renda real no ano).
Essa receita politicamente delicada pode ser digerida sem um
ônus maior porque uma válvula de escape econômica estava incrustrada em sua
moldura estratégica.
Essa válvula de escape encontra-se indisponível hoje.
No primeiro governo Lula, o arrocho interno foi compensado
por uma expansão do mercado mundial da ordem de 4,5% ao ano.
Puxava-o a locomotiva asiática.
Com crescimento médio de 11% no período, a China sozinha
respondia por 40% do estirão global.
A forte demanda chinesa por matérias-primas e alimentos
resultou na decolagem das cotações mundiais das commodities agrícolas e
minerais.
O Brasil foi beneficiado nas duas pontas.
Entre 2002 e 2011, as exportações brasileiras
quadruplicaram; a alta dos preços
correspondeu a cerca de 65% deste resultado.
O peso das commodities nos embarques saltou de 45% para 60%.
Mas os produtos manufaturados também ganharam espaço triplicando as vendas para
uma América Latina favorecida pela mudança nos termos das trocas internacionais.
O saldo comercial médio do país entre 2003 e 2007 foi de US$ 38 bilhões (10 vezes maior que o
de 2013).
O conjunto deu ao Brasil a inédita vantagem de superávits em
transações correntes – de 1% a 2% do PIB-- contra déficit atual da ordem de
3,5%.
Portanto, se hoje os nomes se repetem na sinalização de uma
estratégia parecida o pano de fundo global é adversamente distinto.
A estagnação decorrente da implosão da ordem neoliberal, com
comércio declinante e a locomotiva chinesa a meio vapor, subtrai ao país o espaço acomodatício que a
implementação da receita original requisitaria.
Um atenuante de peso não pode ser minimizado.
O desarranjo interno atual, repta-se, é incomparavelmente
mais brando do que o desmantelo legado pelo ciclo tucano faz diferença.
Hoje, a relação
dívida pública/PIB encontra-se estabilizada na faixa dos 37% contra 60% em
2002; as reservas passam de US$ 370 bi, dez vezes maiores que o saldo deixado
pelos governos do PSDB; a inflação declinante, de 6,4%, está abaixo do teto da
meta, sendo a metade dos 12,3% produzidos pelo neoliberalismo tucano.
Se a equação mais favorável dá a Dilma maior poder de
controle sobre os paladinos do arrocho, persiste, todavia, o vácuo estratégico.
A ausência de dinamismo produtivo –antes favorecido pela
expansão mundial-- pode algemar a
economia a uma bola de neve de retração de investimento, desemprego e esgarçamento social.
Que peça do tabuleiro seria capaz de desarmar essa emboscada
fatal?
Desde logo, fica claro que é preciso ir além do amparo aos
mais pobres, de 2003.
Essa conquista está precificada nos impasses atuais.
E, deixemos de miragens: os mercados não deflagrarão um novo
ciclo expansivo por obra e graça dos acenos de Levy e Tombini.
A hipótese de que se possa injetar racionalidade ao
capitalismo brasileiro com a paradoxal adoção, mesmo parcimoniosa, de sua
irracionalidade na gestão econômica, soa otimista.
O buraco é mais fundo.
‘O Brasil não tem mais um empresariado com projeto de
desenvolvimento’, diz o economista Luiz Gonzaga Belluzzo, ainda a mascar o
cardápio ministerial que recusa a enviar ao seu sistema digestivo.
‘Na Inglaterra, nos anos 20, também foi assim’, diz o economista
ecumenicamente reconhecido como referência intelectual no debate do desafio
brasileiro.
Sem renunciar à serenidade característica, ele estica um fio
histórico que vai muito além da fulanização das escolhas ministeriais:
‘Nesse vácuo de projeto, o comando da sociedade fica
submetido aos impulsos rentistas. É preciso entende-los para não subestimar o
seu impacto e o seu alcance’, delineia para cravar o alvo de sua preocupação: o
risco de uma deriva brasileira.
‘O rentismo age compulsivamente na tentativa de preservar
sua riqueza das incertezas intrínsecas ao sistema. A isso corresponde uma forma
social. Essa que vivemos. Com as suas consequências políticas, econômicas e
humanas. A Inglaterra dos anos 20 viveu um quadro equivalente e entrou em decadência’,
adverte o economista.
E descortina em seguida: ‘ A decadência inglesa foi a grande
referência de Keynes; boa parte de sua obra é a busca de uma resposta a isso. O
Brasil corre o risco de ingressar em um processo de decadência precoce, assim
como precocemente assiste à desindustrialização’, resume.
A incapacidade de o país estruturar uma alternativa política
a essa espiral explica que um mês depois da vitória eleitoral progressista,
aguarde-se o anúncio de Joaquim-Mãos-de-Tesoura-Levy para comandar a Fazenda do
segundo governo Dilma.
Não é uma jabuticaba brasileira.
‘Assiste-se em todo o mundo a uma regressão da
macroeconomia’, arremata Belluzzo citando a insuspeita avaliação de um dirigente mundial do
CityGroup.
Por regressão macroeconômica entenda-se o fato de que a
supremacia financeira, contra a qual Keynes lutou incansavelmente, deixou de
figurar como o ‘germe de uma decadência’ curável com antígenos produtivos do
próprio sistema.
O rentismo não é uma patologia do capitalismo no século XXI.
É um desdobramento inerente à dinâmica de um sistema deixado
à própria lógica.
Sem os contrapesos de forças em sentido contrário, o
capitalismo quanto mais dá certo, mais dá errado. Nos seus próprio termos.
O rentismo é o seu auge para os detentores do capital. E o
abismo para a sociedade.
Nesse percurso avesso às convergências racionais as crises
regurgitam uma desordem constitutiva.
E assumem invariavelmente a forma de superprodução - “de
capital e não de mercadorias”, diria Belluzzo.
É justamente a
reprodução em metástase do capital fictício, decorrente do desmonte do aparato
regulatório do pós-guerra, que levou à captura dos mercados, das elites, da
mentalidade de uma parte da classe média e do horizonte empresarial –bem como de todo o sistema político-- pela lógica rentista.
A mesma que agora engessa o desenvolvimento brasileiro.
A ascensão de ‘Joaquim-Mãos-de –Tesoura-Levy’ é a expressão
atual desse círculo de ferro.
Não se espere de Dilma Rousseff a rendição incondicional a esse arranjo que
seus sucos gástricos tiveram enorme dificuldade de processar.
É um arranjo.
É visto como provisório.
Pelos dois lados.
E a buliçosa busca de um atalho para o impeachment, que
desfila solta na praça, sinaliza o quão tênue é o endosso do conservadorismo a
essa trégua.
Ilude-se, portanto, quem imagina que um país pode ser
colocado no modo de espera sem que seus conflitos estruturais se aprofundem,
emparedados pelo estreitamento do horizonte econômico local e global.
A dificuldade extrema de injetar racionalidade aos capitais
que se comportam, todos, como capital estrangeiro diante da sociedade no século
XXI, é o calcanhar de Aquiles do keynesianismo nos dias que correm.
Leia-se, da esquerda desafiada a gerir o sistema sem dispor,
ainda, de meios para transformá-lo.
Mas é, também, a fonte da vertiginosa transparência política
que assumem os impasses do desenvolvimento em nosso tempo.
Vale dizer, o manto da racionalidade técnica deixa um
‘Joaquim Mãos de Tesoura Levy’ tão exposto quanto o rei nu aos olhos de uma
criança.
A irracionalidade financeira reina em todo o mudo capitalista.
No Brasil ela requisita 5,5% do PIB por ano ao pagamento de
juros aos rentistas.
É quase a metade de um orçamento público já insuficiente
para expandir a logística social e urbana.
As portas de saídas
‘técnicas’, portanto, não parecem conduzir a lugar algum exceto ao miolo do
labirinto.
Nele está sepultada a
margem de manobra para harmonizar a
supremacia financeira e o
desenvolvimento com equidade social.
Fuga para frente a bordo de uma expansão acelerada, que
acomode o que é incompatível?
Tampouco aqui se oferece uma alternativa à estagnação
neoliberal.
Ademais da hegemonia rentista, a receita do pós-guerra
enfrenta hoje os limites da equação ambiental.
Ao contrário do que pontifica o econeoliberalismo de Marina
e assemelhados, o que se recomenda é justamente um alargamento da indução
política sobre o investimento e a distribuição para reconciliar a qualidade de
vida com o imperativo da sobrevivência ecológica.
Na arrastada definição do ministério de Dilma pulsam, assim,
a crueza dos conflitos e a crueza das opções em jogo.
Antes de personificarem a solução os nomes debulhados
ilustram o tamanho e a profundidade dos
impasses.
Quando a abundância de capitais se transforma em um poder
antagônico à abundância de investimentos requeridos pela sociedade, não há
‘ajuste técnico’ que conduza ao desenvolvimento.
Não é possível ser
governo e colocar a história em banho-maria.
Mas é possível ser governo e assumir que, para honrar as
tarefas que lhe competem, será preciso cogerir o país em coesa sintonia com a
sociedade, munida dos meios necessários a esse fim.
Leia nesta pág. a
reportagem sobre a agenda das conferências nacionais da cidadania
programadas para 2015.
Pode estar aí um pedaço do fio da meada, desde que seja
concebido assim e assim respeitado para
valer.
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