Junho deu visibilidade a uma série de movimentos de
multidões. Ações diretas organizadas por grupos autogestionários, horizontais e
desvinculados de projetos partidários pegaram os aparatos repressivos de
surpresa. Em resposta, o Estado apresentou suas formas de repressão e
criminalização
por Especial para o Diplô Brasil / http://www.diplomatique.org.br/
Formas inéditas de organização e mobilização política exigem
novos aparatos repressivos e estratégias de controle social. É preciso manter a
ordem: identificar o inimigo para separar o bom do mau, apontar as
legitimidades e, se necessário, reordenar as legalidades.
Sem rostos conhecidos, carros de som ou registro em
cartório, a multidão disforme que tomou as ruas no Junho de 2013 surpreendeu as
autoridades por seu tamanho e sua forma incontrolável de organização. A
violentíssima repressão policial contra os protestos pela redução das tarifas
no transporte teve efeito contrário e, em vez de coagir, encorajou a população
a tomar as ruas. Somente no dia 17 de junho, mais de 2 milhões de pessoas se
mobilizaram em todo o Brasil. As jornadas conquistaram a redução das tarifas de
ônibus e metrô em 104 cidades de dezessete estados.
Segundo um levantamento colaborativo feito pelo Centro de
Mídia Independente,1 apenas no Junho de 2013 oito pessoas morreram em
decorrência de acidentes e da repressão policial praticada durante os
protestos, além de centenas de presos e feridos.
Os meses que se seguiram deram visibilidade a uma série de
ações diretas organizadas por movimentos autogestionários, horizontais e
desvinculados de projetos partidários. Diversas capitais, como Belo Horizonte,
Porto Alegre, São Paulo e Rio de Janeiro, assistiram a protestos semelhantes
convocados pela internet que reivindicavam o direito à livre manifestação,
moradia, demarcação de terras indígenas, melhores condições na educação, contra
gastos e despejos gerados pelas obras da Copa do Mundo, contra a violência
policial, entre outros. A tática conhecida como black blocpraticada por parte
dos manifestantes passou a ser usada como defesa contra os abusos cometidos
pelos batalhões policiais.
Mudança de estratégia
Com altos gastos em equipamentos e pouca legitimidade para
impedir protestos, as forças repressoras do Estado procuraram formas
alternativas de contê-los. Assim, em outubro de 2013, o Ministério Público de
São Paulo, juntamente com as polícias Civil e Militar, criou uma força-tarefa
para intensificar a criminalização de militantes, especialmente do Movimento
Passe Livre de São Paulo (MPL-SP). Dessa união de esforços nasceu o Inquérito
Civil n. 01/2013 (batizado pelos policiais como “inquérito black bloc”), uma
investigação-mãe montada pelo Departamento Estadual de Investigações Criminais
(Deic) para enquadrar mais de trezentas pessoas pelo crime de associação
criminosa.
O inquérito segue em sigilo. Publicamente, a polícia
argumenta que o fato de indivíduos terem sido detidos em mais de um protesto –
ainda que sem acusação e por meio de “prisões para averiguação”,
reconhecidamente ilegais – indicaria que por trás das manifestações de rua há
uma coordenação de movimentos para cometer crimes. Na tentativa de comprovar
essa articulação, o Deic agrupou boletins de ocorrência de manifestantes que
antes circulavam separadamente nas delegacias regionais de São Paulo e passou a
monitorar e hackear, por meio da Delegacia de Crimes Eletrônicos, redes sociais
e contas de e-mail de supostos envolvidos em vandalismo. Na portaria de
instauração do inquérito não se define para que crime(s) é voltada a suposta
associação, mas sim que ela é formada por pessoas unidas para contestar a
ordem.
Na delegacia, a lista de perguntas aos intimados versava
sobre suas questões pessoais e opções políticas como: “Você já participou de
outras manifestações?”; “Você é filiado a algum partido? Qual?”.
Mandados de busca e apreensão foram cumpridos na casa de
manifestantes. Em um deles, a Polícia Civil apreendeu e apresentou como prova
de envolvimento com a “associação criminosa” o livro A origem da propriedade,
de Friedrich Engels. “Trata-se claramente de inquérito orquestrado voltado ao
controle das manifestações”, analisa Rodolfo Valente, advogado do MPL-SP.
Ele explica que outro expediente utilizado para criminalizar
os manifestantes é enquadrá-los na lei de associação criminosa, uma legislação
vaga que demanda um mínimo de três pessoas associadas para praticar alguma
ilegalidade. Além disso, Valente revela que, por vezes, a polícia recorre à lei
de organização criminosa, em vez de associação. Essa legislação, específica
para crimes que superem a pena máxima de quatro anos, autoriza a infiltração de
policiais disfarçados para filmar e fotografar manifestantes em protestos.
“Isso não valeria para os crimes que se imputam aos chamados Black Blocs, como
o crime de danos ao patrimônio público, cuja pena máxima é de três anos. Mas
nesse inquérito a lei é totalmente ignorada.”
Um passo à frente
No Rio de Janeiro, na véspera da final da Copa do Mundo, 23
pessoas foram presas e encaminhadas para o Complexo Penitenciário de Bangu sob
as acusações futurológicas da Delegacia de Repressão aos Crimes de Informática
de que poderiam vir a cometer crimes no dia do jogo, 13 de julho. Sob a mira de
armas de fogo, os militantes ligados à Frente Independente Popular (FIP)
tiveram sua residência e a de amigos e familiares invadidas e vasculhadas por
policiais civis que apreenderam como provas do futuro crime máscaras, óculos,
panfletos e livros. A operação envolveu forças policiais do Rio de Janeiro, Rio
Grande do Sul, Força de Segurança Nacional e a Polícia Federal, e grampeou de
forma ilegal as conversas por telefone entre os militantes da FIP e seus advogados.
Na opinião da militante da FIP e professora de Filosofia da
Uerj Camila Jourdan, toda luta não cooptável, não assimilável
institucionalmente, é transformada sistematicamente em crime, em quadrilha. “O
inquérito chega a dizer que ‘a organização não eleitoral se afasta do viés
político-ideológico legítimo em nosso sistema democrático’. Então, há um viés
político-ideológico que não é legítimo, e este é, principalmente, o viés
anarquista. Não é exagero quando dizemos que o anarquismo e, mais ainda, toda
organização direta da sociedade civil são o que se pretende impedir, o que será
transformado em crime, se formos de fato condenados.” Camila chama a atenção
para as inúmeras incoerências contidas nas 2 mil páginas do inquérito, como a
citação do filósofo russo Mikhail Bakunin como “potencial suspeito de ser
membro da organização criminosa”.
Dos planos, experiências, tentativas e fracassos na
contenção do avanço dos protestos de rua, concretamente surgiram novas armas,
batalhões policiais e leis. Um mês após a realização da Copa do Mundo, durante
a campanha eleitoral, tanto o inquérito contra o Passe Livre em São Paulo como
a operação que culminou com a prisão de militantes da FIP no Rio de Janeiro
foram apresentados, respectivamente, pelo PSDB, na esfera estadual, e pelo PT,
na esfera federal, como propostas de novo modelo integrado de combate ao crime
organizado.
Guardas, métodos e seus aparatos
– Não vai haver manifestação se não houver liderança! Vocês
prestaram atenção? Se não houver liderança, não vai sair a manifestação!
– Não existe liderança. Esta é a manifestação de um
coletivo, e o senhor deve respeitar nosso direito democrático.
– Em nome de manter a ordem, eu posso evitar a quebra da
ordem. Não vai haver manifestação!
O diálogo ocorrido no vão livre do Masp, em São Paulo, entre
o padre Julio Lancelotti, coordenador da Pastoral da População de Rua, e o
tenente da Polícia Militar Marcelo Pignatari proibindo a saída de um protesto
pela liberdade de militantes que protestavam contra a Copa do Mundo ilustra uma
nova exigência do Estado na reivindicação de direitos: um líder que apresente
seus documentos para responsabilizar-se por milhares de pessoas. A prática,
transformada em rotina em atos de movimentos sociais na capital paulista,
soma-se a outras iniciativas esdrúxulas. Em fevereiro deste ano, durante o 3o
Ato contra a Copa do Mundo, a PM de São Paulo utilizou pela primeira vez a
“tropa do braço”, um batalhão formado por cem policiais especializados em artes
marciais. Na ocasião, 230 pessoas foram presas. Outra inovação para conter
protestos – aprovada não apenas em São Paulo – é a proibição do uso de máscaras
em manifestações, o que pode vir a ser prejudicial até para o Carnaval (leia,
na pág. 20, sobre a criminalização dos bate-bolas).
Outra ameaça à livre manifestação remete ao período da
ditadura militar. Em fevereiro deste ano, foi publicada no Diário Oficial da
União a Portaria n. 186, do Ministério da Defesa, que permite às Forças Armadas
atuar em operações de segurança pública (Capítulo IV), incluindo manifestações
populares. O chamado “Manual de Garantia da Lei e da Ordem” especificava em
primeira redação, suavizada com eufemismos após receber críticas da sociedade,
as “forças oponentes” como “segmentos autônomos ou infiltrados em movimentos
sociais, entidades, instituições e/ou organizações não governamentais que poderão
comprometer a ordem pública ou até mesmo a ordem interna do País”. Já a lista
de ações a serem combatidas parece uma relação de atividades do repertório de
um movimento social: “bloqueio de vias públicas, distúrbios urbanos, invasão de
propriedades, paralisação de atividades produtivas”, entre outras.2
Elites clamam pela repressão
A repressão contra revoltas espontâneas e movimentos sociais
deve ser analisada dentro da história brasileira, de acordo com o doutor em
História Social e jornalista José Arbex Jr. Para ele, a forma como o Estado vem
lidando com manifestações após Junho mostra o limite de liberdade de expressão
de outros setores da sociedade tolerado pelas elites brasileiras.
Segundo Vera Telles, professora de Sociologia da USP, as
medidas colocadas em prática a partir de Junho fazem parte de um processo de
militarização da gestão urbana iniciado em meados dos anos 2000. Essa evolução
apresenta dois aspectos principais. O primeiro combina a promoção do mercado
como solução para os conflitos sociais com violência aberta contra a população
pobre, como ocorre especialmente, mas não só, nas Unidades de Polícia
Pacificadora (UPPs) do Rio de Janeiro.
O outro aspecto dessa militarização são os dispositivos
adotados pelo Estado, em suas diferentes instâncias e tipos de poder. Retomando
o emprego da lei de associação criminosa contra manifestantes, as prisões
preventivas ocorridas durante a Copa do Mundo e o “Manual de Garantia da Lei e
da Ordem”, entre outros, Vera identifica a construção de um ordenamento
jurídico que está provocando uma erosão da dimensão normativa da lei,
inteiramente funcionalizada e instrumentalizada de forma sistemática para dar
amparo legal a dispositivos de exceção. “É uma inversão total do sentido da
lei, que nos leva a perguntar quem está dentro e quem está fora. É o Estado que
vai criando dispositivos [jurídicos] inteiramente fora dos padrões legais.”
Arbex acredita que esse quadro tende a se agudizar, uma vez
que as Jornadas de Junho estão “latentes, prontas para eclodir em alguma outra
circunstância. E a elite brasileira sente isso”. As investidas por parte das
polícias, ministérios públicos e até mesmo as mudanças legais sinalizadas fazem
parte, portanto, desse modo de tentar suprimir a liberdade de expressão nas
ruas.
Essa nova forma de repressão começou a partir da separação
que se fez entre “manifestantes pacíficos” e “vândalos”. De acordo com Arbex,
isso contribuiu para que as ações de repressão encontrassem respaldo em outros
setores da sociedade. “A maneira pela qual a elite brasileira trabalhou foi
muito inteligente: classificou a liberdade de expressão como vandalismo. Você
tem uma parte da população brasileira que se assustou com aquilo que viu nas
ruas. É o susto que a classe média levou e que a mídia soube transformar em uma
convicção”, completa.
Permanentemente criminalizados
De todas as pessoas presas durante os protestos de rua no
período de junho do ano passado até outubro deste ano, apenas Rafael Braga
Vieira foi condenado e cumpre pena de prisão. Negro, jovem, pobre e com baixa
escolaridade, o perfil de Rafael corresponde à grande maioria dos 715 mil
detentos da terceira maior população carcerária do mundo. Sem a mesma
repercussão ou defesa adequada recebida por outras pessoas, o catador de
latinhas foi condenado a setenta meses de prisão por portar uma garrafa de água
sanitária e outra de Pinho Sol durante protesto que reuniu mais de 1 milhão de
pessoas no dia 20 de junho de 2013, no Rio de Janeiro.
Em todos os seus depoimentos, Rafael conta que não
participava do protesto e que foi abordado por policiais militares quando passava
pela manifestação. Para Camila Jourdan, que também esteve detida no complexo
penitenciário de Bangu, a invisibilidade do caso Rafael é resultado da
distinção na sociedade entre pobres e ricos. "Quando a supressão de
direitos volta a ficar restrita às camadas excluídas, finge-se que ela não
existe. Hoje, quando a violência do Estado atinge às elites ou à chamada classe
média, chama-se ‘estado de exceção’", afirma Jourdan.
Orlando Zaccone D’Elia Filho, delegado da Polícia Civil do
Rio de Janeiro responsável pela investigação do caso do desaparecimento do
pedreiro Amarildo, explica que “o acirramento e a tensão do debate em torno do
modelo político vigente que observamos nas ruas nos últimos meses trazem à tona
coisas que estavam ocultas”. De acordo com ele, esse discurso e essas práticas
sempre se apresentaram em locais sem visibilidade. “Por exemplo, manifestantes
que sofreram buscas policiais em sua casa narram que os policiais que entraram
jogaram comida no chão. Não sei o que eles estavam procurando, mas, quando os
barracos são revistados, os policiais jogam a comida pelo chão.”
Em outras palavras, a dimensão política do processo de
criminalização dos movimentos sociais pode ser identificada quando se observa
que os mesmos dispositivos empregados contra militantes são utilizados
historicamente contra a população pobre. Sem grande destaque nos meios de
comunicação, o complexo de favelas da Maré, no Rio de Janeiro, está ocupado
pelas forças militares que agem sob o regime de garantia da lei e da ordem.
Nesse período, 82 civis foram presos, autuados em flagrante e mandados para a
prisão acusados de crimes. Convivendo de forma conflituosa com a militarização
de seu bairro por tropas da Marinha e do Exército, os moradores da Maré são
presos por desacato, desobediência e lesão corporal – mesmas razões pelas quais
a maioria das pessoas foi detida durante os protestos de rua.
| ENTREVISTAS Leia a integra das entrevistas dadas por Camila Jourdan, José Arbex Jr e Orlando Zaccone para matéria "O Estado brasileiro contra o movimentos sociais" "Há um esforço grande para transformar toda auto-organização em quadrilha", Camila Jourdan
"É um estado de exceção permanente", José Arbex Jr
Especial para o Diplô Brasil
*Beatriz Macruz, Cristiano Navarro, Guilherme Zocchio e Luís Brasilino são jornalistas.Ilustração: Alves 1 Ver: http://mortoseferidosnosprotestos.tk. 2 Ver: www.defesa.gov.br/arquivos/File/doutrinamilitar/listadepublicacoesEMD/md33_m_10_glo_1_ed2013.pdf. |
| 05 de Novembro de 2014 |
| Palavras chave: criminalização, pobreza, movimentos, sociais, autônomos, junho, militarização, repressão,perseguição, Passe Livre, FIP, Rio de Janeiro, Maré, Rafael Braga Vieira |
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