A sórdida campanha promovida contra a Petrobrás tem como
alvo a vontade do povo brasileiro de construir com as próprias mãos o seu
destino.
Sebastião Velasco - http://cartamaior.com.br/
A ideia deste artigo surgiu da constatação, dias atrás, do
contraste entre a importância patente do fato nele comentado, e o espaço
minúsculo que a mídia brasileira lhe dedicava. Muito provavelmente, porém, essa
ideia se perderia no torvelinho de um fim de ano especialmente agitado, não
fora uma circunstância imprevista: a pergunta lançada, a título de desafio,
pelo moderador da última mesa redonda do seminário Fórum Ideias para o Século
21, que se reuniu no Sindicato de Engenheiros de São Paulo na tarde da
segunda-feira, 15 de dezembro de 2014.
A pergunta em questão pode ser resumida um tanto livremente
assim: nesse momento de grandes perigos – no país e no mundo - face à ofensiva
de uma direita inconformada com a derrota eleitoral e decidida a ganhar na
prática aquilo que as urnas lhe sonegaram, em que medida os BRICS podem ser
acionados numa estratégia votada a vencer o cerco e recriar as condições para o
aprofundamento da democracia e da reforma social entre nós.
Não era preciso respondê-la na hora. O que o orador -- por
acaso, o principal inspirador da iniciativa do Fórum – pedia era que os
expositores pensassem no assunto, e quando pudessem traduzissem em artigos as
suas respostas. Eu não participava da mesa, mas ele estendeu o convite a mim,
que estava na plateia.
Provocação; ideia embrionária. O fruto dessa combinação é o
artigo a seguir, que é oferecido ao leitor como uma contribuição infinitesimal
a um esforço coletivo que já vem tarde.
Autonomia estratégica: Rússia, Índia, Estados Unidos... e
nós?
Passou quase inteiramente despercebido no Brasil, mas isso
não surpreende. A grande imprensa nativa mantém com o seu distinto público uma
relação eminentemente didática: maneja com cuidado extremo os refletores, para
manter sob luz intensa fatos que ilustrem sua lição e deixar na penumbra aqueles
que possam complicá-la.
Exatamente esse é o caso da reunião de cúpula entre Vladimir
Putin e Narendra Modi, realizada na capital indiana na semana passada.
O vulto dos compromissos assumidos pelos dois chefes de
Estado na ocasião afasta qualquer dúvida sobre a transcendência do
acontecimento - para os dois países
envolvidos, e para a política internacional. Foram 20 acordos, cobrindo as mais
diversas áreas de interesse comum, com destaque para o compromisso de triplicar
a corrente bilateral de comércio nos próximos 10 anos, intensificar a colaboração no campo da
indústria bélica e aeroespacial, e o de construir, com tecnologia russa, 12
reatores dos 20 previstos no programa nuclear indiano (além dos dois previamente
contratados, um deles ora em fase de conclusão).
E tem mais. Reafirmando a solidez da parceria estratégica
que liga historicamente as duas nações, o comunicado conjunto assinado por
Putin e Modi reitera o compromisso com os princípios do direito internacional,
o empenho conjunto na construção de uma ordem internacional multipolar e
democrática, a oposição comum ao uso de sanções econômicas sem a aprovação
prévia do Conselho de Segurança da ONU.
Um ano depois da eclosão da crise ucraniana e das sucessivas
rodadas de retaliação econômica contra a Rússia, no momento em que a tensão
militar na Europa se intensifica, levando os mais avisados a se perguntarem
como evitar incidentes - cada vez mais frequentes -- passíveis de desencadear
entre as grandes potências nucleares uma escalada de consequências
imprevisíveis -- em um contexto assim o
acordo em questão assume significado ainda maior.
A reação negativa do governo norte-americano não surpreende.
Através de seu porta-voz, ele advertiu a Índia sobre a inconveniência de manter
relações normais com a Rússia no presente, e lamentou amargamente que entre os
membros da comitiva russa estivesse – suprema injúria -- o
Primeiro Ministro da Criméia, Aksyonov, alvo ele próprio de sanções dos Estados
Unidos, Canadá e União Europeia.
Por si sós, esses elementos seriam mais que suficientes para
justificar o destaque dado aqui ao evento. Mas há um aspecto adicional, que o
torna, além de importante, exemplar. É que a Índia mantém relações
privilegiadas com os Estados Unidos, e desde meados da década passada foi
elevada à condição de sua aliada estratégica.
A seqüência é conhecida, mas convém relembrar os seus
momentos principais: 1998, a Índia realiza testes nucleares de superfície e é
penalizada pelos Estados Unidos com sanções econômicas por esse fato; 2001, o
governo Clinton inicia gestões com vistas ao processo de normalização no
relacionamento entre os dois países; 2006: visita histórica de Bush à Índia é coroada
com o anuncio da assinatura de acordo de cooperação que equivale, na prática,
ao reconhecimento do status do país como potência nuclear; 2008: o acordo
nuclear entra em vigor, depois ratificado pelos respectivos legislativos.
Abre-se, então, uma fase na política externa indiana, denunciada pelos seus
críticos como de alinhamento com os Estados Unidos.
Seria possível imaginar, então, que a Índia viesse a ser
punida de alguma forma agora pela superpotência, por ter saído da linha.
Nada disso. Dias depois de manifestar sua contrariedade com
o mau comportamento indiano, o governo americano reafirmava a importância da
parceria e reconfirmava a visita de Obama ao país, prevista para 25 e 26 de
janeiro de 2015, em tempo para as comemorações do Dia da República da
Índia.
O fato contraria a lição dos preceptores autoproclamados
porque transmite esta mensagem: em política internacional como em outros
domínios os países são quase sempre premiados quando agem com autonomia.
O conhecido aforismo a respeito das condições objetivas e da
vontade humana na feitura da história cai como uma luva neste objeto de
definição tão difícil. A autonomia estratégica supõe muitas coisas, entre as
quais a dotação de recursos do agente em causa, e a configuração dos conflitos
em que esteja lançado. Mas autonomia não é algo que se possui, mas uma
qualidade que se exerce.
A Índia começou a exibi-la antes mesmo de existir como
unidade reconhecida no sistema interestatal. Fez isso epicamente, sob a
liderança do Mahatma Gandhi, em seu movimento de libertação nacional; confirmou
- de maneira mais discreta -- essa disposição no compromisso precoce com um
ambicioso programa nuclear; manifestou esse atributo ao lançar, com a Indonésia
de Sukarno o movimento dos países não alinhados, e expôs as razões de sua
atitude ao justificar sua pretensão a um assento permanente no Conselho de
Segurança das Nações Unidas.
“Não somos uma grande Potência militar. Não somos uma
potência industrialmente avançada – (mas) a Índia mesmo hoje conta nos assuntos
mundiais ... Se fôssemos alguma pequena nação estranha em algum lugar na Ásia
ou na Europa, não teria importado muito. Mas (importa) porque contamos, e
porque vamos contar mais e mais no futuro ... nós somos potencialmente uma
grande nação e uma grande potência... "
Nenhum vestígio do complexo de inferioridade tão
encontradiço entre nós nessas palavras. E elas foram pronunciadas por Nehru em
discurso perante a Assembléia Constituinte, em março de 1948, quando a Índia
mal se liberara do jugo inglês, ainda pranteava os mortos nos massacres que
levaram à partição do país, e estava sujeita a crises de fome que continuariam
a ceifar a vida de milhões de seus filhos por muito tempo mais.
Em outro quadrante, em contexto geopolítico radicalmente
diverso, praticamos historicamente, também no Brasil, o exercício da autonomia
estratégica. Mas não de forma contínua, e em ensaios sempre contestados.
Agora mesmo – depois de doze anos de uma experiência de
reforma social de alcance limitado, mas de resultados indiscutíveis, e de
afirmação altiva no cenário internacional -- o princípio da autonomia
encontra-se entre nós sob fogo cerrado.
Seu alvo específico é a Petrobrás -- empresa pública que expressa, mais do que
qualquer outra, a vontade do povo brasileiro de construir com as próprias mãos
o seu destino. E o objetivo -- a cada
dia mais evidente -- dos promotores dessa campanha sórdida é o de
anular as virtualidades emancipadoras do mais ambicioso cometimento dessa
empresa: o pré-sal.
Resta saber se teremos vontade e sabedoria suficientes para
mobilizar, no país e fora dele, os recursos políticos requeridos para dar
resposta efetiva ao repto.
O que está em jogo neste embate é a algo de valor
inestimável. Seu nome é autonomia estratégica.
Créditos da foto: Divulgação/Petrobrás - Flickr
Comentários
Postar um comentário
12