É preciso entender o significado do que dizia Furtado: uma
nação justa e soberana só nasce se enfrentar as suas provas cruciais. É a hora.
por: Saul Leblon - http://cartamaior.com.br/
Celso Furtado dizia que um país não se transforma em nação
soberana e justa para o seu povo se não enfrentar as provas cruciais da sua
história.
Aquelas que funcionam como um clarão no discernimento
coletivo.
Seja na vitória, ou na derrota, iluminam o horizonte que
terá que ser percorrido se a sociedade quiser construir um futuro compatível com a plena cidadania.
Celso Furtado considerava que o Brasil ainda não havia
encarado de frente as suas provas cruciais.
É possível que os acontecimentos em curso o fizessem mudar
de opinião se ainda fosse vivo para acompanha-los.
Um ciclo de crescimento se esgota, outro precisa ser
construído num ambiente internacional desfavorável, em que os preços das
matérias-primas desabam e as taxas de juros internacionais ensaiam uma
escalada.
Já aconteceu outras vezes, em 1810; 1930 e 1980.
Em todas elas grandes reacomodações políticas reordenaram a
trajetória brasileira – na Independência, à ascensão de Vargas, passando pela
crise da dívida externa que acelerou a queda da ditadura.
A margem de manobra diminui; o espaço de acomodação dos
conflitos do desenvolvimento fica menor.
A macroeconomia e, sobretudo, os automatismos econômicos
giram em falso e não levam a lugar algum.
Escolhas cruciais tem que ser feitas: é o império da
política.
A aritmética fiscal resume um bom pedaço dessa encruzilhada.
O gasto previsto com o pagamento de juro aos rentistas, em
2015, é da ordem de R$ 265 bilhões de reais. É quase a soma total dos gastos
com saúde (R$ 109 bi), educação (R$ 101 bi) e o Minha Casa, Minha Vida (R$ 65
bi).
A agenda ortodoxa acha isso barato.
Seus ventríloquos na mídia cantam de galo no poleiro da alta
iminente dos juros nos EUA.
Significa que, de agora em diante, para equilibrar contas
fragilizadas pela queda nas cotações das commodities, e se financiar no mercado
internacional, o Brasil terá que pagar taxas ainda maiores que os 11,75%
atuais.
Ou os capitais voadores não pousarão aqui.
Nenhuma das questões essenciais que interessam à população
brasileira encontrará resposta no redemoinho dessa lógica.
Mas ela encerra algo mais que um singelo embate entre
mocinhos e bandidos.
Massas de forças descomunais e interesses pantagruélicos
movem as peças do xadrez em que se decide o jogo do desenvolvimento nessa
quadra brasileira e mundial.
O que elas preconizam para os desequilíbrios do país –
típicos da luta pelo desenvolvimento, agravados pela desordem internacional - é
a restauração pura e simples da cartilha neoliberal.
Ou seja, aderir ao veneno que arrasta o mundo ao abismo da
estagnação.
A saber: menos Estado para se ter mais mercado; menos
igualdade para se ter mais eficiência; menos salário para se ter mais
investimento; menos soberania para se ter mais privatização de recursos
nacionais...
O projeto vitorioso em outubro negligenciou a necessária
organização social para defender o resultado das urnas nesse previsível
entrelaçamento de fragilidades doméstica
e mundial.
A consequência é que o país passou a ser comandado pelo
agendamento conservador.
Ele ofusca, melhor, asfixia, o que é essencial nesse
momento.
O essencial é recuperar o tempo perdido dando voz à
sociedade organizada para repactuar as bases do desenvolvimento brasileiros
fixando prazos, metas, avanços, concessões e salvaguardas da transição de ciclo
econômico em curso.
Sem isso, ninguém se salvará.
Se for incapaz de enxergar a centralidade desse momento, e
de transmiti-la à sociedade, a esquerda será igualmente engolfada pelo ralo
dando, ademais, uma contribuição
inestimável à blitzkrieg conservadora.
Ou seja, fracassará diante de suas provas cruciais.
Como já fracassou em 1954.
Então, ela só distinguiu com clareza o que estava em jogo
quando o povo nas ruas já caçava viaturas do jornal O Globo e incendiava sedes
de veículos golpistas que tangeram Vargas ao suicídio.
A esquerda não resistirá sozinha à avalanche conservadora
atual.
Mas desta vez, definitivamente, cabe-lhe a responsabilidade
de liderar o processo.
Não para reforçar a ladainha conservadora contra o governo,
contra a Presidenta Dilma e muito menos contra o PT.
Não para tirar uma lasca.
Mas para aglutinar uma ampla frente política capaz de criar
junto ao governo, no entorno do governo e na crítica ao governo, um contraponto
efetivo à ameaça da restauração neoliberal.
Um exemplo de urgência que hoje carece dessa participação.
A Petrobrás está morrendo.
As ações da empresa perderam 46% do valor este ano.
O preço de mercado de uma das oito maiores petroleiras do
mundo caiu a 1/3 de seu valor patrimonial.
É uma aberração: desconsidera-se nesse massacre especulativo
e político 45 bilhões de barris de óleo, no mínimo, das reservas do pré-sal.
É como se as maiores descobertas de petróleo do século XXI
no planeta não tivessem ocorrido.
É como se em outubro o pré-sal brasileiro não tivesse batido
o recorde de produção, gerando mais de 600 mil barris de óleo.
É como se a Petrobrás não tivesse o custo de produção no
pré-sal de US$ 45/por barril, substancialmente inferior ao do xisto
norte-americano (US$60/por barril), o que lhe dá um chão firme em meio ao
derretimento dos preços internacionais das matérias-primas.
Não se trata de uma empresa qualquer, mas de uma ferramenta
do desenvolvimento brasileiro que poderá se perder.
A resposta capaz de salvá-la urge e não há tempo para
ingenuidade.
A faxina anticorrupção tem entre os seus principais
objetivos transferir o pré-sal para as
mãos do mercado, e não defender os interesses brasileiros na estatal.
Não fosse assim, a campanha moralizadora (sempre bem-vinda)
viria acompanhada de uma defesa enfática da reforma política, do investimento
público e dos compromissos sociais e econômicos que o pré-sal potencializa.
A sociedade pagará um preço alto se a esquerda for incapaz
de distinguir o que é principal nesse momento.
Corrupção não é uma singularidade capitalista ou comunista.
Tampouco petista.
A corrupção é inversamente proporcional à existência de
canais que amplifiquem o controle da sociedade sobre as decisões do Estado, a
vida das empresas e a mecânica do financiamento
eleitoral.
Sem esse contraponto político à corrupção, a história se
repete. Não raro, como tragédia, na forma de um desencanto que frequentemente
instala no poder versões extremadas daquilo que se pretendia combater.
Na Itália, depois da ‘Operação Mãos Limpas’ , em 1992, o que
emergiu não foi uma sociedade virtuosa, mas nove anos de Silvio Berlusconi no
comando do Estado. (Leia ’Mãos
limpas; e depois Berlusconi? nesta pág)
Nesta 3ª feira, as ações da Petrobras caíram abaixo de R$ 9
reais –menos da metade do que valiam há cerca dois anos, quando foram cotadas a
R$ 21,06 em setembro de 2012.
Repita-se: é uma aberração.
Nem quando chovia bomba no Iraque o mercado deixou de
considerar o valor das reservas ali disponíveis. Aliás, a guerra era justamente
para se apoderar delas.
Não se pode descartar um componente de manipulação nesse
absurdo.
Grandes detentores de carteiras da Petrobras (os Marinhos
são um deles), compartilham dos mesmos interesses: desossar o governo Dilma é
um deles; implodir a política de
investimentos da empresa – que reserva menos recursos para dividendos- é outra.
A recompensa pela manipulação está pontuada nos editoriais
do conservadorismo: chama-se privatização do pré-sal.
Esse é o pano de fundo da tragédia política em curso no
Brasil.
De uma só vez, o conservadorismo ameaça empurrar para a
beira do ralo histórico quase um século de patrimônio progressista: 60 anos da
Petrobras e 38 anos de existência do PT, incluindo-se aí a ameaça que paira
sobre o segunda mandato de Dilma.
Se tiver êxito, imporá uma regressão de um século nas lutas
sociais do Brasil.
A esquerda brasileira dispõe de reservas intelectuais, tem
experiência de luta, goza de
respeitáveis lideranças políticas.
Tem densidade para compreender e reagir ao que está em curso
nessa hora crucial.
A única novidade capaz de sacudir a prostração rumo ao
matadouro é o surgimento de uma frente de esquerda capaz de liderar a resposta
progressista a essa ofensiva.
Para isso é preciso entender o significado do que dizia
Furtado: uma nação justa e soberana se constrói enfrentando suas provas
cruciais.
Se insistir em ser um arquipélago de ilhas que não se falam,
separadas por divergências às quais, muitas vezes, se atribui importância
superior a dos riscos que ameaçam a sociedade brasileira, a esquerda fracassará
tragicamente nessa hora.
E o seu fracasso entregará um século de conquistas sociais ao
arrastão conservador.
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