quinta-feira, 30 de abril de 2015

Como a FEA-USP tentou anular Thomas Piketty

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Se língua do economista não era bem-vinda no evento, que dizer da presença dele próprio, num dos redutos mais intransigentes e conservadores da universidade brasileira. Mesmo assim, brilhou…
Por Janaína Behling, do Viva Letramentos
‘Aqui somos todos socialdemocratas’. De todas as GAFES dos anfitriões de Thomas Piketty, na Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo – a FEAUSP – acredito que essa tenha sido a mais caricata.
Ao longo deste texto, todavia, pretendo mais que esquadrinhar gafes e tacanhices, mas tentar descobrir para o que mais elas poderiam servir num país capaz de desestabilizar qualquer subjetivismo idealista habitus, problemas sociais denunciados por Bakhtin e Bourdieu, ou capaz de promover, em última análise, algum tipo de transgressão do encapsulamento das tradições e seus cacoetes na vida pulsante de mercados sociais emergentes.

Thomas Piketty esteve palestrando na referida faculdade no dia vinte e seis de novembro de dois mil e catorze, um acontecimento histórico, diante da enorme repercussão de seu livro Capital in the twenthy-first century; tendo circulado, pelo menos no Brasil, a publicação de Londres, da Harvard College, primeiro em inglês, da qual tive acesso em e-book mesmo, mais barato, sendo apenas recentemente traduzida a obra para o português do Brasil e publicada em papel impresso.
Pikkety é um cara ousado – e tentarei provar dessa ousadia como linguista, lançando olhares sobre sua obra e palestra – porque, afinal, de doutor em filosofia à interlocução com economistas acabou se tornando diretor da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, tendo colaborado com a criação da Escola de Economia de Paris, tornando-se diretor dela também, ambas as escolas na mesma cidade, que interessante.
Assisti à palestra em Brasília, graças à transmissão ao vivo dada pela TVUSP, com tradução simultânea de alta qualidade. E se estivesse na plateia talvez ousasse perguntar como essa carreira brilhante, de encher os olhos de qualquer jovem intelectual brasileiro (porque bem azeitado às tradições intelectuais principalmente francesas) enfim, como essa carreira brilhante tem servido de inspiração para novas gerações de intelectuais empreendedores que buscam fortalecer não apenas as ciências sociais, mas a si mesmos, arquitetando serviços de tornar riquezas e pobrezas efetivamente distribuíveis.
Pode ser que ele nunca tenha pensado no impacto de seu trabalho para as novas gerações de intelectuais que, invariavelmente, são rechaçadas pela vulgaridade com que a pobreza e a riqueza são tratadas em países em desenvolvimento como o Brasil; um país que negou, aliás, transparência na oferta de dados para as pesquisas de Piketty, ao mesmo tempo em que, ironicamente, muitos de seus intelectuais parecem se ressentir por não terem nascido na Europa ou por terem nascido no Brasil.
Voltemos, então, à necessidade de conjecturar por que razões intelectuais brasileiros podem ser muito tacanhas, para dizer o mínimo, ainda que haja o esforço inegável de tornar acessíveis conhecimentos que movimentam seus mundos, o que é de se esperar de intelectuais igualmente gabaritados como Piketty.  E esses conhecimentos são, de fato, importantes para o desenvolvimento criativo de pessoas e países, tanto quanto a visita de uma celebridade.
Estiveram recepcionando Piketty os economistas Andre Lara Resende e Paulo Guedes. O primeiro, entre tantos atributos, já fora diretor do Banco Central durante a presidência de Fernando Henrique Cardoso. O segundo, diretor da Bozzano Investimentos. Tenho certeza de que não houve gafe nenhuma em convida-los para anfitriões, aliás, pode ser que a ideia do encontro possa ter até partido de algum(uns) dele(s), algo não tão relevante neste momento, de modo que o encontro em si, vale reforçar, que é de fundamental importância para intelectuais e não intelectuais de todas as áreas das ciências humanas, dada a causa que o fez possível, qual seja, discutir a economia mundial e suas interfaces com o bem estar social.
É verdade que, pensando no calor do encontro, a chapa mais quente, para mim, foi o fato de nosso ilustre visitante ter sido obrigado a falar em inglês e não em francês, sua língua materna.
Suponho que poucos ‘colegas de plateia’ tenham se perguntado sobre isso, um fato que, de início, não faria a menor diferença para uma plateia que invariavelmente precisaria de tradução simultânea, uma plateia prioritariamente nativa, dona de um português específico. É que essa questão da língua pode não aquecer olhares sobre o cenário geral de uma conversa regrada, mas pode fazer alguma diferença na constituição de ‘anfitrianices’, dado que o inglês de Piketty é tacanho também, tornando-o um tipo de ‘rascunho linguístico’ no momento de defender sua tese. Não creio que o próprio Piketty tenha sugerido a troca, de modo que se de certa forma sua língua não era bem vinda naquele evento, não seria difícil imaginar o que significa a presença dele próprio em um dos redutos mais intransigentes e conservadores da produção de conhecimento sobre economia e política do país.
Em outras palavras, da-se a impressão de que a equipe que acolhe o palestrante, de repente, prestigia sua origem francófona, mas exige um posicionamento linguístico que fala a língua de uma das economias mais influentes do mundo, como aamericana.Emtempos de Guerra Fria, bem saberíamos o que estava posto à mesa da linguagem local, cheia de falsetes e buracos ideológicos.
Mas Piketty, com seu inglês-francês, vai mostrando em poucos, enxutos, simplóriosslidesde Power Point a trajetória de sua pesquisa sem qualquer dificuldade, com bastante desenvoltura.E essa trajetória de pesquisa envolve o desejo audacioso de analisar dados sobre as nações mundiais e seu potencial de geração de renda e pobreza simultaneamente, segundo ele próprio.
Nesse ponto, algo a se destacar é a perspicácia de Piketty na escolha dos dados a serem analisados, quais sejam, as arrecadações de impostos dos países que se dispusessem a topar essa sua empreitada, apostando em algo diferente.
Na realidade, a perspicácia é de seu olhar de cientista social contemporâneo, digamos, e como se posiciona diante dos dados, um posicionamento dialógico, no qual as respostas das análises não estão prontas, primeiro, porque as indagações do pesquisador são passíveis de variação, têm sabor de descoberta; segundo, porque a própria geração dos dados de pesquisa, ele sabe, corresponde a arbitrariedades.
Antes de chegar aos gráficos estatísticos, gêneros discursivos capazes de causar frisson a qualquer economista, Piketty já se adianta em justificar, portanto, a natureza de suas contribuições, uma natureza empírica, especulativa, atemporal e contextualizada. E ele sabe que está longe de ‘mudar o pensamento econômico mundial’ com isso, ainda que seu trabalho esteja a serviço dessa causa. Acho que daí veio a vontade de perguntar sobre impactos nas gerações de intelectuais…
Enfim, entre justificativas, Piketty vai espetando na gente afirmações contundentes, e com a maior diplomacia, própria de um estudioso preparado para dizer, na língua que for, a que vem.
Entre as afirmações que considero contundentes, Piketty diz que a proporção da renda primária mundial é atribuída, convertida, tomada, consumida, por não mais que trinta por cento de sua população, algo que, proporcionalmente, em outras palavras, significa que a tendência da economia mundial é fazer com que a metade de suas riquezas pertença a apenas dez por cento da população mundial, algo semelhante ao perfil da economia no final do século XIX.
Outra afirmação é que este cenário de consequente desigualdade não tem nada a ver com globalização. E mais, que a desigualdade, mais que ‘filha’ ou ‘vilã’ da distribuição de riqueza, é apenas um dado social que acusa mais a fragilidade do sistema financeiro global e menos os mecanismos de transformação de identidades marginalizadas ou pobres, gente que o capital entende apenas como consumidores, de modo que se faz emergente o setor financeiro mundial olhar para a desigualdade de um modo diferente.
Sendo assim, nosso convidado afirma que não é suficiente aumentar os salários dos trabalhadores, ou investir mais em Educação, nem promover ou inventar imbróglios conceituais.
Nesse caso, se houver alguma lise nos modelos epistemológicos que temos, ela está em como recriar profundamente mecanismos de distribuição de riquezas, de modo que ‘riqueza’ alargue ou desmantele em mil pedacinhos o sentido de ‘capital’, uma palavra que desmancha torrão de açúcar na boca de Piketty.
Então, Piketty não parece interessado no potencial de riqueza ou de pobreza dos povos, mas no potencial de transformação da pobreza quando sai da marginalidade, quem sabe, até sugerindo a criação de novas moedas de mercado para isso, da criação de novos mercados, do aumento potencial de mercadorias, digamos, que não têm valor tangível neste momento, como poderiam afirmar Sen (2004) e Florida (2011), como a criatividade dos marginalia.
Seriam estas, então, moedas que mexem com modelos de distribuição de capitais; e também com a necessidade de transparência dos países acerca das contas públicas e privadas; com a relação dos sistemas de juros e a lógica de estoque de capital; mexem com a estrutura de mercados hegemônicos; mexem com o compromisso dos governos de descobrir, investir e lucrar JUNTO DE novos modelos de enriquecimento, de certo desconhecidos, mas sendo o Estado um dos primeiros a defender e brigar por seus potenciais e sucesso de direito.
Diante de tais afirmações, mesmo levando em consideração a maior ou menor intimidade de cada eventual leitor com assuntos que explodem entre filosofia e economia, qualquer desavisado ou socialdemocrata convicto, pelo menos em São Paulo, ficaria incomodado o suficiente para sair falando besteira.
E, ao sabatinarem, Andre e Paulo não se fizeram de rogados.
Para Andre Lara Resende parece que ficou clara a ausência de ‘sensibilidade’, digamos, de profissionais da economia, acerca de qualquer coisa relacionada ao ‘potencial de mobilidade social’, de modo que, ao que parece, na cabeça dele, o trabalho de Piketty não passa de um exercício de conceituação de dados e não de oferta de possibilidades. Assim, fica posto que não há potencial porque não há mobilidade. De certo, para ele, riqueza é uma coisa volátil que nunca permitiria retroceder ao capital patrimonial de outrora, quanto maior o sucesso no investimento de novas possibilidades, caso elas existissem. Danadinho.
A mania socialdemocrata tacanha, no caso, estaria em esquecer, ou mais propriamente,não olhar nos olhos dos sistemas de consagração da riqueza e da pobreza como um show de desperdício de riquezas em potencial, cujo investimento é proporcional à maior tributação sobre heranças, por exemplo, prova cabal da concentração imbecilizada de riquezas históricas.
Em outras palavras é a mania de esquecer que investimento social é parte de um mercado específico e que como mercado deve gerar lucros tangíveis que, necessariamente, pode estar relacionada a populações rurais, urbanas, quilombolas, lgbt´s, indígenas, ribeirinhos e ciganos ou nômades, que sinaliza despreparos históricos na movimentação de investimentos, portanto, que cedo ou tarde acabam nas mãos da corrupção, infelizmente.
E Paulo Guedes arremata a tacanhice fazendo a fala que abre este texto: aqui somos todos socialdemocratas, ou seja, ‘gostamos do mundo rico e do mundo pobre tal qual ele é, mesmo, que se dane a criatividade e que vença o melhor, o mais bem nascido, o mais bem alimentado, o que falar mais línguas hegemônicas’. Uma visão de vitória que poderia ser, aos olhos de Piketty, por si só, bastante derrotista. Também havemos de pensar no que fazer com as falácias que contaram para os ricos, aquelas do velho ‘tirar dos ricos para dar aos pobres’, quando na realidade, não é bem assim.
Então, suponho que essa tacanhice toda sirva para que nos coloquemos a pensar e praticar novas tecnologias de ação criativa de redução da ‘miséria participativa’, mesmo que isso tenha que mexer em tributações, entendendo a criação e o uso de uma tecnologia desse tipo uma atividade comercial como outra qualquer, guardando em sua aplicabilidade as devidas proporções culturais de diferentes marginalidades, revelando-as, interpretando-as, com paciência para descobrir e superar limites, algo que dura seu tempo.
Há informações de que a palestra será disponibilizada em breve e gratuitamente na internet, bastando acessar o link deixado abaixo. Neste momento, deve haver também algumas dezenas de textos como este espalhadas pela mídia falando mais ou menos as mesmas coisas, talvez com um volume maior de trivialidades.
Mas nada compensa o prazer de ter visto, ao vivo e da capital da República, um cara interessante, que não é da geração Y, X ou Z, saindo dos corredores da Filosofia e revirando os brios de especialistas do mundo todo, com vigor e liberdade merecidos, de direito.
 Link: http://iptv.usp.br/portal/transmissao/Piketty

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