terça-feira, 28 de abril de 2015

Corrupção, democracia e capitalismo: a purgação do PT

Ricardo Stuckert/Instituto Lula

O reencontro com seus valores originais representa a única chance de o PT recuperar a credibilidade para compartilhar com o povo o comando do seu destino.





A mais habilidosa e eficaz jogada do conservadorismo nas últimas décadas foi acuar a agenda progressista brasileira carimbando no PT a marca da degeneração ética.
 
Se isso pode ser revertido é outra história, mas o fato é que a operação foi concluída com sucesso.
 
E a tal ponto que hoje ela é a pedra angular do golpe branco, igualmente bem sucedido, que mantém o PT, o governo e o campo progressista submetidos aos ditames de uma agenda conservadora repisada diuturnamente como a ‘única’ saída para o país.
 
Não se trata apenas – e isso é sistematicamente reiterado — de denunciar a existência de ilícitos na vida do partido.
 
Fosse assim a ofensiva neoudenista apenas o nivelaria à norma da política brasileira.
 
Não.  A mensagem subliminar, não raro quase caricata, inoculada dia e noite em poções fartamente distribuídas pelo dispositivo midiático é a de que a corrupção no PT, leia-se, na esquerda, representa uma degeneração metabólica.
 
Coisa só sanável cortando-se o mal pela raiz, tornando proscrito o Partido dos Trabalhadores que impôs quatro derrotas presidenciais sucessivas à elite brasileira.
 
O ardil almeja atingir o fundo da alma brasileira, ou seja, secar a esperança na política como espaço dos que nunca tiveram vez, nem voz, na vida do país.
 
O que falta para espetar esse último prego no caixão da esperança?
 
Falta capturar Lula no redil da degeneração ética.
 
A isso se debruçam as investigações de seletividade autoexplicativa, os meios de comunicação e as milícias conservadoras que pisoteiam o imaginário popular incansavelmente com ilações, meias-verdades, calúnias e a falta de respeito habitual com que são tratados os interesses e as lideranças populares por aqui.
 
Ao despolitizar a luta pelo desenvolvimento, o PT praticou o haraquiri político que agora se volta contra a sua alma na forma de um esfolamento cotidiano em praça pública.
 
A saída do labirinto implica, em primeiro lugar, em desmistificar a falácia da política como um espaço de confronto entre querubins e demônios.
 
Virtude não é um traço do genoma humano.
 
Para que ela prospere como valor compartilhado  –nunca definitivo--  a sociedade teve que se resguardar historicamente construindo instituições virtuosas, estas sim, com poder de sedimentar anteparos ao interesse egoísta, incensado pela leitura rudimentar de Adam Smith.  
 
Faz parte desse mutirão civilizatório reforçar comportas que reduzam a pressão do dinheiro grosso sobre as urnas, os partidos, seus programas, as lideranças e seus mandatos.
 
Negligenciá-lo e, ao mesmo tempo, cobrar ética na política, equivale a estuprar a democracia até a morte e acusa-la de complacente.
 
Um artigo do economista Jeffrey Sachs, que está longe de ser um carbonaro, publicado no Portal do Project Syndicate, em 2011, encerra interessante atualidade no Brasil no momento em que violadores crassos acusam a esquerda de transformar o bordel capitalista em um ambiente sem escrúpulos.
 
Fosse hoje, Sachs poderia ter incluído nesse prontuário o malabarismo moral de juízes tropicais que, valendo-se da toga, insistem em manter a democracia refém da bacanal plutocrática.  
 
O desafio das forças democráticas e progressistas não se limita apenas em viabilizar uma reforma política que liberte a vítima da hipocrisia de seus algozes.
 
Essa reforma não se completará sem um protagonista social que lhe dê nervos e musculatura popular.
 
Ou seja, sem a criação de organizações que revertam o mais grave erro do PT no ciclo iniciado em 2003: ter subestimado o peso da democracia participativa na construção de uma política desenvolvimento.
 
Os avanços sociais inegáveis esbarraram no economicismo que levou o partido, ao mesmo tempo, a se distanciar das bases e a negligenciar a mobilização popular por reformas e democracia, sem as quais a máquina do crescimento não se renova e a ética política se evapora.
 
As chances de uma regeneração do PT é o tema do artigo do ex-senador Saturnino Braga‘Mudar o PT’.
 
O reencontro petista com os valores de sua origem -- e o do Brasil com um novo ciclo de crescimento mais justo e participativo -- converge assim para um mesmo desafio.
 
Ou seja, criar condições de força e consentimento na sociedade para pautar os mercados, em vez de mendigar a sua indulgência.
 
Essa é a tarefa intransferível de uma frente ampla democrática, progressista e nacionalista maior e mais forte que a soma das partes que hoje ainda subestimam o alcance dessa união.
 
Frequentemente na história, transformações democráticas fornecem a única alavanca capaz de remover obstáculos econômicos que se mostram intransponíveis quando abordados no âmbito de sua própria lógica.
 
É o caso do impasse atual do desenvolvimento brasileiro em que o requisito de elevar a produtividade sistêmica parece se opor à manutenção dos salários reais e à expansão de investimentos que assegurem a provisão de serviços públicos universais à população.
 
Mais que isso.
 
Devolver ao discernimento popular a escolha dos fins e dos meios necessários à construção do país que o Brasil poderia ser, mas que ainda não é, representa a única chance de o PT, e como ele todo o campo progressista, reconquistar a credibilidade necessária para compartilhar com o povo brasileiro o comando do seu destino.


A corrupção nos EUA

Jeffrey D. Sachs, do Project Syndicate/2011

O mundo está se afogando em fraudes corporativas e o problema parece ser mais grave nos países mais ricos, aqueles que supostamente contam com um "governo responsável". Os governos dos países pobres, provavelmente, aceitam mais subornos e cometem mais crimes, mas é nos países ricos - anfitriões das empresas multinacionais - que as infrações de maiores proporções são observadas. O dinheiro move montanhas e está corrompendo políticos em todo o mundo.


É difícil que haja um dia em que não venha à tona um novo caso de práticas administrativas questionáveis ou ilegais. Ao longo da última década, todas as firmas de Wall Street pagaram multas significativas por causa de algum episódio de fraude contábil, negociatas, fraude com valores mobiliários, operações fraudulentas de investimento e até apropriação indébita por parte de diretores executivos.


Uma grande quadrilha que promovia transações valendo-se de informações privilegiadas está sob julgamento em Nova York e a investigação implicou alguns dos principais nomes do mundo financeiro. Isso ocorre após o pagamento de uma série de multas aplicadas aos maiores bancos de investimento dos Estados Unidos como punição por várias violações relacionadas à negociação de valores mobiliários.

No entanto, o que mais se vê é a impunidade. Dois anos após a maior crise financeira de todos os tempos, abastecida pelo comportamento inescrupuloso apresentado pelos maiores bancos de Wall Street, nem um único comandante de uma instituição financeira foi preso.

Quando as empresas são multadas em decorrência de práticas ilegais, o preço é pago pelos seus acionistas e não por seus diretores executivos. As multas nunca passam de uma pequena fração do lucro obtido de maneira questionável e, para Wall Street, a implicação disso é que a corrupção se mostra consistentemente lucrativa. Mesmo nos dias de hoje, o lobby dos bancos demonstra pouquíssima consideração pelos políticos e pelas autoridades reguladoras.

A corrupção é lucrativa também no âmbito da política americana. O atual governador da Flórida, Rick Scott, foi diretor executivo de uma grande empresa de saúde chamada Columbia/HCA. A empresa foi acusada de fraudar o governo por meio do superfaturamento de reembolsos e acabou se declarando culpada de 14 delitos graves, pagando por eles uma multa de US$ 1,7 bilhão.

A investigação do FBI obrigou Scott a deixar o cargo. Mas, uma década depois de a empresa assumir a culpa, Scott está de volta, dessa vez apresentando-se como político republicano defensor do "livre mercado".

Quando o presidente Barack Obama precisou de alguém capaz de ajudar no resgate da indústria automobilística americana, ele se voltou para Steven Rattner, conhecida figura de Wall Street, apesar de saber que ele era investigado por oferecer propinas a funcionários do governo. Depois de concluir seu trabalho para a Casa Branca, Rattner concordou em pagar uma multa de alguns milhões de dólares e, com isso, encerrar o caso.

Mas que motivo teríamos para nos ater apenas aos governadores e conselheiros presidenciais? O ex-vice-presidente Dick Cheney chegou à Casa Branca depois de trabalhar como diretor executivo da Halliburton.

Durante o período em que Cheney esteve à frente da empresa, a Halliburton envolveu-se na oferta de propinas ilegais a funcionários do governo nigeriano, conseguindo com isso o acesso às reservas de petróleo do país - cujo valor é estimado em bilhões de dólares.

Quando o governo da Nigéria acusou a Halliburton de suborno, a empresa preferiu chegar a um acordo fora dos tribunais, pagando uma multa de US$ 35 milhões. É claro que Cheney não sofreu nenhum tipo de consequência. A notícia quase não encontrou espaço na mídia americana.

Impunidade. A impunidade tornou-se um fenômeno generalizado - com efeito, a maioria dos crimes corporativos ocorre sem chamar atenção. Os poucos casos que são notados costumam acabar em algum tipo de repreensão formal e a empresa - leia-se, os acionistas - recebe uma modesta multa.

No alto escalão dessas empresas, os verdadeiros culpados não têm com o que se preocupar. Mesmo quando as companhias recebem multas consideráveis, seus diretores executivos permanecem no cargo. Os acionistas, de tão numerosos, veem-se em uma situação de impotência diante dos administradores.

A explosão da corrupção - nos EUA, na Europa, na China, Índia, África, Brasil e outros países - traz um conjunto de perguntas desafiadoras a respeito de suas causas e de como ela poderia ser controlada agora que atingiu proporções epidêmicas.

A corrupção corporativa fugiu ao controle por dois motivos principais. Primeiro, as grandes empresas são agora multinacionais, enquanto os governos permanecem presos ao âmbito nacional. As grandes corporações contam com tamanho poder financeiro que os governos têm medo de enfrentá-las.

Segundo, as empresas são as principais financiadoras das campanhas políticas em países como os EUA, onde os próprios políticos, muitas vezes, estão entre os sócios delas, sendo, no mínimo, discretamente beneficiados pelos lucros corporativos. Cerca de metade dos congressistas americanos é composta por milionários e muitos deles mantêm laços com empresas antes mesmo de chegarem ao Congresso.

Como resultado, os políticos, com frequência, ignoram as situações em que o comportamento corporativo ultrapassa os limites. Mesmo que os congressistas tentassem fazer cumprir a lei, as empresas têm exércitos de advogados que tentam antecipar sua próxima jogada. O resultado é uma cultura da impunidade, com base na expectativa - amplamente confirmada - de que o crime compensa.

Levando-se em consideração a proximidade entre o dinheiro, o poder e a lei, o combate ao crime corporativo será uma luta árdua. Felizmente, o alcance e a rapidez das redes de troca de informações dos tempos atuais podem atuar como uma espécie de desinfetante ou como um fator de dissuasão.

A corrupção prospera nas sombras, mas, hoje em dia, um volume cada vez maior de informações vem à luz por meio de e-mails e de blogs, além do Facebook, do Twitter e de outras redes sociais.

Precisaremos também de um novo tipo de político, na vanguarda de um outro tipo de campanha, que tenha como base a mídia online gratuita em lugar da mídia paga. Quando os políticos puderem se emancipar das doações corporativas, eles recuperarão sua capacidade de controlar os abusos corporativos.

Além disso, precisaremos iluminar os cantos mais sombrios das finanças internacionais, em especial lugares como as Ilhas Cayman e os bancos suíços mais suspeitos. Os casos de evasão fiscal, oferta de subornos, remessa ilegal de fundos, propinas e outras transações passam por essas contas. A riqueza, o poder e a ilegalidade possibilitados por esse sistema oculto têm agora dimensões tão vastas que chegam a ameaçar a legitimidade da economia global, especialmente no momento em que a desigualdade de renda e os déficits orçamentários atingem níveis sem precedentes, graças à incapacidade política - e, em alguns casos, até mesmo operacional - dos governos de obrigar os mais ricos a pagar impostos.

Assim, da próxima vez em que souber de um escândalo de corrupção na África ou em alguma outra região empobrecida, pergunte-se onde a fraude se originou e quem seriam os corruptores responsáveis. Os EUA e os demais países "avançados" não deveriam apontar o dedo acusador para os países mais pobres, pois os responsáveis pelos problemas costumam ser as mais poderosas empresas multinacionais.

É PROFESSOR DE ECONOMIA DA UNIVERSIDADE COLUMBIA, DIRETOR DO EARTH INSTITUTE E CONSELHEIRO 
ESPECIAL DO SECRETÁRIO-GERAL DA ONU PARA AS METAS DE DESENVOLVIMENTO DO MILÊNIO

Créditos da foto: Ricardo Stuckert/Instituto Lula

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