Para o conservadorismo europeu, a União Européia tem as mãos
limpas. Não é culpada pelas guerras das quais fogem os náufragos que morrem em
suas fronteiras
Léa Maria Aarão Reis - http://cartamaior.com.br/
“Que a vida humana
seja prioridade nas ações de controle das fronteiras,” exortou a Anistia
Internacional, semana passada, aos chefes de estado europeus reunidos durante
quatro horas, em Bruxelas, para discutir a questão das migrações maciças em
direção à UE. Passada a grande comoção com os mais de mil imigrantes africanos,
na sua maioria sírios, somalis e eritreus mortos nos naufrágios nas costas da
África no tempo de apenas uma semana, são os terremotos no Nepal, a erupção do
vulcão Calbuco, no Chile e as manifestações de repúdio por ocasião do
centenário do genocídio armênio que desalojaram rapidamente do noticiário
principal “a crise humanitária mais grave, desde a Segunda Guerra Mundial,”
como insiste em anotar Geneviève Garrigos, presidente da Anistia Internacional
na França. Era de se esperar na era midiática de hoje, da descartabilidade e da
aceleração de eventos que se sucedem vertiginosamente. O Alto Comissariado para
Refugiados da ONU, porém, calcula em 1 776 imigrantes mortos, este ano, no
Mediterrâneo. O que parece também esquecido.
Para Garrigos, a política da UE de fechar suas fronteiras
terrestres favoreceu a criação de redes mafiosas de traficantes de seres
humanos que procuram entrar na Europa pelo Mediterrâneo. “Os contrabandistas
proliferam e exploram o desespero dessas pessoas que atravessam mais de mil
quilômetros de deserto para chegarem aos embarcadouros na maioria na Líbia.”
Garabulli, um dos principais portos onde os imigrantes são
embarcados, situado a 30 quilômetros de Trípoli, é onde os africanos que chegam
do Saara vindos de Gana, do Senegal e da Nigéria, notadamente, trabalham
durante meses ou anos na construção de casas de veraneio de um resort para
famílias ricas da Líbia (!) e reúnem os euros necessários para pagar a temerária
viagem. Benghazi, Kammash, Bouri, Musrata e mais alguns outros são mais do que
conhecidos pontos onde o tráfico dos boat
people deste século opera.
“Os governos e os partidos políticos contribuíram para a
atual situação dramática,” diz a presidente da Anistia Internacional na França.
Eles não podem abdicar da sua responsabilidade nas tragédias que vêm ocorrendo,
denuncia um documento publicado por essa ONG intitulado 'Os náufragos da
vergonha na Europa'.
Apenas a rigorosa política de repressão ao tráfico, com uma
frota de navios de guerra prontos para destruir os precários barcos de
contrabandistas, como propôs François Hollande na recente reunião de Bruxelas
(para se tornar efetiva a proposta dependerá de uma Resolução do Conselho de
Segurança da ONU que poderá demorar meses e até anos para ser anunciada) parece
– parece? – mesmo equivocada.
O objetivo é diminuir o fluxo migratório e impedir que os
africanos deixem a África. No entanto, as fronteiras nunca foram tão seguras e
tão vigiadas como hoje, em terra e mar; e nunca as tragédias foram tão
frequentes, observa Garrigos que acrescenta: “As medidas planejadas na cúpula
são requentadas.” Ou seja: blá-blá-blá – e o perfume do cinismo está no ar.
Mas há também novos argumentos e estudos independentes já
realizados no sentido de encontrar uma solução humanitária e generosa para
esses que fogem da tragédia da África e do Oriente Médio e que ao mesmo tempo
caminhe com a economia do velho continente sem piorar o combalido mercado de
trabalho dos europeus. Mas também parece que as pesquisas feitas não estão
sendo levadas em conta pela União Europeia, conglomerado de 28 países dos quais
apenas cinco carimbam vistos, em conta gotas, nos passaportes de imigrantes - o
que estimula o tráfico de pessoas e a clandestinidade.
Os outros 23 governos fingem que o assunto não é com eles e
se fazem de surdos, como o atual presidente do clube, o conservador Jean-Claude
Juncker, e o presidente do Conselho Europeu, o polonês Donald Tusk – um dos
padrinhos do caos ucraniano -, que gargarejou: “A Europa não causou esta
tragédia, mas não quer dizer que ela lhe seja indiferente”. Para ele, a União
Européia tem as mãos limpas. Não é culpada pelas guerras das quais fogem os
náufragos.
Já Frederic Leggeri, diretor-geral da Operação Frontex,
criada para substituir a Operação Mare Nostrum, dos italianos, em andamento,
lembra que esse corpo de agentes “não tem por missão salvar vidas”, e se assim
o faz é pela imposição do “direito marítimo”. “O objetivo da Frontex é
controlar e triar as entradas de imigrantes irregulares,” ele declara,
instalado na sua zona de conforto.
Um dos estudos apresentado pelo Centro de Estudos e
Pesquisas Internacionais em Paris mostra, no entanto, que autorizar as
migrações para limitá-las pode ser interessante. “Uma fronteira fechada não
detém um imigrante que pagou cinco mil dólares a um traficante e está prestes a
arriscar sua vida,” diz a cientista política Françoise Gemenne. “Em Ceuta e em
Melilla uma pessoa pode tentar cinco, dez, cem vezes a passagem.” Sangrando,
ferida nas paliçadas de ferro, mas tenta. “A interdição não impede nada. Só
aumenta o risco de vida.”
Esta ONG ressalta as políticas negativas desenvolvidas pela
UE nos anos recentes e deplora a falta de generosidade europeia. Enquanto
quatro milhões de sírios se encontram refugiados em países vizinhos, Líbano e
Jordânia, a Europa acolheu 40 mil pedidos de asilo nos dois últimos anos.
Deles, 30 mil foram aceitos pela Alemanha.
Para a Anistia a única solução seria a retomada da operação
dos italianos, a Mare Nostrum, em nível europeu, mais eficiente que a Triton,
da Frontex, porque além de fiscalizar as fronteiras marítimas ela resgata
imigrantes náufragos - salvou 170 mil vidas humanas entre outubro de 2013 e
outubro de 2014. Para duas economistas da Universidade de Toulouse e da City
University de Londres, Emmanuelle Auriol e Alice Mesnard, estudiosas do tema, a
proposta é a de vender vistos de entrada mais baratos que os valores
estipulados pelos traficantes e ao mesmo tempo reprimir severamente o mercado
negro do trabalho de ilegais nos países europeus. Ambas reconhecem que esta
ideia não é de agrado dos patrões, é claro. Para ser colocada em prática ela
exige coragem política para enfrentar governos liberais e conservadores e mesmo
os outros, dos tímidos socialistas.
Já o grupo Migreurop, composto de militantes e pesquisadores
europeus e africanos, propõe usar a Tunísia como laboratório para testar a
estratégia da abertura de fronteiras. Os governos da UE não estão dando atenção
a essa outra ideia assim como se abstêm de analisar os diversos estudos
realizados pelos que integram a ONG Mobglob. Eles já provaram que os que
entram, participam do aumento da riqueza econômica do país que os acolhe mesmo
não sendo os chamados “imigrantes econômicos” – os que convêm a cada país.
Entre os grupos progressistas a voz geral é a de que, assim
como os capitais, bens e serviços circulam livremente, no mundo, os seres
humanos devem ter o mesmo direito. É o que recorda até o The Economist. Mais
uma utopia de um mundo sem terrorismo onde os países não precisariam se fechar
e se defender agressivamente?
A cúpula da semana passada, porém, forçou os governos do
continente a admitirem, ao menos em parte, que a sua política de asilo é um
fracasso moral e político. Decidiu-se triplicar o orçamento de três milhões de
euros por mês para a Operação Triton. Prometeu-se revisar o pesadelo e o
descalabro da situação de alguns centros de detenção de ilegais (com os
sobreviventes do êxodo), semelhantes em alguns casos a campos de concentração.
Recentemente, um jovem se suicidou num deles, na Grécia. O fato ocasionou um
pedido público de desculpas do governo que depois do incidente trágico está
liberando, aos poucos, milhares de refugiados confinados ilegalmente durante
longos períodos contrariamente ao que reza a Declaração de Direitos
Humanos.
O orçamento da UE para este ano é de 161.800 milhões de
euros. Apenas a Itália, sozinha, gasta o mesmo valor com a sua Mare Nostrum -
nove milhões de euros prometidos agora para a Frontex. São números sovinas que
constrangem aqueles europeus que lutam para manter um estado de bem estar
social em casa e fora dela.
Como escreveu o experiente jornalista português José Goulão
no seu site, Jardim das Delícias, se referindo à cúpula de sete dias atrás:
“Deixo-vos a pérola patética do impagável Hollande: Eu gostaria que tivéssemos
sido mais ambiciosos… Então, o que os impediu?” indaga Goulão.
Créditos da foto: Jim / Flickr
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