Num mundo sem grandes questionamentos de como as
coisas funcionam, o discurso contra a corrupção na política cai bem aos
moralistas
por Marcos Piva / http://www.redebrasilatual.com.br/
Recentemente, as redações de grandes jornais e de algumas
rádios e TVs foram tomadas pela pior notícia que um trabalhador pode receber:
uma onda de demissões. Segundo as informações oficiais dos próprios veículos,
foram mais de 150 jornalistas dispensados. Corporativamente, esse fenômeno que
ataca as redações é conhecido como “passaralho” (deixo à imaginação do leitor o
que isto significa). No caso do jornal O Estado de S. Paulo, a dispensa ocorreu
no último dia 7, ironicamente o Dia do Jornalista.
Muitos colegas condenaram as demissões. Algumas chamaram a
atenção porque atingiram profissionais experientes, com décadas de prestação de
serviços aos seus veículos. Foi o caso de Cláudio Carsughi, que trabalhou 58
anos na Rádio Jovem Pan. Mas, em geral, foram questionamentos lúdicos sobre a
realidade daquela que já foi, provavelmente, uma profissão onde o talento para
se contar histórias valia o espaço que ocupava. O tom crítico contra as
demissões, porém, esbarra exatamente naquilo que falta a todas as profissões
hoje em dia, e não somente ao profissional da imprensa: ler a história. E ler o
quê? De um modo geral, ler para saber em
qual sociedade vivemos, quais são as dinâmicas das relações de trabalho, as
consequências da oligopolização do capital financeiro, as tramas dos discursos
dominantes e por aí vai.
Desconhecer que os recentes voos do “passaralho” sobre as
redações se dá por conta de algo concreto que é a completa inutilidade de
certos meios de imprensa na atualidade tecnológica e simbólica que vivemos é
desconhecer o essencial. E tocar na ferida é o ponto central se queremos
acrescentar alguma coisa a essa discussão. Platitudes de solidariedade ou
desdém de cá e de lá resultam na mesma coisa: nada.
Foi justamente por não ter tocado na ferida que muitos
profissionais se deixaram envolver pelos mecanismos de dominação ideológica
provenientes desse instrumento da superestrutura chamado imprensa. A bela arte
de contar histórias ficou relegada a mantras técnicos e a planilhas de custos
que foram empurrando o jornalismo para uma insignificância cultural, cuja
sobrevivência foi dependendo cada vez mais das verbas publicitárias públicas e
privadas.
Chegamos, portanto, ao fundo do poço ou ao final da
história. E o que nos resta como espaço público? Pessoalmente, pedaladas
fiscais junto aos bancos, uma dose de amor dos parentes e amigos e a eterna
ilusão de que fomos importantes um dia. Sem contar outras estratégias criativas
de sobrevivência como o site “Implicante”, que faturava R$ 70 mil por mês do
governo do Estado de São Paulo para falar mal da Dilma, do Lula e do PT (sim,
dinheiro meu, seu, de todos nós, como gostam de dizer por aí).
Mas esses “criativos” (mercado publicitário, sacaram?) são
poucos. O fundamental é constatar que o jornalismo tal qual ensinou Joseph
Pulitzer, nas bandas de lá, e Claudio Abramo, outro grande mestre nas bandas de
cá, está morrendo e dando lugar a um ninho de serpentes que carregam em si
aquilo que Thomas Hobbes já dizia no século 18: a guerra de todos contra todos.
O ódio que vemos nas redes sociais, alicerçado em calúnias, mentiras e
difamações de toda ordem, é fruto do ser humano que não conheceu uma coisa
básica: as leis da dialética ou, para simplificar, tudo aquilo que vai, volta,
transformado em coisa pior ou melhor, dependendo da maneira como enxergamos o
mundo, as relações dos homens entre si e dos homens com a natureza. Não adianta
muito um curso de ensino superior no bolso se o sujeito vai para a avenida
Paulista vomitar bobagens como a volta da ditadura militar e dizer impropérios
impublicáveis na frente dos filhos para que eles, o futuro da nação, saibam
“como é que as coisas tem que ser”.
Mas, voltando ao início do texto, cabe a pergunta: estamos
regredindo como civilização? Arrisco a dizer que sim. Na medida que as relações
de trabalho tradicionais foram substituídas por formas modernas de produção de
mais-valia, o trabalhador vai virando peça de museu na engrenagem que ele mesmo
um dia ajudou a criar e o lucro se concentra ainda mais nas esferas societárias
financeiras, que ficam acima da política e dos próprios Estados nacionais,
subordinando-os de forma vexatória. Não são as empreiteiras da Operação Lava
Jato contra as quais devemos virar nossas baterias. Por que são inocentes? Não.
No limite, elas nasceram, cresceram e se consolidaram como
gigantes porque nos últimos 50 anos o desenvolvimento do Brasil, para tomar
nosso exemplo caseiro, esteve alinhado com o jeito de se fazer política
pública, na ditadura ou na democracia. Até mesmo aqueles grupos que se dispuseram
a buscar um caminho alternativo, se deixaram enredar pelas artimanhas do jogo.
O resultado está aí para quem quiser ver. Um partido como o PT, que promoveu a
maior distribuição de renda e de oportunidade para o povo em 500 anos, sucumbe
dia após dia aos seus erros e ausência de autocrítica, mas principalmente ao
ataque sem trégua daqueles que se sentiram usurpados em seu poder tradicional e
usam todos os meios para “acabar com o partido”, como se isso fosse a missão
primordial de depuração da sociedade.
A luta pela hegemonia política é da natureza dos partidos.
Acusar o PT de querer se manter no poder, portanto, é de uma estupidez sem
tamanho. E se fossemos dizer isso do PSDB, que governa São Paulo há 20 anos,
também. Então, a questão, para nós jornalistas ou não, é uma só: entender que
existem classes reais na sociedade que o tempo todo estão em choque porque
trazem dentro de si a natureza humana e a sua posição social. Como normalmente
a esquerda levanta essa tese, ela é acusada de incentivar a luta de classes e o
ódio entre as pessoas. Errado. Esta situação existe como fato histórico
permanente, admitido até mesmo pelos mais notórios economistas liberais.
Entender as coisas no mundo de hoje é uma tarefa complexa.
Sugiro um ponto de partida: os estudos sobre a concentração do capital num
grupo cada vez mais restrito de instituições financeiras, cujos donos
desconhecemos e que atuam pelo mundo todo. Aí reside a escravidão moderna das
nações e de seus povos porque aliena a política e, quando necessário, a
criminaliza, de preferência contra aqueles grupos que, embora de forma tímida,
tenham ousado enfrentá-los. E num mundo sem grandes questionamentos de como as
coisas funcionam, o discurso contra a corrupção na política cai bem aos
moralistas, numa réplica típica da era vitoriana que, no final do século 19,
aprovou leis contra o homossexualidade masculina, mas não o fez com o feminino
pelo simples fato de acreditar piamente que esta não pudesse existir.
Gritar palavrões a torto e à direita sem a menor noção do
que está em jogo é burlesco, beira o ridículo. Então não devemos combater a
corrupção? Obviamente que sim, mas devemos colocar isso no âmbito do
aprofundamento da democracia, único sistema capaz efetivamente de combatê-la.
Nesse sentido, o respeito ao Estado de Direito e à presunção da inocência, ao
lado de informações objetivas que mostrem os vários lados da questão, são
essenciais para que o ódio não seja o motor ilusório das transformações. O jornalista,
ou o que resta dele, tem esse dever com a sociedade. Quem sabe seu último
compromisso com aquilo que considera notícia.
Marco Piva é jornalista
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