Em 1980, 50% dos estadunidenses pensavam que a próxima
geração viveria pior que a sua. Hoje a cifra subiu para um assustador 80%.
Luis Matías López - público.es / http://cartamaior.com.br/
Este artigo fala sobre como o império norte-americano está
afundando, podre por dentro, mas estufando o peito e com uma enganosa aparência
de boa saúde. Como na Trilogia USA, de John Dos Passos, cheio daquele aroma
esquerdista das primeiras três décadas do Século XX, o livro Desagregação – Por
Dentro de Uma Nova América, de George Packer, jornalista oriundo da escola do
The New Yorker, fala dos trinta anos de lenta decadência ianque, com os
momentos decisivos desse processo, a partir da crise do petróleo em 1973 (“o
último ano da Década de 50”, segundo um dos personagens do libro). Naquele
momento, os Estados Unidos submergiu numa crise existencial e de identidade,
uma fratura interna cujo resgate requer mais que a simples recuperação
econômica.
Se Dos Passos apresentava doze personagens de ficção
representativos da realidade social da época (desde um tipógrafo, a uma
empregada, um mecânico ou um jornalista e ativista), Packer expõe a experiência
vital de um punhado de personagens reais. Através deles reflete as luzes e
sombras de um país no divã do psiquiatra, fragmentado e dividido, das cidades
sem alma e em processo de descomposição, cada vez mais dependente do veículo
privado, sem redes de transporte que facilitem a integração e a atividade
comunitária, com bairros arrasados pelo tsunami dos despejados desabrigados.
Trata-se de um país que, enquanto ostenta ainda a supremacia
tecnológica e científica, poderá manter a liderança mundial, e dar lições de
moralidade e democracia. Apesar disso, o país vai descobrindo que é mais
desigual que nunca, discrimina seus cidadãos, rouba seu dinheiro e seus
serviços essenciais, destrói a classe média, o tecido social com o que, durante
muitas décadas, vestiu seu modelo de grandeza. Com uma analogia extrema,
pode-se dizer que as opções hoje estão entre ganhar um milhão de dólares por ano
ou nove dólares por hora trabalhando no Wal-Mart.
Packer expõe este lamentável panorama em Desagregações, mas
sem o mesmo fôlego ideológico esquerdista de Dos Passos, deixando uma certa
margem, para que nem todos os leitores tirem as mesmas conclusões, mas com uma
eficácia similar. Seus personagens são parecidos e ao mesmo tempo diferentes
dos da Trilogia USA. O fato de serem reais agrega um pouco mais de força como
categoria. O livro segue suas rotinas através dos tempos, vê como eles evoluem,
se derrubam e se levantam, enfrentam dificuldades, os vê confiar e se
decepcionar com os políticos, a ilusão com projetos empresariais condenados ao
fracasso, e também os casos excepcionais onde se faz realidade o individualista
e quase nunca solidário sonho americano.
Gente comum, pode ser um jornalista cheio de ideais que
vasculha a sujeira das hipotecas do subprime que destruíram milhões de famílias
indefesas diante das entidades financeiras; uma operária negra, mãe solteira e
filha de uma viciada em drogas, expulsa do mercado de trabalho pela crise da
indústria metalúrgica, e que se transforma em ativista comunitária; um
visionário empreendedor que combate a crise da gasolina cara (uma tragédia para
o estilo de vida norte-americano, hoje contornada pela queda no preço do
petróleo) desenvolvendo a produção de biodiesel, usando até mesmo óleo jogado
fora pelos restaurantes; um magnata do Silicon Valley que se tornou rico com
Facebook, PayPal e outros projetos tecnológicos, mas que logo vai às bordas da
ruína e reclama das universidades que não ensinam como gerir uma empresa; um
assessor político e lobista testemunha das misérias da política, mas que mantêm
durante décadas uma lealdade a Joe Biden (atual vice-presidente) que não
sintoniza com o perfil egoísta que se conhece dele; um magnata corresponsável
pelo crash financeiro que, apesar de tudo, termina sendo Secretário do Tesouro
do Governo Obama… e um Obama que representou a esperança quando foi eleito, mas
que, a cada dia que passa, se revela mais parecido com outro presidente vendido
(ou acolhido) pelos poderes fáticos, a começar pelo financeiro.
Não somente os cidadãos são personagens em Desagregação. As
cidades também, e duas muito em particular: Youngstown (Ohio) e Tampa
(Florida). A primeira foi sempre irrespirável, e não no sentido figurado, já
que há anos as chaminés dos altos-fornos formam parte da paisagem urbana, e
sujam o ambiente com suas pestilentes emanações. Ao mesmo tempo, esse veneno
inevitável era o símbolo da prosperidade, garantia o pleno emprego e bons
salários, dando aos habitantes a oportunidade de organizar suas vidas sem
angústias materiais. Até que a crise veio e esvaziou muitos bairros, atingiu
milhares de famílias que não podiam pagar hipotecas a preços irreais,
multiplicou as cotas de delinquência e a proporção de pobres dependentes da
assistência social, e forçou a uma diminuição da população de forma brutal e
irreversível.
Algo parecido ocorreu em Tampa, embora essa região da
Florida o impacto no desenvolvimento não foi na indústria metalúrgica, mas sim
na do sol fonte de qualidade de vida que deveria atrair os endinheirados de
todo o país, o que provocou uma descontrolada bolha imobiliária, com novos
bairros se proliferando como fungos, os preços das propriedades dobrando de
valor de um dia pro outro, onde quem não tinha onde cair morto embarcava na
compra imobiliária em prestações, com a confiança de que em pouco tempo poderia
vender e ganhar lucros fabulosos. Algo parecido ao que aconteceu na Espanha,
mas numa escala ainda mais brutal. Porque a consequência foi uma epidemia de
despejos. Quando a bolha estourou, o vazio destruiu as ilusões de milhares. O
peso da falta de consciência, estimulada sem escrúpulos pelos especuladores,
fez com que tantos sofressem um golpe do qual a maioria não conseguiria se
recuperar jamais.
O sonho de Tampa era o de se transformar na “próxima grande
cidade americana”, promovido inclusive com duas finais do Super Bowl e uma
convenção do Partido Republicano, e não restou nada. Enquanto isso, a política,
sempre a maldita política, e a emergência explosiva do Tea Party, impediam que
surgissem projetos de regeneração da qualidade de vida para os cidadãos, como o
de uma linha ferroviária urbana que reduzisse a dependência do automóvel
privado, a reabilitação do centro como ponto de encontro dos moradores, para
acabar com o isolamento dos bairros mais distantes, nascidos da péssima
planificação urbanística e privados de serviços mais essenciais.
Assim como nos livros de John Dos Passos, Packer mescla as
histórias individuais, fruto de centenas de entrevistas, com os retratos nem
sempre condescendentes (e às vezes destrutivos) confeccionados a partir de fontes
secundárias, de personagens conhecidos como o escritor Raymond Carver, o
cronista da desesperança operária durante a Era Reagan, transformado em
clássico moderno; o político republicano Newt Gingrich, personificação do
conservadorismo mais reacionário; o empresário San Walton, dono do gigante das
vendas baratas, criador do Wal-Mart, referência em termos de salários
miseráveis e intolerância com os sindicatos; a apresentadora Oprah Winfrey, o
rapper Jay-Z, o economista e Secretário do Tesouro Robert Rubin, a ativista
Elisabeth Warren e a paladina da comida saudável e ecológica Alice Waters.
Junto com eles, vários perdedores sem esperança de redenção, sempre na luta
desesperada por conseguir uma assistência médica adequada, um covil onde se
possa viver mal em troca de uns poucos dólares e ter o suficiente para comprar
algumas roupas e dar de comer aos filhos, com a necessidade vez ou outra de ter
que aceitar as humilhações da sempre insuficiente caridade pública ou privada.
Essa Desagregação, citada no título livro, trouxe
paradoxalmente “muito mais liberdade”, segundo Packer. Liberdade de ganhar ou
perder (“o esporte favorito dos norte-americanos”), para superar o fracasso e
refazer a vida na terra das oportunidades, onde qualquer um pode chegar a ser presidente.
Mas, sobretudo, liberdade para que te despeçam, te droguem, te levem à
bancarrota, para que você fracasse, fique sozinho (a porcentagem de famílias de
uma só pessoa é a mais alta da história)…Liberdade que faz desaparecer o tecido
industrial, arrasa as cidades e os pilares da cidadania, das igrejas aos
sindicatos e as organizações cívicas.
Pode-se argumentar que, de toda forma, e muito mais
claramente que na Espanha, esse desmoronamento social foi contido, que a
economia dos Estados Unidos leva vários anos em expansão, que a taxa de
desemprego foi tão reduzida que quase se pode falar em pleno emprego, que o
pior já passou, que chegou de novo a hora do otimismo. Mas se trata de uma
ilusão, porque a forma com que políticos, banqueiros e grandes empresários
enfrentaram essa crise não curou as feridas, não ha reconstruiu o tecido social
que havia antes. Até porque ter um emprego, na era da precariedade e do arrocho
salarial, já não és garantia de uma vida digna. Nem lá nem cá.
Após a II Guerra Mundial, houve nos EUA uma espécie de época
dourada do capitalismo, mais de duas décadas em que o contrato social implícito
estabelecia uma distribuição da riqueza que não chegava a ser equitativa, mas
tampouco era abusiva demais, um sistema onde todos ganhavam (ainda que alguns
poucos levassem muito mais que a grande maioria) e a paz social se mantinha com
o desenvolvimento econômico. Mas a paisagem atual é bem diferente, mostra uma
degradação sem volta atrás, que começa na Era Reagan e se manteve ininterrupta
durante as administrações dos democratas – nem Carter, nem Clinton e muito
menos o Obama do yes, we can puderam reverter.
Em 1980, 50% dos estadunidenses pensavam que a próxima
geração viveria pior que a sua. Hoje a cifra subiu para um assustador 80%. O câncer
da desigualdade chegou ao ponto de metástase, corroendo a sociedade inteira. Os
ricos são mias ricos que nunca. Os pobres, muito mais pobres. Packer não tenta
fazer pregação ideológica, se limita a contar histórias e refletir os fatos.
Oficialmente, não toma partido. E não faz falta, porque as conclusões são
evidentes.
Desagregação não é o primeiro livro que ilustra uma tragédia
existencial, nem será o último. Contudo, posso estar muito enganado, mas creio
que deverá se tornar referência sobre a crise mais destrutiva da história dos
EUA. No fim das contas, esse foi o grande mérito de John Dos Passos na Trilogia
USA: que é inevitável se referir às suas novelas para analisar aquela época
conturbada, mas não tanto quanto a atual, em que o império ainda pretende ditar
a pauta no mundo enquanto a podridão corrói suas entranhas.
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Luis Matías López é ex redator-chefe e ex-correspondente em
Moscou do El País da Espanha, membro do Conselho Editorial de PÚBLICO até a
desaparição de sua edição em papel.
Créditos da foto: onpoint.wbur
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