É pouquíssimo provável que o PT
se reaproxime das expectativas populares sob ataque do Governo Federal. Então,
afinal, o que o futuro nos reserva?
Ruy Braga, originalmente
publicado no Blog da Boitempo / http://cartamaior.com.br/
Desembarquei em Curitiba na manhã
seguinte à brutal repressão promovida pelo governo do tucano Beto Richa aos
professores e servidores estaduais que protestavam em frente à Assembléia
estadual contra a votação do projeto de lei que alterou a Paranaprevidência. Ao
participar de uma assembléia de servidores da Universidade Federal do Paraná,
pude ouvir os dramáticos relatos sobre a violência policial do dia anterior. Vi
de perto os hematomas deixados pelas balas de borracha e os cortes causados
pelos estilhaços das bombas de fragmentação nos servidores federais que estavam
no protesto. Entre perplexo e indignado, descobri que o governo estadual trouxe
tropas de choque de várias regiões do Estado pra reforçar o efetivo de 1.500
policiais em frente ao parlamento. Atônito, soube que todo o estoque de gás
lacrimogêneo do Paraná esgotou-se em apenas duas horas. A nuvem de gás criada
pela PM obrigou a evacuação às pressas de uma creche na região.
A escala da violência política
contra uma multidão formada por professores e servidores públicos, muitos
deles, eleitores de Beto Richa, não deixa dúvidas a respeito da importância da
votação do projeto de lei que muda o regime previdenciário dos servidores
paranaenses. Trata-se basicamente da pilhagem de direitos sociais em benefício
do pagamento da dívida pública estadual. Ainda estava na cidade quando o
governador sancionou o projeto. Ou seja, a brutalidade policial assegurou o
roubo das aposentadorias e das pensões dos servidores.
A “Batalha de Curitiba” seria um
acontecimento isolado não fosse o fato de que a espoliação dos direitos sociais
e trabalhistas a fim de pagar juros e amortizações da dívida pública ter se
transformado na principal estratégia social de acumulação do modelo de
desenvolvimento brasileiro. Guardadas as devidas diferenças e semelhanças, a
mesma lógica financeirizada de acumulação por espoliação norteia os atuais
ataques do Governo Federal por meio da aprovação das Medidas Provisórias (MPs)
664 e 665 contra os direitos previdenciários dos trabalhadores, como o
seguro-desemprego e a pensão por morte. Às MPs, soma-se o Projeto de Lei (PL)
4330, em tramitação no senado, cujo sentido consiste em rebaixar o custo da
força de trabalho brasileira por meio da degradação do acesso dos trabalhadores
aos seus direitos trabalhistas.
Ao fim e ao cabo, não parece
haver mais dúvida sobre o que se passa no país. Transitamos de um regime de
acumulação apoiado predominantemente na exploração do trabalho assalariado
barato para um regime de acumulação focado na espoliação dos direitos dos
trabalhadores.
Evidentemente, isto não implica
que a exploração do trabalho assalariado barato tenha perdido centralidade. No
entanto, tendo em vista o prolongamento da crise econômica internacional somado
à dificuldade do atual regime de acumulação em acomodar os conflitos
trabalhistas decorrentes da ampliação do assalariamento formal da última década
– não nos esqueçamos do atual pico histórico grevista –, o Governo Federal,
respondendo às pressões da oligarquia rentista, decidiu orquestrar uma brusca
mudança nos rumos da economia. A prioridade voltou-se para o reforço dos
alicerces da acumulação por espoliação, ou seja, a mercantilização do dinheiro,
da terra e do trabalho. Naturalmente, isto já ocorria antes. Mas, vale lembrar
que alterações quantitativas provocam mudanças qualitativas. E, sem dúvidas,
entramos este ano em uma quadra histórica diferente da anterior.
Um ajuste fiscal de 70 bilhões de
reais atingindo prioritariamente os investimentos em educação e saúde somado ao
plano de privatização das infraestruturas nacionais anunciaram esta nova era
que será coroada por uma transformação estrutural do mercado de trabalho
brasileiro, caso o PL 4330 seja aprovado. Finalmente, as sucessivas elevações
da taxa básica de juros selaram o caixão do neodesenvolvimentismo esboçado no
primeiro governo de Dilma Rousseff.
Para as viúvas deste modelo que
acreditaram no tom de ricos contra pobres da última campanha petista, ficará
sempre a lembrança da “demissão” de Guido Mantega um mês antes do primeiro
turno. Àquela altura, alguém imaginou seriamente que Dilma pretendia trocar
Mantega por Belluzzo? Na verdade, a transição entre os modelos já estava
selada.
Tradicionalmente, o marxismo
tendeu a interpretar a passagem da acumulação primitiva escudada na violência
política condensada no Estado para a forma industrial do capital apoiada na
violência econômica da exploração do trabalho assalariado como uma transição
sequencial.
Em sua clássica interpretação do
imperialismo, Rosa Luxemburgo1 foi quem primeiro aventou a hipótese de uma
reinvenção mais ou menos permanente da estratégia da acumulação por espoliação.
David Harvey2 atualizou recentemente a teoria luxemburguista a fim de descrever
a estratégia predominante da acumulação durante o período da crise do
neoliberalismo.
Apesar de reconhecer certos
exageros na bem-sucedida análise de Harvey, alguns deles já sublinhados por
Ellen Meiksins Wood3, entendo que a plasticidade das relações de exploração
capitalistas somada ao caráter cíclico da economia mercantil tornam factível a
convivência íntima e complementar das diferentes estratégias sociais de
acumulação. Tendo em vista a multiplicidade dos ritmos, desiguais, porém
combinados, que regem a relação de forças entre as classes, além das dificuldades
derivadas do processo de recomposição permanente da divisão internacional do
trabalho, é expectável que ocorram oscilações mais ou menos frequentes do polo
da exploração para o da espoliação, e vice-versa, no tocante à direção geral do
regime de acumulação. O atual ajuste promovido pelo Governo Federal dialoga com
esta dinâmica.
Evidentemente, nada está decidido
em definitivo e a forma da transição geral rumo à centralidade da pilhagem dos
direitos e da violência política sobre os trabalhadores vai depender dos
desdobramentos das lutas sociais no país. Daí a importância do dia nacional de
paralisação e manifestações rumo à greve geral convocado pelas centrais
sindicais CSP-Conlutas, CTB, CUT, Nova Central, UGT e Intersindical, para o dia
29 de maio.
Ademais, caso a hipótese da
acumulação por espoliação esteja correta, arriscaria dizer que o modo de
regulação lulista está com os dias contados. Afinal, se a especificidade do
atual regime hegemônico repousa na articulação entre o consentimento passivo
dos subalternos e o consentimento ativo das direções dos movimentos sociais,
como o modo de regulação irá se reproduzir sem a concordância "dos de
baixo" seguida pela intensificação da pressão destes sobre as lideranças
dos movimentos sociais? Ao que tudo indica, a era da pacificação social ficou
pra traz, sepultando a hegemonia lulista.
Ainda é possível que o PT se
reaproxime das expectativas populares sob ataque do Governo Federal?
Hipoteticamente, sim. No entanto, isso suporia um afastamento traumático em relação
ao seu próprio governo, decretando o colapso do consentimento ativo das
direções. Convenhamos, trata-se de um cenário pouquíssimo provável.
Então, afinal, o que o futuro nos
reserva?
Em seus Cadernos do cárcere,
Antonio Gramsci definiu hegemonia como "força revestida de consenso".
Durante períodos de crise orgânica, quando o consenso recua e a força avança, o
conteúdo autoritário da estrutura capitalista revela-se com mais clareza. A militarização
do conflito social insinua que a transição para um modelo apoiado na pilhagem
dos direitos sociais e trabalhistas já começou. E o mais provável é que
batalhas populares como as de Curitiba multipliquem-se pelo país afora,
comprovando a chegada da era da pilhagem ao país.
______________
Ruy Braga é professor do
Departamento de Sociologia da USP e ex-diretor do Centro de Estudos dos
Direitos da Cidadania (Cenedic) da USP, é autor, entre outros livros, de A
política do precariado: do populismo à hegemonia lulista (Boitempo Editorial).
1 Rosa Luxemburgo descreveu o
processo de acumulação em países como a Índia e a China, enfatizando a
mercantilização da terra e a criação das condições para o desenraizamento dos
trabalhadores de suas comunidades rurais originárias, assim como sua posterior
proletarização. Para tanto, Rosa destacou a centralidade da violência política
e o necessário papel cumprido pelo militarismo no ciclo da acumulação
capitalista. Para mais detalhes, ver Rosa Luxemburgo. A acumulação do capital:
contribuição ao estudo econômico do imperialismo. São Paulo: Nova Cultural,
1985.
2 Ver David Harvey. O novo
imperialismo. São Paulo: Loyola, 2009.
3 Ver Ellen Meiksins Wood. O
império do capital. São Paulo: Boitempo, 2014.
Créditos da foto: Blog da
Boitempo/Reprodução
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