Estamos diante de uma guinada
radical na situação política turca, e o atentado do dia 20 de julho só fez
acelerar mais esse processo.
Nazanín Armanian* - www.cartamaior.com.br
Em outubro de 2014, o governo de
Tayyip Erdogan condicionava sua luta contra o Estado Islâmico (EI) e o uso da
base militar de Incirlik por parte dos Estados Unidos à queda de Bashar Al
Assad, com a participação da OTAN em sua derrubada. Agora, de repente, a
Turquia bombardeia as supostas posições do EI e aproveita o ensejo para abrir
fogo contra a guerrilha curda PKK, no Iraque, enquanto autoriza Washington a
utilizar Incirlik como base para atacar a Síria. Isso significa que Barack
Obama cumprirá sua parte? Terá que criar uma zona de exclusão aérea no norte da
Síria, como início da desintegração do país como fez com o Iraque em 1991? O
fato de que essas operações tenham acontecido dias depois de Obama conseguir do
Irã – aliado de Damasco – um acordo nuclear de conteúdo secreto é mera
coincidência? Também será coincidência o ocorrido no dia 12 de julho, quando o
governo turco acolheu uma reunião da oposição de direita da Síria, com o plano
de formar um governo no exílio? E o que Erdogan espera receber em troca de
acabar com as negociações de paz com a PKK? Que problema tinha ele com a
guerrilha que não poderia ser resolvido pela via do diálogo?
Os curdos afirmam que Erdogan
havia lançado bombas sobre os refúgios abandonados dos jihadistas, e que o
objetivo real dos artefatos foi atingir o PKK e os curdos sírios.
Na verdade, estamos diante de uma
guinada radical na situação política turca, e o atentado do dia 20 de julho, no
acampamento da Federação de Entidades Socialistas, na cidade de Suruç, que
deixou 32 mortos e uma centena de feridos – quando recolhiam ajuda humanitária
para a população da cidade síria de Kobani –, só fez acelerar mais esse
processo. Enquanto Erdogan responsabilizava o EI pelo massacre, os curdos
acusaram ele e Hakan Fidan, o chefe dos serviços de inteligência turcos (MIT),
de serem os verdadeiros responsáveis, utilizando “bandeira falsa”. Perguntavam
“por que essas ações sempre estão dirigidas à população civil e aos curdos”, e
nunca ao governo? Horas depois, numa grande armadilha organizada pelo regime,
centenas de ativistas de organizações de esquerda foram presos, e o mundo
voltou a virar de pernas pro ar: um atentado contra a esquerda está sendo usado
para agredir a esquerda. Algo já quase clássico.
Um complô?
Duas prioridades encabeçaram a
agenda de Erdogan: conter as forças curdas e derrubar Assad. Incluir o EI nesse
cenário é puro teatro, simplesmente para evitar mais críticas por patrocinar o
terrorismo jihadista. A China denuncia que os aeroportos turcos permitem a
entrada de milhares de pessoas da etnia uigur com passaportes turcos falsos, os
quais são logo enviados de volta à Síria.
Na realidade, Erdogan está
corrigindo seu “erro”, ao negociar com os curdos e permitir que entrem no jogo
democrático. Nunca imaginou que, sob a bandeira do Partido da Democracia do
Povo (PDP), as forças progressistas curdas e turcas se reuniram para lhe dar um
duro golpe nas eleições parlamentáres de junho passado, nas quais o PDP ganhou
80 vagas, 32 destinadas às mulheres – Deilak Ojalan, sobrinha do líder do PKK,
é uma delas. Erdogan só pode sentir ciúmes e raiva política do carismático
líder do partido, Selahattin Demirtas.
Os objetivos da “luta
antiterrorista” de Erdogan
1. Impor aos curdos uma guerra e
forçá-los a se esconder nas montanhas, para voltar a ser o único grande
protagonista da política turca. Um grupo guerrilheiro na montanha é menos
perigoso que um partido capaz de organizar greves gerais com milhões de
trabalhadores. Agora se sabe que, em 2013, Erdogan não buscava a paz com o PKK,
estava armando uma arapuca.
2. Evitar a união entre as duas
comarcas curdas sírias, Kobane e Yazira, ao longo de suas fronteiras. As
vitórias militares destes coincidiram com as conquistas políticas de seus
irmãos na Turquia. A “questão curda na Síria” foi o grande presente envenenado
de Assad ao seu colega turco. Tayyip Erdogan acredita estar em tempo de
destruí-los antes que Obama aplique o modelo iraquiano na Síria, formando uma
autonomia curda ou fazendo com que os curdos sejam convidados às conferências
sobre o futuro da Síria.
3. O presidente turco, irritado
pelo fornecimento de armas dos Estados Unidos para os curdos de Kobani pretende
envolver o ocidente em sua batalha pessoal, enquanto Israel aposta por um
Estado Curdo, rompendo os países grandes da região.
4. Exibindo uma postura
anticurda, Erdogan pode atrair o Partido Republicano do Povo, de tendência
kemalista, para formar um governo de coalizão, e não convocar novas eleições.
Mas Erdogan não é anticurdo. Tem ótimas relações com colegas da oligarquia
curda que governa a autonomia do Curdistão iraquiano. Seu problema é a luta de
classes: teve péssima sorte, porque os principais partidos curdos da Turquia e
da Síria são representantes dos trabalhadores.
5. O presidente turco tem
aumentado de forma progressiva as políticas de reislamização das instituições e
dos centros acadêmicos, como forma de conter o avanço da esquerda: contudo, fez
o mesmo que o Xá do Irã nos Anos 70, com resultados conhecidos.
6. Lançando bombas para todos os
lados, o líder turco pode criar uma imagem de “homem de ferro”, o campeão da
“luta antiterrorista”, neutralizando as críticas do poderoso movimento secreto
Gülen, que acompanha a perda de peso e prestígio da Turquia na região durante o
mandato de Erdogan. Recentemente, através do MIT, o presidente lançou uma
grande ofensiva contra centenas de policiais, juristas e agentes de
inteligência, acusando-os de gülista, e de formar “um governo paralelo”,
embora, na realidade, eles tenham sido os responsáveis por revelar grandes
casos de corrupção ligados à sua família e aos seus ministros.
7. Criar uma cortina de fumaça
sobre esses processos judiciais contra seu filho Balal e vários ministros,
pelos já citados casos de corrupção.
Erdogan seguirá utilizando os
jihadistas contra Damasco e também contra os curdos, apesar da “turquização” do
Estado Islâmico wahhabi, e de sua imparável crescimento nas regiões mais
subdesenvolvidas do país, se transformando num rival político para o “Irmão
Muçulmano” Tayyip Erdogan, representante da burguesia “liberal”.
A Turquia entra com tudo na
guerra contra a Síria na qual só pode ganhar uma crise econômica (para começar,
espantando o turismo) e milhões de refugiados, que se tornarão outro foco de
tensão social, desestabilizando seu próprio regime. Se escutam as vozes que
fizeram as ameaças dos grandes atentados nos mercados ou no metrô, se depararia
com a promessa de convulsionar o país, transformá-lo num Paquistão, em relação
a uma Síria afeganizada.
Estaria Washington empurrando seu
aliado turco para esse suicídio? O único país que se beneficiaria dessa
situação é Israel, que depois da desaparição programada do Iraque, da Síria e
da Líbia (e de um agonizante Egito e um acossado Irã) perderá outro grande competidor
regional.
*Nazanín Armanian é uma analista
iraniana, residente em Barcelona desde 1983, ano em que se exilou do país.
Licenciada em Ciências Políticas, ela dá aulas em cursos online da Universidade
de Barcelona. É colunista do diário online Publico.es.
Créditos da foto: wikimedia
commons
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