Morei na Itália em 92 e 93, em
pleno auge da operação Mãos Limpas. Presenciei seu resultado para a Itália. E a
Lava Jato, que resultado trará ao Brasil?
Helenita M. Sipahi / www.cartamaior.com.br
Essas duas imagens tem nomes
diferentes – intolerância e arrogância – e um suposto sobrenome comum –
justiça. A primeira com as próprias mãos e a segunda através de procedimento
legal (legítimo?). Entre elas paira, inconteste, uma terceira vítima, de
caráter civilizatório: a preservação universal dos direitos individuais, de
defesa legal e da integridade física, psicológica e moral.
Como chegamos a isto?
Antes de mais nada devemos
reconhecer, em que pese os extraordinários avanços sociais e de inclusão dos
três governos do Partido dos Trabalhadores, nunca antes promovidos por nenhum
outro na mesma escala, que várias infrações éticas tem sido atribuidas a
integrantes do partido, algumas comprovadas (em nada diferente das que
ocorreram em governos e partidos que lhes antecederam – a aparente diferença de
dimensão se deve ao fato de que os de agora são investigados com rigor e com
todos os holofotes ligados), além de erros na condução da política econômica,
cabíveis de urgentíssima correção.
Entretanto, desde a campanha
eleitoral e reeleição da Presidente da República em 2014, setores inconformados
com a derrota, alas conservadoras do Congresso e a quase totalidade da grande
mídia vem orquestrando uma campanha de demonização do Partido dos Trabalhadores
e do governo, ampliando diuturnamente a verdadeira extensão da crise econômica
e incutindo na sociedade um sentimento de ódio e intolerância. Político
conhecido, e nunca investigado, afirma que a Presidente se reelegeu com os
votos de pobres e de nordestinos; outro, diante da crise,diz que a Presidente
tem que sangrar, a mídia conclama sem pudor a classe média para manifestações e
panelaços contra a Presidente e faz vazamentos seletivos e convenientes da
operação Lava Jato...
No limite e em consequência, a
cultura de ódio e intolerância extrapola a área política, atinge valores
civilizatórios e aprofunda preconceitos raciais, de classe, gênero e opção
sexual, até religiosos (a garota espancada ao sair de um culto afro); o homem
negro linchado e outras tentativas de linchamento, repetidas agressões a
homosexuais, ataques digitais à apresentadora negra e, nos estádios, a
jogadores negros, achaques de ministros em hospitais, restaurantes e aeronaves.
Ontem mais um caso de linchamento, na favela da Rocinha no Rio!
No episódio recente de produção e
distribuição de adesivos pornográficos simulando o estupro da Presidente (crime
claro de incitação coletiva à violência e ameaça à integridade física e moral,
não só da Presidente, mas de todas as mulheres brasileiras), não vimos nenhuma
reação indignada da grande imprensa nem do próprio Congresso como instituição,
como se fosse tudo banal, apenas mais um ataque pessoal à Presidente. Um
inquérito, sigiloso, foi aberto mas coincidentemente neste caso nenhum
vazamento sobre o autor e financiadores...
Tudo, fruto e exemplos de extrema
intolerância, alguns beirando a barbárie.
E o homem branco chorando diante
das câmeras de TV?
Sou ex-presa política da década
de 70 e morei na Itália em 92 e 93, em pleno auge da operação Mãos Limpas –
conheço portanto os dois lados. Lá, o procurador Di Pietro (alter-ego do juíz
Sérgio Moro) também prendeu durante meses a fio dezenas e dezenas de figurões
entre empresários e políticos –
deputados, senadores, secretários, ministros e dois ex-primeiros
ministros (Giulio Andreotti e Bettino Craxi). Dos investigados, 12 se
suicidaram durante as investigações, sete enquanto eu estava lá, Andreotti foi
absolvido após 5 anos e Craxi morreu no exílio em 2000 sem ter cumprido a pena.
Di Pietro fundou um partido político, tendo apenas 3% dos votos nas eleições
que se seguiram.
A operação Mãos Limpas era
necessária? Qual foi o resultado para a Itália?
Claro que era necessária, não há
dúvida. Seguindo-se ao esfacelamento da antiga União Soviética surgiram
inúmeras denúncias de que políticos italianos, em especial do Partido
Comunista, mas não só eles, recebiam recursos da KGB
(o famoso ouro de Moscou) e
propinas de grandes empresas públicas e privadas, entre elas as do setor de
petróleo; nesta modalidade estariam incluídos parlamentares e dirigentes de
outros partidos – Partido Socialista, Democracia Cristã e outros, acusados de
receber doações irregulares para suas campanhas. Mais de 6.000 pessoas
investigadas, centenas e centenas presas e cerca de 1.200 condenadas.
Ironicamente, poucas ou quase nenhuma do Partido Comunista...
O que resultou da operação Mãos
Limpas para a Itália?
Independente dos acertos e erros
da operação, e da sua própria validade, o resultado que os analistas da época e
os de agora apontam como sendo o mais significativo foi o fim da primeira
república do pós-guerra – com importante desindustrialização do país na década
seguinte, privatização da estatal do petróleo, derrocada de todos os partidos
políticos (o PSI que ficou de pé nada tinha do original) e um sentimento difuso
de descrença e falta de engajamento da sociedade em relação à atividade política
– o vácuo que se seguiu facilitou o florescimento de partidos neofascistas e
xenófobos como a Liga Norte e o PdL (Povo da Liberdade) de Sílvio Berlusconi,
magnata das comunicações na Itália, o ex primeiro-ministro “bufo” que acaba de
ser condenado... por corrupção! Com a anomia que se instalou na década de 90 e
os escândalos da era Berlusconi, a Itália perdeu o protagonismo político que
sempre teve no pós-guerra e é hoje uma peça menor na comunidade européia, com
todas as consequências – 20 anos depois da operação Mãos Limpas ficou muito
mais pobre, com taxas de desemprego de 14%, 40% entre os jovens de 18 a 24
anos.
A operação Lava Jato é
necessária? Qual será o resultado para o Brasil?
Claro que é necessária, sem
dúvida. Há graves denúncias de corrupção e desvios que devem ser apurados e
punidos. A nossa maior empresa – orgulho nacional – foi espoliada por ação de
poucos, insisto poucos, altos funcionários da empresa, alguns réus confessos, e
políticos de todos os partidos, repito todos, receberam para suas campanhas
vultuosas doações de grandes empresa (regulares? irregulares? a esclarecer). Há
portanto que investigar e, se culpados, punir. Na semana passada, foram
divulgadas as primeiras condenações. Justas? Difícil avaliar a culpabilidade e
circunstâncias de cada um. É a palavra
do Juíz.
O que resultará da operação Lava
Jato para o Brasil?
Só o tempo dirá. Entretanto,
algumas comparações e perspectivas já devem nos colocar em alerta: a) em
relação à Petrobras, tramita no Congresso desde
março projeto do Sen. Serra que,
baseado nas denúncias e investigações da Lava Jato, pretende privatizar parte da exploração e
produção do pré-sal (um antigo compromisso seu, da campanha de 2010, com o
grupo petrolífero americano Chevron, desde a descoberta do pré-sal); b) o grau
de comprometimento financeiro das empreiteiras envolvidas na operação pode
levar algumas delas à insolvência e, por serem as maiores e mais especializadas
do país, prejudicar no futuro próximo os projetos de ampliação e desenvolvimento
da infraestrutura do próprio país; c) o cerco aos partidos políticos – com
honoráveis e explícitas exceções –
notadamente ao Partido dos Trabalhadores com a ajuda cotidiana da grande
imprensa, já leva a sociedade àquele clima de desesperança e descrença nos
agentes políticos e nas instituições.
Pode não sobrar pedra sobre pedra.
Não se questionam a validade nem
a oportunidade das operações Mãos Limpas e Lava Jato. O que se questiona são
métodos empregados, excessos e exposição midiáticos em ambas e resultados,
confirmados em uma e previsíveis na outra.
Aqui entra a imagem do homem
branco aos prantos frente às câmeras de TV.
Certamente o juíz Sergio Moro não
tem experiência de estar em prisão, como não tinha o procurador Di Pietro na
Itália. Nem sensibilidade para distinguir o estado de espírito e as
circunstâncias de acusados e réus políticos daquelas de acusados de crimes
comuns. Ou tem e se utiliza delas. A diferença pode parecer pequena (afinal uns
e outros seriam presos acusados criminalmente), mas não é:
Circunstâncias: entre os
primeiros não existia a figura do constrangimento ou da vergonha, só o medo –
em princípio eles eram as vítimas. Nossos pais e filhos, até netos, dos anos de
chumbo só tinham medo, por nós – não sofriam constrangimento moral entre
vizinhos, professores ou colegas de trabalho, pelo contrário, sentiam-se
orgulhosos da nossa coragem e idealismo, assim como nós (certos ou errados)
tínhamos até certo orgulho de nós mesmos, tão convictos que éramos das nossas
bandeiras por democracia e justiça social;
Entre os segundos existe
principalmente a vergonha, por eles e por suas famílias, até porque os crimes
dos quais são acusados estão associados culturalmente a desvios de caráter e
são, do ponto de vista moral, indefensáveis. Suas famílias se tornam assim
expostas a constrangimentos de toda ordem.
Será por isto que o homem branco
chorava diante da TV?
Delação: não recordo de delações
premiadas na operação italiana; se existiram, não foram na mesma proporção que
aqui. De qualquer forma, com prêmio ou sem prêmio, esta expressão me enoja;
quando acontece, forçada ou não, expõe e amplia exponencialmente desvios de
caráter já existentes e destrói os últimos resquícios de dignidade que ainda
existam no acusado. Tem sido o principal instrumento jurídico responsável pelo
enorme sucesso do “meritíssimo” - explorado e estimulado por pressões
psicológicas continuadas, longo tempo de confinamento preventivo e oferta de
vantagens, como qualquer “lei do Gerson” - uma espécie de tortura sofisticada
do século 21, segundo Ives Gandra Martins.
Que valores éticos estão em jogo
no tabuleiro da justiça nos dias de hoje?
Historicamente, que exemplos
deixaremos para nossas futuras gerações?!
Os sobreviventes políticos saíram
inteiros dos tempos da Ditadura, apesar dela;
Outros presos, culpados ou não, e
mesmo condenados, podem vir a superar suas culpas, medos e constrangimentos e
sair inteiros de suas tragédias pessoais; os homens das delações premiadas
serão para sempre só a sombra de si mesmos...
Ninguém dá nome de
rua a Calabar.
Exposição midiática:
investigações, denúncias e julgamentos deveriam ser fenômenos naturais em
qualquer sociedade civilizada – são regras do Direito.
O que se questiona é o abuso de
exposição na mídia de investigados e julgadores, transformando a priori os
primeiros em condenados e os segundos em heróis nacionais – desde o chamado
mensalão. A operação Mãos Limpas na Itália foi semelhante e lá como cá era a
mídia “oficial” que comandava o show, a mídia do Berlusconi que depois assumiu
o poder... mas ali havia, pelo menos, uma diferença fundamental: a
imparcialidade. Todos os partidos e agentes citados ou denunciados recebiam o
mesmo tratamento – da imprensa e da justiça. Na Lava Jato e em outras demandas
judiciais, não – “uns são mais iguais que os outros” como no ditado popular. Se
assim não fosse, por que as doações de campanha para candidatos do PT são em
princípio criminosas e as de outros partidos, p.ex. do PSDB, sequer constam da
lista de investigações? Por que os vazamentos de dados sigilosos são sempre
seletivos, convenientes, permitidos e nunca contestados? Por que uma denúncia
sem provas na revista Época se transforma imediatamente em investigação de
tráfico internacional de influência do ex-presidente Lula e as tratativas e
conferências internacionais do outro ex-presidente são consideradas “do bem” ?
Por que a aquisição do famoso apartamento de 11 milhões de euros em Paris
(entrevista a Mônica Bergamo, 2011) à época das privatizações, nunca foi
investigada? Se isto não é seletivo...
Por fim, analisemos as
consequências dessas operações, para os envolvidos: na Mãos Limpas foram
investigadas 6.000 pessoas e condenadas 1.200; as demais 4.800 foram excluídas
ou absolvidas. Mas antes disto – dado o arrogante espetáculo midiático –
tiveram suas vidas expostas e devassadas e suas reputações destruídas. Quem
garante que os 12 suicidas não estariam entre os absolvidos se estivessem
vivos? Suicídio nestes casos nem sempre é confissão de culpa; pode ser apenas
desespero e impotência diante da violência sofrida.
Se eu fosse o homem branco
(qualquer que fosse minha
culpa, ou nenhuma) eu também
choraria frente às câmeras de TV. O
homem negro, nu, sequer teve tempo de chorar...
É o Brasil em que estamos nos
transformando – intolerante, arrogante e cruel.
Definitivamente, não foi este o
país com que eu sonhei!
Créditos da foto: Ricardo
Stuckert/PR, Agência Brasil
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