Do Consultor Jurídico / http://jornalggn.com.br/
Entrevista concedida pelo
semiólogo Umberto Eco à jornalista Ilze Scamparini, para o programa Milênio —
um programa de entrevistas, que vai ao ar pelo canal de televisão por
assinatura GloboNews às 23h30 de segunda-feira com repetições às terças-feiras
(17h30), quartas-feiras (15h30), quintas-feiras (6h30) e domingos (14h05).
Umberto Eco é um italiano que
olha a realidade com óculos especiais. Defini-lo como escritor e crítico
literário seria muito pouco. Também seria insuficiente nominá-lo como
linguista, esse piemontês de Alexandria, de fama internacional é também
filósofo e um ensaísta vivaz. Semiólogo, usa a ciência dos símbolos como um
esquema mental. Grande apaixonado pela Idade Média, produziu obras como O Nome
da Rosa, de 1980, um suspense filosófico ambientado no ano de 1327, que virou
best seller e inspirou um filme com Sean Connery. Estudioso do fenômeno da
comunicação, foi um dos primeiros por aqui a falar de linguagem televisiva.
Acompanhou o nascimento da televisão italiana e do pensamento americano sobre a
TV. Um princípio fundamental da sua narrativa é a suspeita, a desconfiança no
que se diz. Umberto Eco põe em discussão qualquer interpretação sobre os fatos.
Na sua casa em Milão ele nos mostrou a edição brasileira de Número Zero, o seu
último livro que cita histórias da época contemporânea para falar de chantagem,
intrigas e de reputações enlameadas dentro da redação de um jornal.
Ilze Scamparini — O senhor acabou
de lançar uma espécie de manual do mau jornalismo. Criou uma redação de
pretensiosos. Essa ideia vem de onde?
Umberto Eco — Há pelo menos, 30
anos que escrevo artigos e ensaios sobre os vícios do jornalismo. Uma visão de
dentro, porque também escrevo em um jornal. Então, é um tema familiar para mim.
Ilze Scamparini — Imagino que o
senhor não tenha feito essas observações só na Itália?
Umberto Eco — A minha é uma
redação de jornalistas fracassados. E, nesse caso, um exemplo de péssimo
jornalismo. Mas, alguns diretores de jornal aqui na Itália debateram o meu
livro e disseram: “Sim, mas alguns desses vícios são também do grande
jornalismo”. E são no mundo inteiro por uma série de razões. De todo o modo, o
jornalismo vive uma crise desde o fim de 1953. Pelo menos, na Itália. Nos
Estados Unidos, um pouco antes, por causa do advento da televisão. Antigamente,
os jornais diziam de manhã o que havia acontecido na noite anterior. Ou seja,
diziam de manhã aquilo que todo mundo já sabia pela televisão. Isso poderia ter
sinalizado o desaparecimento dos jornais como objeto, como instituição. Mas, os
jornais precisaram aumentar o número de páginas para acolher publicidade, etc.
Quando eu era pequeno, os jornais tinham quatro páginas. Agora, têm sessenta.
Então, o que faz um jornal? Ou pode fazer um aprofundamento, o que exige uma
redação forte, uma preparação de investigações. Ou fofocas. Como os vespertinos
ingleses que não fazem outra coisa a não ser falar da família real. Em alguns
casos, como acontece no meu jornal, o sensacionalismo e a chantagem. Quando eu
trabalhava em redação, existia um personagem na Itália se chamava Pecorelli.
Ele tinha uma agência de notícia. Ele não fazia um jornal, fazia um boletim de
notícias. Não era vendido em banca. Mas acabava nas escrivaninhas de todas as
pessoas importantes. Então, era um sistema de chantagem porque apresentava
algumas notícias que ele poderia vir a divulgar em seguida.
Ilze Scamparini — E por isso ele
foi assassinado?
Umberto Eco — Foi assassinado.
Então, podemos dizer que devia incomodar. Os jornais de chantagem, do tipo que
na Itália se chama “máquina de lama”, existem. Até mesmo aqueles jornais que se
consideram nacionais e bastante sérios. Nesse caso, coloquei em evidência este
problema que é comum a vários tipos de jornalismo. Por exemplo, a tentativa do
jornalista de não manifestar opinião, o que é muito praticado. A grosso modo,
tem-se um fato, descreve-se o fato. Depois dá-se, entre aspas, a opinião de
alguém que passou por ali. Ou seja, dá-se a impressão de que opinião é separada
do fato. Mas quem escolheu a pessoa que dá a opinião?
Ilze Scamparini — Essa “máquina
de lama”... Se eu não me engano, até o senhor foi vítima dessa “máquina de
lama” quando foi a Jerusalém e fez a famosa declaração, não?
Umberto Eco — Sim, mas aquela era
só uma máquina de estupidez. Porque teve efeito apenas sobre uma pequena
discussão. Melhor, o que é típico da “máquina de lama” é que para desacreditar
alguém, não é necessário acusá-lo de ladrão, assassino. Basta dizer as coisas
que são realmente verdade e que são normais, mas que jogam uma sombra de
suspeição. Então, um jornal que não gostava de mim publicou um texto assim:
“Ontem, Umberto Eco foi visto em um restaurante chinês com um desconhecido,
enquanto comiam com palitinhos.” Não tem nada de mal estar num restaurante
chinês. O personagem era desconhecido para eles e não para mim. Era um amigo
meu. Mas imagine que, a não ser em Milão, Roma ou Bolonha, em suma, todas as
grandes cidades onde existem restaurantes chineses, no resto do país não tem.
Então, para as pessoas, a ideia de alguém com um desconhecido usando palitinhos
em vez de comer massa com grafo, como fazem as pessoas normais, já transforma
tudo em Chinatown, um filme de Polanski. É uma forma de lançar uma sombra de
suspeição. Essas são técnicas refinadas da “máquina de lama”.
Ilze Scamparini — Para o senhor
quais são os danos mais comuns e mais nefastos do mau jornalismo?
Umberto Eco — São infinitos. A
senhora definiu o meu romance como um manual. E, na verdade, chegaram a propor
usá-lo como manual nas escolas Jornalismo, para explicar o que não deve ser feito.
E os espanhóis querem mesmo trabalhar nesse sentido. Pense, por exemplo, nas
práticas que, aparentemente, são corretas, a edição. Assim, um jovem mata a
namorada em Belo Horizonte. Um outro mata a mulher em São Paulo. Um outro mata
a amante em Salvador. São três fatos estatisticamente, num país grande como o
Brasil, estatisticamente bem normais. Se todos são postos na mesma página,
cria-se um alarme. Se, além disso, todas essas pessoas são, digamos, da mesma
cor, são negros. Então, cria-se, de fato, uma perseguição racial. Simplesmente
colocando as notícias na mesma página. Então, são técnicas que, algumas vezes,
estão arraigadas. Porque vêm naturalmente para os jornalistas. Três notícias
bem parecidas são postas uma ao lado da outra. Mas se cinco acidentes de carro
são postos numa mesma página, quer dizer que tem alguma coisa que não funciona
no motor dos carros. Este é um elemento mínimo. Mas onde a gente vê como o
jornalismo pode ser perigoso mesmo quando se trabalha corretamente.
Ilze Scamparini — Mas a política
dentro da redação. Isso também pode ser uma coisa nefasta? A política, o
jornalismo contaminado da política partidária.
Umberto Eco — Só existe um tipo
de jornal que não é contaminado. É o jornal de partido. Porque se sabe que é um
jornal de partido, então se sabe como ler e fazer a filtragem das informações.
É claro que cada jornal tem pressão política de todos os tipos. Vai depender de
como eles declaram isso. Os grandes jornais americanos, quando tem eleição para
presidente, dizem: “Nós apoiamos este.” Ok, estamos entendidos. Na Itália, o
problema trágico é que não existem jornais independentes. Todos são, de algum
modo, ligados a bancos, indústria etc. Isso é muito grave. Não é tanto a
política. Um jornal deve fazer política. Se é um jornal honesto, deixa claro
qual é a posição política dele.
Ilze Scamparini — Os mecanismos
revelados pelo livro poderiam ser aplicados em outros países?
Umberto Eco — Cabe aos outros
países decidirem.
Ilze Scamparini — O empresário
que patrocina o jornal que não será nunca publicado representa alguém
especificamente? Sei que é uma pergunta que fazem bastante.
Umberto Eco — É uma pergunta que
todos me fazem. É Berlusconi? Este comendador Vimercati. Existem tantos
senhores Vimercati em Itália e em toda parte. Quem é Murdoch? Quem são os donos
de jornais, etc. Então, até Vimercati tende a ser um personagem universal.
Ilze Scamparini — Já que os fatos
se ligam também, o que significa Silvio Berlusconi na história italiana?
Umberto Eco — Atualmente, não
acho que Berlusconi tenha ainda um grande futuro político, por causa da idade,
por que a situação é diferente. Ele foi ignorado. Encontrou gente mais esperta
que ele. O presidente Renzi é mais esperto que Berlusconi. E ele achava que era
mais esperto. Berlusconi representou por vinte anos mais um personagem dotado,
realmente, de fascínio para muita gente. É um homem e grande simpatia. De
grande poder econômico. E como tinha o controle dos meios de comunicação de
massa pode convencer um país inteiro, por quase vinte anos, de um programa
inexistente: que ele deveria livrar a Itália do comunismo. Quando o comunismo
já havia se liberado sozinho. E já havia acabado. Então, Berlusconi foi um
produto típico da sociedade de massa. Representa uma nova forma de populismo,
de uma política que tem apelo direto com o povo, ignorando o Parlamento. E
sobre populismo, a América Latina tem muito a nos ensinar.
Ilze Scamparini — Uma cultura
que, no fim das contas, ele produziu, ainda está em vigor.
Umberto Eco — Mas, certamente, o
eleitorado de Berlusconi é ainda de senhores entre cinquenta e noventa anos,
principalmente, os que veem televisão.
Ilze Scamparini — O senhor
escreveu O Nome da Rosa há 35 anos. Até hoje, o livro é um mito absoluto na
literatura e muito fundamental na sua vida de escritor. De que maneira aquele
romance influenciou sua narrativa desde então?
Umberto Eco — Pelo simples fato
de que, até aquele momento, por exemplo, tem o fato de que eu nunca havia
escrito um romance. Costumo brincar que todos os meus livros anteriores tinham
uma sinfonia de Mahler, uma obra de Charlie Parker. Então, a cada vez, a gente
procura encontrar novas soluções estilísticas, etc. Simplesmente, me aconteceu
a desgraça de ter um grande sucesso com o meu primeiro livro. Sorte seria se o
grande sucesso tivesse acontecido no último livro. Tendo sucesso no primeiro
livro, e citei Gárcia Marquez, ele pode ter escrito tudo o que quis depois, mas
as pessoas só lembravam de Cem Anos de Solidão.
Ilze Scamparini — O senhor o
enxerga como uma coisa negativa?
Umberto Eco — Sim, porque se eu
precisasse escolher entre todos os meus romances qual deveria salvar e jogar
fora os outros, escolheria o Pêndulo de Foucault. Essa é uma opinião pessoal.
De leitor.
Ilze Scamparini — O Nome da Rosa
tem mais de 15 milhões de cópias vendidas. O senhor sabe [o número] ao certo?
Umberto Eco — Não se sabe. Alguns
dizem quinze. Por quê? Porque a metade do mundo não tinha, naquela época, um
acordo para direitos autorais. Na China, podem ter impresso uma centena ou um
milhão. Não se sabe. Todo o mundo oriental. Mais da metade são edições piratas.
Não pagavam os direitos. Toda a Rússia, o mundo soviético. Não existia um
acordo. Então, não se sabia quanto eles tinham vendido. Não pagaram os
direitos. Então, não se sabe.
Ilze Scamparini — Um personagem
do seu livro Número Zero diz que todos mentem, os jornais, a TV...
Umberto Eco — Sempre o
Bragaddocio paranoico.
Ilze Scamparini — Bragaddocio,
exatamente. Os intelectuais também mentem?
Umberto Eco — Essa é a opinião de
Bragaddocio.
Ilze Scamparini — Os fenômenos
atuais como imigração, terrorismo, racismo, são, volta e meia, vítimas de
informações erradas?
Umberto Eco — Naturalmente. Todo
tipo de racismo, fundamentalismo, quase sempre, se baseia em afirmações falsas.
Pense, na realidade, Hitler matou 6 milhões de judeus levando a sério o antigo
Protocolo dos Sábios de Sião. É natural que toda forma de crime na história
nasce da desinformação orientada.
Ilze Scamparini — Os meios de
comunicação ao mesmo tempo que podem combater a censura e defender a democracia
podem também produzir coisas danosas a sociedade. O que o senhor acha?
Umberto Eco — É como todas as
coisas. Os automóveis permitem fazer um monte de coisas boas, mas também
explodem nas estradas. Pense na internet, cheia de defeitos. Mas, alguém disse
que, se no tempo de Hitler existisse internet, a tragédia não seria possível
porque todo o mundo teria tomado conhecimento em cinco minutos. É preciso, como
sempre, ver os aspectos positivos e negativos. Eu li uma vez que os mecânicos
franceses fizeram uma manifestação contra as leis para diminuir os acidentes na
estrada... Com menos acidentes, eles trabalham menos.
Ilze Scamparini — O senhor
desencadeou uma forte reação quando foi duro contra uma parte da internet.
Umberto Eco — É dar muita
importância a uma coisa óbvia. É ou não verdade que no mundo existem muitos
imbecis? Me parece que sim. Agora, podemos discutir se são a maioria ou a
minoria. Mas existem muitos. No momento em que a internet permite que todos
falem, permite que um grande número de imbecis fale. Então, é preciso também
saber criticar aquilo que está na rede e pronto. Acho que quem protestou foram
eles, os imbecis.
Ilze Scamparini — A paixão pela
Idade Média passou ou ainda vai dar frutos?
Umberto Eco — Tanto que foram
publicados há dois anos todos os meus escritos sobre a idade média que chegaram
a 1.500 páginas. Foi sempre o período que mais me interessou. Se ainda dará
frutos, eu não sei. Como o que vou trabalhar nos próximos anos ou se ainda
estarei vivo nos próximos anos. Mas, de qualquer forma, já separei uma ótima
série de estudo.
Ilze Scamparini — O senhor
escreveu uma bela homenagem para Haroldo de Campos quando ele morreu. Que
relação o senhor teve com os poetas concretistas?
Umberto Eco — Quando a gente nem
se conhecia ainda, eles se ocupavam das mesmas coisas que eu e outros colegas,
a semiótica de Peirce e outras coisas. Por isso, quando cheguei pela primeira
vez ao Brasil... Além disso, através de um colóquio , quem me convidou foi o
Décio Pignatari, eu imediatamente me encontrei com Haroldo e Augusto de Campos,
em todo aquele ambiente. Havia um lugar que se chamava João Sebastião Bar.
Então, me tornei muito amigo de Haroldo. Não é só isso. Eu tinha publicado...
Eu fui ao Brasil acho que em 1963. Eu havia publicado, em 1962, Obra Aberta. E
Haroldo me mostrou um artigo que ele havia escrito antes de 1962, onde ele
falava da Obra Aberta. Nos tornamos, vamos dizer assim, irmãos. Com muitas
ideias em comum. Logo, nos mantivemos sempre em contato. E então, através
deles, todo o grupo se manteve, conheci um pouco. E assim, a chamada vanguarda
brasileira e o mestre deles Oswald de Andrade, etc. E considero, sobretudo,
Haroldo de Campos um ótimo tradutor. Ele traduziu “Dante” de uma forma, em
português do brasileiro que é, realmente sublime. E ele era uma grande figura.
Ilze Scamparini — O senhor
participou ativamente do Grupo 63, neovanguardista que negava, violentamente, a
trama na literatura. Mas o que aconteceu com a sua narrativa, que recupera a
centralidade da trama?
Umberto Eco — Aconteceu que já em
1965 — ou seja, o grupo se chamava 63 porque fez a primeira reunião em 1963.
Mas já em 1965, teve um encontro onde dissemos que tudo bem, que era preciso
retornar à narrativa. Uma outra narrativa, diferente daquela do tempo de
Robbe-Grillet, o novo romance e toda essa forma nova de narrativa. A verdade é
que aquilo que mais tarde foi chamado de Modernismo chegou à página branca, ao
quadro monocromático, à cena vazia, ao silêncio musical. Ou seja, alcançou um
ponto de destruição da linguagem anterior...
Ilze Scamparini — Que era
necessário voltar atrás.
Umberto Eco — Ou então, não se
poderia. Depois do quadro branco, não se podia fazer nada a mais ou a menos.
Então, houve um retorno, no sentido de revisitar as formas tradicionais e modo
irônico, meta-linguagem, e tantas coisas sobre as quais podemos falar. Eu
acredito que não poderia ter escrito os meus romances se não tivesse passado
pela experiência do Grupo 63.
Ilze Scamparini — O senhor
afirmou que Tomás de Aquino, milagrosamente, o ajudou a curar-se da fé. O que
restas, professor, apenas a fé no homem?
Umberto Eco — Não disse isso...
Ilze Scamparini — Não? É um outro
caso de mau jornalismo?
Umberto Eco — Eu disse que,
gradativamente, comecei os estudos de São Tomás enquanto era um crente e
terminei porque já estava abandonando a fé. Não porque havia sido inspirado por
São Tomás. Mas também porque, mesmo quando se faz um trabalho histórico,
objetivo, sobre este personagem, projetei o mundo dele à distância para
observar com o olhar crítico da história. Não era mais o meu mundo. Era o mundo
dele. Mas não é culpa dele. Estive há pouco tempo no quarto onde ele morreu, em
Fossanova. Participei de um congresso sobre a vida de São Tomás e continuo
fascinado pelo gorducho.
Ilze Scamparini — E como o
senhor, um autor de um estudo sobre Tomás de Aquino, estudioso dos meios de
comunicação, vê um Papa comunicador como Francisco?
Umberto Eco — Bem, eu o vejo como
extrema simpatia. Não por acaso é um jesuíta sul-americano. E não é argentino,
é paraguaio. Eram os jesuítas das missões, dos seiscentos, que armaram os
índios contra os espanhóis. Para mim, é assim. Ele veio deste mundo ali. Não
dos jesuítas reacionários franceses dos oitocentos. Mas dos jesuítas um pouco
revolucionários, paraguaios, dos seiscentos. E, então, assim nasce esse
personagem bastante singular.
Ilze Scamparini — Um papa um
pouco laico, não?
Umberto Eco — Em suma...
Ilze Scamparini — Mais que os
outros...
Umberto Eco — Ele não tem uma
visão de talibã.
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