Dilma ficou sozinha na linha de
tiro dos endinheirados. E recuou da CPMF. O governo trata dilemas históricos
como se fossem problemas contábeis.
por: Saul Leblon / www.cartamaior.com.br
É na crise que a distribuição da
riqueza adquire transparência transformadora na vida de uma sociedade.
Esse é o momento vivido hoje pelo
Brasil.
Será desastroso não saber
enxerga-lo.
Transformar essa transparência em
um engajamento político capaz de destravar o Rubicão do desevolvimento, é o
desafio que se impõe ao campo progressista nesse momento.
Não há muito tempo a perder.
A marcha desastrosa da recessão
evidencia o acirramento da luta de classe dissimulado na chave do ‘ajuste’
fiscal.
O recuo do governo em relação à
CPMF, a Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira, conhecida como ‘
imposto do cheque’, resume em ponto pequeno toda a nitroglicerina armazenada
nessa encruzilhada histórica.
É inútil dar ao extraordinário um
tratamento de rotina.
O governo esqueceu de mobilizar a
fila do SUS em defesa da CPMF.
Tratou como esparadrapo contábil
um conflito de interesses que condensa em ponto pequeno a dimensão distributiva
dos impasses que paralisam a nação.
Na estimativa do próprio
ministério da Fazenda, a nova CPMF poderia gerar uma arrecadação da ordem de R$
80 bi.
Portanto, superior à meta
anterior do ‘ajuste’ fiscal fracassado, de R$ 66 bi.
O que remete à pergunta óbvia.
Por que não se começou pela CPMF,
em janeiro, quando o fôlego político era maior, ampliando o espaço para uma
revisão negociada e gradativa do motor do crescimento?
A retomada da CPMF em meio à
crispação atual só teria viabilidade precedida de um amplo debate com as forças
sociais.
O elevado potencial educativo
desse tributo poderia (pode?) gerar o discernimento social indispensável a uma
reordenação econômica alternativa ao arrocho.
O recuo desgastante deste sábado
evidenciou mais uma vez o erro de encaminhamento que pode ser resumido em uma
constataçao: o governo ainda supõe existir uma solução genuinamente econômica
para a crise que consome o país.
Não há.
E Brasília estourou o limite de
crédito para errar no método.
Há uma chance de consertar o
estrago?
Talvez.
Desde que o recuo seja
transformado em ofensiva de comunicação com a sociedade e de negociação com
seus distintos segmentos.
O que havia de tão especial na
CPMF para isso?
A questão tributária condensa uma
boa parte dos desafios que imobilizam o país e o Estado brasileiro.
A CPMF reúne de forma ostensiva
as duas pontas do que está em jogo.
De um lado, a carência de
recursos para um salto de abrangência e qualidade nos serviços essenciais e na
infraestrutura.
De outro, a natureza parasitária
de um pedaço da elite, que encara o país como um substrato a ser fagocitado, e
resiste em assumir responsabilidades compartilhadas.
Sem as quais não existe
sociedade, futuro e nem desenvolvimento.
A rejeição metabólica em pagar
imposto é um sintoma desse divórcio de quem já montou apartamento Miami e
transferiu o saldo para o HSBC suíço...
Vencer a guerra da opinião
pública hoje no Brasil passa por fazer as perguntas que o conservadorismo não
pode responder sem se autodenunciar.
A pergunta que a CPMF coloca para
a sociedade e que o governo não soube explicitar tem a contundência de um despertador
de quartel.
Numa intrincada transição de
ciclo de desenvolvimento, como a atual, a sociedade deve privilegiar a saúde da
população, ou o privilégio fiscal da riqueza financeira?
Curto e grosso: a fila do SUS ou
a CPMF?
Macas nos corredores, ou fim do
sultanato rentista incrustrado na nação?
Não faltam argumentos a quem
quiser promover o discernimento do nosso tempo.
Bancos pagam menos impostos no
Brasil que o conjunto dos assalariados.
Aplicações financeiras mantidas
por dois anos pagam 15% sem qualquer progressividade.
Lucros e dividendos recebidos por
pessoa física gozam de isenção fiscal desde 1996, gentileza concedida pelo
governo do PSDB aos endinheirados.
Tem muito mais.
Artimanhas contábeis permitem que
um banco lance o pagamento de dividendos dissimulados em despesa de juros sobre
o capital próprio.
Não pagam imposto com essa
artimanha. E o acionista beneficiado paga só 15%.
O imposto sobre o patrimônio dos
ricos contribui com menos de 1% do PIB na composição da receita total do Estado
brasileiro.
Estamos falando da vida leve de
gente que compõe um circuito pesado.
Aos fatos.
O 15º relatório do BCG, Global
Wealth 2015: Winning the Growth Game, aponta que, no ano passado, o Brasil,
possuía US$ 1,4 trilhão em riqueza privada, à frente do México (US$ 1,1
trilhão) e Chile (US$ 4 bilhões). ]
Até 2019, ou seja, ao final do
governo Dilma –tudo o mais inalterado no sultanato rentista-- estima-se que a fortuna financeira atingirá
US$ 2,9 trilhões (maior que o PIB brasileiro do ano passado, US$2,2 trilhões).
Só nas contas dos especiais no
país , os private banking daqui –sem
contar lá fora-- o total das aplicações
no final do semestre passado era de R$ 694 bilhões (dados do insuspeito jornal
Valor de 28-08-2015).
Ou seja, mais de dez vezes a
economia original prevista pelo arrocho fracassado de Joaquim Levy.
A expectativa dos managers do
rentismo é de que essa piscina de Tio Patinhas chegue ao final de dezembro com
uma cota entre 12% e 15% superior a atual.
Como?
Sem colocar nem um dedo do pé na
atividade produtiva. E gozando dos juros, das benesses, isensões e mimos
fiscais sabidos.
As fronteiras do sultanato podem
ser ainda maiores.
Os dados considerados referem-se
à contabilidade das operações financeiros sabidas e declaradas.
Embora não declarado, é sabido no
entanto que o Brasil é proeminente nos rankings de sonegação urbi et orbi.
Um deles, o Tax Justice Network,
situa o país como vice campeão mundial, atrás apenas da Rússia, respectivamente
com 13,4% e 14,2% do PIB sonegados anualmente aos fundos públicos que financiam
o presente e o futuro da sociedade.
Cálculos do Sindicato Nacional
dos Procuradores da Fazenda Nacional (Sinprofaz) mostram que só no primeiro
semestre de 2015, R$ 320 bilhões teriam
sido sonegados no país.
Mais de R$ 1,1 trilhão seria a
soma das dívidas tributárias acumuladas.
A maior fatia – R$ 723,3 bilhões
– envolve grandes devedores: empresas que juntas representam menos de 1% das
pessoas jurídicas registradas no Brasil, diz o Sinprofaz.
Assim por diante.
E com um agravante dramático.
Nem mesmo o que se consegue
arrecadar efetivamente é canalizado de fato à redução dos abismos sociais e ao
desenvolvimento produtivo.
Filtros de classe se impõem pelo
caminho
A dívida pública é o principal
deles.
Ela funciona como uma espécie de
reforço na regressividade do sistema fiscal brasileiro.
Assemelha-se a um enforcador que
subordina o princípio da solidariedade à primazia rentista.
O mecanismo ‘autossustentável’
ganhou seu upgrade com a ascensão da agenda neoliberal que privilegiou o Estado
mínimo em todo o mundo.
Em vez de arrecadar, a lógica do
mainstrem recomenda isentar os ricos – para que eles se sintam encorajados a
investir...
Sem espaço político para taxar o
sultanato rentista --como se viu mais uma vez agora, com o cerco em torno da
CPMF, o governanante é levado a compensar a anemia tributária com endividamento
público.
Toma emprestado e paga juros por
aquilo que deveria arrecadar taxando heranças, operações financeiras,
dividendos, fortunas, remessas, etc.
A dívida cresce.
Engessa o futuro do desenvolvimento.
Eleva a dependência em relação ao
mercado financeiro.
É uma corrida para frente
infernal.
Quando a economia desacelera e a
receita cai, o pedal trava e o insustentável explode no colo do Estado impondo
escolhas difíceis.
Esse é o momento em que se
encontra o Brasil.
O imenso piquete de engorda do
capital rentista representado pela dívida pública já consome 7,5% do PIB em
juros.
Deve bater em 8% até o final do
ano, graças a uma Selic generosa de 14,25% -- a taxa de juro mais alta do
mundo.
Essa singularidade faz do Brasil
uma excrescência financeira.
Um paraíso de bombeamento fiscal
de perversidade jamais vista em nenhum outro lugar do planeta.
Nem mesmo em economias
reconhecidamente asfixiadas por uma relação dívida pública/PIB duas ou três
vezes superior à brasileira, regstra-se deslocamento de riqueza semelhante aos
rentistas.
Casos de Espanha, Portugal e
Grécia, por exempo, em que o total do juro pago equivale, respectivamente, a
2,5%, 4% e 4,5% do PIB.
O sultanato brasileiro –do qual
fazem parte também bancos, empresas etc- reúne pouco mais que 71 mil pessoas,
segundo o Ipea.
A renda mensal é superior a 160
salários mínimos.
Essa ínfima parcela de 0,05% da
população controla 14% da renda total do país.
E detém quase 23% da riqueza
financeira (ações, moedas, aplicações, títulos públicos etc)
Aspas para o jornal Valor de
10-08-2015:
‘As pessoas mais ricas do país,
que ganham mensalmente mais de 160 salários mínimos, pagam muito pouco imposto
de renda. Os dados divulgados no mês passado pela Receita Federal, em sua
página da internet, mostram que esse grupo de cidadãos paga ao leão apenas
6,51% de sua renda total.’
Dito de modo ainda mais claro: o
píncaro da riqueza brasileira tem 65,8% do total de seus rendimentos isentos.
É a serviço desse sultanato que o
jornalismo isento, o PSDB, os cunhas, mirians, sardenbergs e assemelhados abriram
fogo cerrado contra o governo, obrigando-o a retroceder no propósito de taxar
esse caudal obsceno com uma aliquota de 0,38% sobre operações financeiras.
É esse o teor explosivamente
pedagógico da CPMF.
O recuo avulta seu paradoxo
quando se verifica quem de fato foi derrotado do outro lado.
O SUS, o maior sistema público de
cobertura universal de saúde do mundo. Um dos maiores trunfos da luta pela
construção de uma demcracia social no país.
Criado pela Constituição de 1988,
hoje ele atende a 75% da população brasileira.
O médico e ex-ministro da Saúde,
Adib Jatene (1929-2014), criador da CPMF, que morreu defendendo o tributo,
enchia o peito de orgulho quando falava do SUS:
‘Anualmente, o SUS interna 11
milhões de pessoas, faz 3 milhões de partos, 400 milhões de consultas. Nós
erradicamos a poliomielite, o sarampo, a rubéola. Nós vacinamos mais do que
qualquer país do mundo. Temos um programa de combate à Aids que é referência
internacional. Fazemos hemodiálise para uma quantidade brutal de pessoas.
Cirurgias complexas. Os transplantes de fígado feitos no Hospital Albert
Einstein é o SUS que paga. Oncologia, medicamentos que os planos de saúde não
cobrem... É um trabalho tão grande, que a população que pode (financeiramente)
deveria vir ajudar espontaneamente, e não obrigada por tributos’.
O gigante, porém, soçobra.
Dos quatro mil procedimentos
hospitares incluídos hoje na lista do SUS, 1500 estão com tabelas de
remuneração gritantemente defasadas.
Consultas de média especialidade,
um gargalo histórico do sistema, estão sendo acudidas pelo exitoso programa
‘Mais Médicos’.
Mas o funil dos exames e
cirurgias trava a engrenagem e assume contornos de uma bola de neve
insustentável.
Um dado resume todos os demais
nessa equação: o gasto per capita ano com saúde no Brasil é de U$S 483; na
Inglaterra, por exemplo, é de US$ 3 mil.
Que o governo tenha perdido a
guerra da CPMF para uma realidade numérica tão exclamativa, que reúne, em uma
margem, 0,05 da população detentora de 23% da riqueza financeira, isenta em
65,8% dos rendimentos; e de outro, um sistema de saúde que atende 150 milhões
de brasileiros, mas se debate com déficit de recursos a ponto de manter uma
defasagem de 90% no valor pago pelo tratamento de uma pneumonia, e ter fechado
15 mil leitos nos últimos cinco anos, é merecedor de reflexão.
Parece evidente que há um
problema no GPS político do governo.
Que o leva insistentemente a
tratar dilemas históricos como se fossem problemas contábeis.
Dando com o nariz na porta de
quem não quer ouvi-lo.
E a negligenciar aqueles que de
fato podem ajudá-lo a repactuar os rumos da economia e da nação.
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