A oposição está muito bem representada
por um ministro que com a proteção da toga faz do STF seu próprio palanque
politico.
Roberto Amaral, em seu site. / www.cartamaior.com.br
Ao sentar-se em cima do processo e
impedir conclusão do julgamento quando a decisão era conhecida, Gilmar Mendes
conspirava contra os esforços do TSE e do STF de zelar pela ética na política
Finalmente, teve fim a chicana imposta
ao Supremo Tribunal Federal pelo líder da oposição naquela Corte, o ministro
Gilmar Mendes.
Relembro.
Com o recurso do ‘pedido de vista’, o
inefável ministro reteve por nada menos que um ano e cinco meses (posto que
desde 2 de abril de 2014) os autos do julgamento da Ação Direta de
Inconstitucionalidade (ADI) interposta pelo Conselho Federal da Ordem dos
Advogados do Brasil-OAB contra dispositivos da legislação eleitoral ordinária
permissivos do financiamento empresarial das eleições.
Mas não se tratava, este, de um ‘pedido de
vista’ qualquer. Se era e é injustificável o tempo durante o qual o julgamento
ficou sobrestado, mais inexplicável é o fato de ser apresentado quando o
julgamento estava objetivamente concluído, a saber, quando, em colégio de onze
ministros, a votação da ADI contava 6 a 1 (seis votos a favor da decretação da
inconstitucionalidade do financiamento privado da política), ou seja, quando já
estava definida a causa.
Por que então o pedido de vista?
Explique-se o ministro, e explique
porque reteve por um ano e cinco meses o processo em seu gabinete, impedindo,
assim, a proclamação do direito.
Ao sentar-se em cima do processo e assim
– de forma autoritária e desrespeitosa (e também covarde, porque deixa sem ação
o pensamento oponente) – impedir a conclusão do julgamento quando a decisão era
conhecida, ou seja, mais precisamente impedir a proclamação do resultado, o
ministro inefável conspirava contra os esforços do TSE e do próprio STF de
zelar pela ética na política, pois, reconheça-se, os dois tribunais superiores
de há muito tentam – e vêm tentando mesmo o Legislativo – senão impedir, pelo
menos reduzir a perniciosa participação do poder econômico no processo
eleitoral, fonte de grande parte das misérias que hoje atacam a combalida
democracia representativa brasileira.
Explica-se a manobra simples e rasteira
do ministro. Com o pedido de vista, o líder oposicionista: 1) deixava a matéria
indefinidamente ‘sub judice’ e 2), dava tempo ao baixo clero do Congresso para
tentar aprovar emenda à Constituição (defendida ainda agora pelo conhecido
deputado Eduardo Cunha) de sorte a amparar o império do poder econômico sobre o
processo eleitoral brasileiro.
Tudo isso, deixando o país e sua
dignidade sem recurso.
‘Pedir vistas’ significa sustar o
julgamento para que o juiz ainda sem convicção firmada sobre o feito disponha
de mais tempo, um tempo razoável não definido em norma específica, para estudar
a causa e pronunciar seu voto. Não se condena esse instrumento. Ocorre que, sem
qualquer limite de tempo, a medida pode transformar-se em instrumento de
prevaricação (não se diz que seja o caso vertente), como tem ocorrido, aliás e
consabidamente, com a concessão abusiva de liminares nos juízos de primeira
instância.
Separemos as duas hipóteses. Uma é
aquela da tese, a eventualidade de um juiz pedir vistas de um processo em
apreciação para assim melhor poder conhecê-lo e assim melhor decidir. Outra é a
alternativa de que tratamos, ou seja, quando o pedido de vista tem escandaloso
propósito protelatório (quando o processo deve perseguir a celeridade), e
quando o pronunciamento do Tribunal (isto é, a decisão da causa) já é
conhecido, sem possibilidade de reversão, no momento do pedido.
Perguntar-se-á, pergunta a OAB, pergunta
a sociedade, por quanto tempo pode o juiz sentar-se sobre a causa, amparado no
instituto do pedido de vista, impedindo um julgamento? E qual a justificativa
jurídica e ética para um pedido de vista em julgamento já definido, o caso de
que tratamos, quando era e é evidente que o móvel é simplesmente impedir que o
direito se realize? Em benefício de quem? Da Justiça não pode ser.
De fato, o tempo do inefável ministro no
julgamento dessa ação era o necessário para que o presidente da Câmara dos
Deputados, de quem o ministro se fez aliado fático, manobrasse, com o
autoritarismo peculiar e o recurso a chicanas regimentais, para, numa reforma
política que não passa de uma contrarreforma, aprovar o financiamento
empresarial de campanha, de candidatos e de partidos. A saber, o financiamento
corruptor de legisladores e governantes, fonte de escândalos políticos que
transitaram das páginas nobres dos jornais para a seção policial.
Só assim e só então, ou seja, depois de
vencida a matéria na Câmara dos Deputados, com a aprovação, no dia 9 de
setembro, do Projeto de Lei legalizador da corrupção (PL nº 5.735-F), é que o
inefável ministro, no dia seguinte, anunciou seu voto vencido, liberando o
pleno do STF para concluir a votação interrompida desde 2 de abril de 2014,
como vimos.
O dispositivo aguarda o veto
presidencial.
Na sessão do STF do dia 17, o ministro
Mendes leva ao Tribunal o seu voto conhecido e antecipadamente vencido,
prolatado, porém, mediante exaustivo discurso de cinco horas, algaravia que pôs
em xeque a paciência civilizada de seus ouvintes compulsórios.
Tratava-se, como de hábito, de voto sem
substância, cheio de remoques, pleno de recalques, idiossincrasias e
partidarismo primário. E assim, e só assim, passados um ano e cinco meses, a
Suprema Corte pôde retomar o julgamento intempestiva e injustificadamente
interrompido, para, como esperado, decretar (8 votos a 3) a inconstitucionalidade
do financiamento de campanhas eleitorais por empresas.
Mas o ministro, boquirroto e sempre em
palanque, depois de ofender a Justiça com seus 565 dias sentado em cima de um
julgamento de alto interesse político para o país e seu futuro, ofende a
inteligência de quantos tiveram de ouvi-lo, ao afirmar em alto e bom som, com
direito aos bordões de praxe – e, acredite o leitor, sem corar ou tremer a voz
– que a proibição do imoral financiamento empresarial das campanhas eleitorais
era tão-só uma tentativa do PT de sufocar a oposição, oposição que, acrescento,
no Supremo, está, pelo ministro Mendes, muito melhor representada do que no
Senado por Aécio Neves.
E ainda mais, diz o ministro em seu
lamentável comício que o Conselho Federal da Ordem os Advogados do Brasil – a
quem tanto deve a democracia brasileira – entrava na história pura e
simplesmente como serviçal de manobra do PT. O voto está gravado e pode ser
lido e ouvido, e ficará guardado nos Anais do STF.
O que dirão STF de hoje os leitores do
futuro!
Eis como o ministro Mendes ofende o
direito, a Constituição Federal e a OAB, no resumo trazido pela FSP, edição
desse dia 17 de setembro:
“Segundo Mendes, o PT manobrou a OAB
(Ordem dos Advogados do Brasil), autora da ação que questiona a legalidade das
doações privadas, interessado em impedir a alternância de poder no país. Com
fortes ataques ao PT, o ministro sugeriu que o partido é contra as doações de
empresas porque foi mentor do esquema de corrupção da Petrobras, beneficiando-se
dos desvios na estatal e, com isso, teria dinheiro para financiar campanhas até
2038”.
Em qual país do mundo essa diatribe pode
ser aceita como argumento constitucional, e é admissível na boca de um ministro
de sua mais alta Corte? Isso é tudo menos raciocínio jurídico, e ainda menos
linguajar digno de um Tribunal superior.
Pronunciado sob a proteção da toga mal
vestida é – verdadeiro discurso de ponta de rua – absurdamente incompatível com
o decoro que a sociedade deve esperar de um ministro do Supremo. De fato, o
ministro não está votando, pois seu discurso procura outras plagas, na
tentativa de oferecer-se como alternativa eleitoral à direita em 2018. Com a
proteção da toga que lhe queima as costas faz do STF seu o palanque politico.
O fato de um partido qualquer ser contra
as doações privadas não desqualifica esse combate, nem muito menos pode ser
apresentado como argumentação jurídica justificadora da manutenção dessas
doações. Ademais, sabe o ministro que o fim das doações privadas é reivindicação
que envolve vários partidos e a sociedade civil, incluídas a OAB e a CNBB, e
envolve mesmo o Poder Judiciário, de que é eloquente testemunho a própria
votação da ADI.
O Judiciário precisa cuidar-se. Não deve
permitir que à sua inércia judicante – que tantos e irrecuperáveis danos causa
diariamente ao país e ao nosso povo – se some procedimento desse jaez, que nada
fica a dever à elegância parlamentar da Câmara Municipal de Duque de Caxias.
Posta de lado qualquer apreciação ética
relativamente ao comportamento do inefável Mendes, é de serra acima que a
sociedade, via STF, não disponha de condições de evitar manipulação processual
tão condenável.
No caso, tratava-se de pleito acerca de
questão eminentemente política, e, por isso mesmo, aparentemente livre de
qualquer suspeita de envolvimento econômico. Mas, em outras hipóteses, e são
quase todas, envolvendo interesses patrimoniais, poderia o STF aguardar por
mais de um ano – sem razão de mérito – por mera manobra processual a que podem
recorrer as partes por seus advogados, a protelação de um julgamento de
desfecho já conhecido, com o objetivo puro e simples de evitar a eficácia da
sentença inevitável?
Esta, a questão: se o resultado fosse uma
condenação pecuniária de que resultasse um pagamento de importância vultosa,
quanto teria lucrado a parte vencida, beneficiada por quase dois anos sem o
peso da condenação certa mas adiada?
Lamentavelmente, a grave crise política
em que estamos envolvidos, de par com a crise de legitimidade do Legislativo,
uma agravante no quadro geral, impede uma discussão séria sobre a reforma do
Estado, e nela, do Poder Judiciário, e nele do Supremo, que não pode permanecer
como poder monárquico, protegidos seus ministro pelo privilégio
antirrepublicano da vitaliciedade, sujeitos seus membros a processos de
responsabilidade. O Poder Judiciário, em todas as suas instâncias, precisa,
como os demais poderes, de ser objeto de fiscalização externa, ofício que não
pode ser exercido por órgão corporativo.
Evandro Lins e Silva, advogado de um
tempo em que se exigia dos ministros dos tribunais superiores mais do que se
cobra hoje, em termos de formação jurídica, postura política e decoro,
profligava – ele que fôra ministro dos mais eminentes –, o que chamava de
‘promiscuidade de Brasília’, o trânsito fácil entre partes e julgadores, o
convívio nos jantares da capital, retirando do juiz aquele distanciamento que
emprestava ainda mais dignidade ao ofício excelso.
Aos jovens estudantes e jovens
advogados, e aos futuros juízes, é preciso dizer que nem sempre foi como é
hoje. No Supremo já fulguraram as mais altas expressões do direito brasileiro e
figuras moralmente ilibadas – no passado recente lembremos, além de Evandro,
Nelson Hungria, Orozimbo Nonato e Vitor Nunes Leal – e lá já se destacou a
bravura de estadistas como Adauto Lúcio Cardoso, Ribeiro da Costa e Gonçalves
de Oliveira.
Esses nomes, desconhecidos hoje dos
jovens advogados, precisam ser lembrados, mas de per si, longe de comparações
contemporâneas, para que não se apequene ainda mais a nossa mais alta Corte.
Créditos da foto: Antonio Cruz / Agência
Brasil
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