Em entrevista, sociólogo Jessé Souza diz que país terá
que escolher entre continuar incluindo os mais pobres ou voltar a ser “uma
sociedade dos 20%”.
Por Bruno Pavan, de São Paulo (SP)
Desde o início de 2015, o professor da
Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) Jessé Souza é o responsável pelo
comando do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Subordinado ao
Ministérios dos Assuntos Estratégicos, o instituto teve participação essencial
nos últimos anos para entender a ascensão dos milhões de brasileiros ao mercado
de consumo.
Em vista do novo cenário econômico,
político e social brasileiro, Souza aponta que o país corre o risco de perder
as conquistas sociais dos últimos anos e vê a realidade de 2015 muito parecida
com a do pré-golpe em 1964. “Antes do golpe o país tinha que escolher dois
caminhos: se ele seria uma sociedade de massas mais inclusiva, ou uma sociedade
pra 20% - e a escolha feita com o golpe foi a escolha por essa minoria. A
sociedade deve perceber o que ela tem a perder e o preço que isso envolve”,
explicou.
Jessé participou na última quarta-feira
(16) de uma palestra na Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo
(FESPSP) na qual criticou a linha de pensamento de nomes da sociologia
brasileira como Gilberto Freyre, Sergio Buarque de Holanda e Fernando Henrique
Cardoso.
“A concepção dominante do Brasil moderno
é pobre, superficial e conservadora. Isso começa com uma releitura de Sergio
Buarque do mito nacional de Gilberto Freyre, isso é extremamente problemático
porque vem do fato de pensar que o Brasil vem de Portugal. Hoje, essas obras
servem a um liberalismo extremamente mesquinho que virou prática institucional
e nos torna inferiores, por definição, aos europeus, já que o brasileiro passou
a se ver como 'emoção' e não 'razão'”, criticou Souza que lançará o livro “A
tolice da inteligência brasileira”, que visa analisar esses pensadores.
Nessa entrevista ao Brasil de Fato,
Jessé critica a corrente que acredita que há uma nova classe média no Brasil.
Para ele, os milhões que ascenderam à classe c devem ser considerados uma
“classe trabalhadora precarizada”. “Ela ascende ao mercado competitivo de
trabalho, mas sob condições precárias. De classe média ela não tem nada”,
disse.
Confira a entrevista na íntegra:
Brasil de Fato - No último período houve
a discussão sobre a distinção teórtica entre nova classe trabalhadora e a nova
classe média. O que as difere?
Jessé Souza - Isso não é só uma questão
de terminologia, mas tem a ver com a narrativa de um processo e é extremamente
importante porque implica a construção de um horizonte e a percepção do seu
lugar na sociedade. Essa foi a transformação mais importante do Brasil nos
últimos 50 anos e teve muito a ver com os programas sociais dos governos
petistas e políticas como o aumento do salário mínimo, o Bolsa Família o
crédito mais fácil e uma série de outras. O que houve efetivamente e o que nós
vemos na nossa pesquisa foi uma ascenção do que poderíamos chamar de
subproletariado, e que nós chamamos provocativamente de ralé.
Essa classe ascendente não pode ser
considerada classe média, porque a classe média é uma classe de privilégios
desde o nascimento, porque ela “compra” o tempo livre dos filhos para o estudo
e os habilita para que eles possam acumular um capital cultural extremamente
sofisticado, sejam nas áreas técnicas como economia, direito e engenharia; como
também nas literárias como o jornalismo e a publicidade. Todas as funções
importantes do mercado exigem conhecimento, tanto quanto exigem dinheiro, só o
capital econômico não movimenta nada, tem que ter o conhecimento nisso tudo.
Por conta disso essa nova classe é muito
mais uma classe trabalhadora precarizada, que ascende ao mercado competitivo de
trabalho, mas sob condições precárias. De classe média ela não tem nada.
Como é a inserção dessa classe
trabalhadora nas organizações de classes tradicionais? Ela se vê dentro dessas
delas?
Tendo a achar que não, mas no Brasil a
gente estuda muito pouco e quer apontar tudo no achismo, ou então a partir de
dados quantitativos como renda e que no fundo não explica coisa nenhuma. Já
estamos preparando uma pesquisa onde isso vai aparecer, mas o que a gente pôde
ver com relação a essa questão é que essa classe não tem essa filiação das
organizações da classe trabalhadora tradicional. Tem muito mais relação com a
igreja e com a internet, nas cidades maiores, do que com as organizações
tradicionais.
Você critica o discurso da corrupção
como o principal mal do país. O que de mais profundo o país precisa debater? A
quem serve esse discurso demonizador?
O que precisa ser posto como claro desde
o começo é que a transparência dos negócios públicos é uma virtude republicana
fundamental e é extremamente importante que haja a investigação sobre isso.
Dito isso, a gente tem que ver a que a corrupção é muitas vezes usada como
manipulação política de forma seletiva e quase sempre transforma interesses
extremamente privados em aparentemente públicos. A corrupção se presta a isso
porque ela dá e implica uma possibilidade de angariar apoio contra algo que é
visto como um bem comum e que interessa a todos. Todos tem interesse no
controle do estado. Mas o tema da corrupção é extremamente mal posto.
No fundo isso tem uma ideologia liberal
que vê tudo o que acontece no mercado como virtude e o que acontece no estado
como corrupção e ineficiência. Isso também tem a ver com com a luta entre as
classes e como ela é sempre inviabilizada, tem existir uma semântica onde ela
se expressa de um modo distorcido. Tanto no Brasil como em vários países isso
adquire a forma de demonização do estado e a divinização do mercado. Por que
isso acontece? Porque para as classes populares que não só não compreendem os
mecanismos de mercado, como também não tem força pra se opor a eles, o estado é
o única entidade com força suficiente pra eventualmente se contrapor a esses
mecanismos, enfraquecer o estado é enfraquecer o único meio de proteção das
classes populares. Pra 70% da população brasileira o estado é a única ajuda,
essa luta de classes é mantida e é feita sobre essa forma, ou seja, esse
linguajar da corrupção simplifica toda a complexa situação da política e da
economia da sociedade em um vetor só e usa esse discurso manipulando as suas
próprias vítimas.
Hoje, nós vemos inúmeros valores
burgueses como a meritocracia tomando conta do setor mais pobre da sociedade.
Como fazer esse embate de ideias?
O Brasil hoje está em uma encruzilhada
histórica extremamente importante, assim como ele esteve em 1964. Antes do
golpe o país tinha que escolher dois caminhos: se ele seria uma sociedade de
massas mais inclusiva, ou uma sociedade pra 20% e a escolha feita com o golpe
foi a escolha por essa minoria. A sociedade deve perceber o que ela tem a
perder e o preço que isso envolve. Os governos petistas conseguiram de algum
modo estimular uma ascenção social histórica no Brasil coisa que não havia
acontecido antes, obviamente teve um contexto favorável a isso, mas essas
condições já haviam acontecido e nada foi feito porque não havia vontade
política. A nossa encruzilhada histórica é: ou a gente volta pra uma sociedade
de 20%, e o risco disso acontecer existe, ou aprofunda essa inclusão. Falta uma
narrativa pra isso que mostre que esses avanços são graduais e gerar uma maior
conscientização disso. Eu acho que ainda espaço há pra que se crie essa
alternativa, há uma luta ainda em aberto e que não está decidida e há modos de
produção de uma narrativa que ofereça novas alternativas de convencimento.
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