Para enfrentar crise brasileira, deve-se
enxergar dois enormes movimentos globais: uma mudança geopolítica profunda e o
declínio simuntâneo dos projetos desenvolvimentista e liberal
Por José Luís Fiori / http://outraspalavras.net/
“Partamos nesse instante para uma
ofensiva e não fiquemos na defensiva
porque a defensiva será a vitória
de fato dessas forças reacionárias
que hoje investem contra o povo
brasileiro”.
José
Serra, em pronunciamento ao vivo na Rádio Nacional,
na
madrugada de 1º de abril de 1964,
Apesar de sua aparente instabilidade, a
história política da América do Sul apresenta uma surpreendente regularidade,
ou “sincronia pendular”. Alguns atribuem ao acaso; outros, à conspiração
política; e a grande maioria, aos ciclos e às crises econômicas. Mas na
prática, tudo sempre começa em algum ponto do continente e depois se alastra
com a velocidade de um rastilho de pólvora, provocando rupturas e mudanças
similares nos seus principais países. Esta convergência já começou na hora da
independência e das guerras de unificação dos estados sul-americanos, mas
assumiu uma forma cada vez mais nítida e “pendular”, durante o século XX.
Foi assim que na década de 1930, se
repetiram e multiplicaram por todo o continente, as crises e as rupturas de
viés autoritário. Da mesma forma que na década de 40, quase todo o continente
optou simultaneamente pelo sistema democrático que durou até os anos 60 e 70,
quando uma sequencia de crises e golpes militares instalou os regimes
ditatoriais que duraram até os anos 80, quando a América do Sul voltou a se
redemocratizar. Mas agora de novo, na segunda década do século, multiplicam-se
os sintomas de uma nova ruptura ou inflexão antidemocrática — a exemplo do
Paraguai — com o afastamento parlamentar e/ou judicial do presidente eleito
democraticamente.
Neste momento, até o mais desatento
observador já percebeu esta repetição, em vários países do continente, dos
mesmos atores, da mesma retórica e das mesmas táticas e procedimentos. Sendo
que no caso brasileiro, estes mesmos sinais se somam a um processo de
decomposição acelerada do sistema político, com a desintegração dos seus
partidos e seus ideários, que vão sendo substituídos por verdadeiros “bandos”
raivosos e vingativos, liderados por pesonagens quase todos extremamente
medíocres, ignorantes e corruptos que se mantêm unidos pelo único objetivo
comum de destroçar ou derrubar um governo frágil e acovardado.
Mas a história não precisa se repetir.
Mais do que isto, é possível e necessário resistir e lutar para reverter esta
situação, começando por entender que esta crise imediata existe de fato. Mas ao
mesmo tempo ela esconde um impasse estratégico de maior proporção e gravidade,
que o país está enfrentando e não aparece na retórica da oposição — nem
tampouco na do governo. Neste exato momento, o mundo está atravessando uma
transformação geopolítica e geoeconômica gigantesca, e seus desdobramentos
determinarão os caminhos e as oportunidades do século XXI. E ao mesmo tempo a
sociedade brasileira está sentindo e vivendo o esgotamento completo dos seus
dois grandes projetos tradicionais: o liberal e o desenvolvimentista. Por isto
mesmo, soam tão velhas, vazias e inócuas as declarações propositivas do
governo, tanto quanto as da oposição mais ilustrada.
O mundo bipolar da Guerra Fria acabou há
muito tempo, mas também já acabou o projeto multipolar que se desenhara como
possibilidade, no início do século XXI. Esta mudança já vem ocorrendo há algum
tempo, mas ficou plenamente caracterizada na reunião do BRICS, na cidade de
Ufa, na Rússia, em julho de 2015, e,
logo em seguida, da Organização de Cooperação de Shangai (que já conta com
adesão — como observadores — da Índia, Irã, e Mongólia) configurando uma nova
bipolaridade global entre regiões e civilizações, e não entre países de uma
mesma cultura europeia e ocidental. É neste contexto que se deve situar e
entender a crescente colaboração militar entre a Rússia e a China, a nova
“guerra fria” da Ucrânia, a reaproximação dos EUA com Cuba e Irã e vários
outros movimentos em pleno curso neste momento, ao redor do mundo.
Da mesma forma que se deve entender a
extensão do impacto mundial da crise da Bolsa de Shangai, e sua sinalização de
que está em curso uma mudança da estratégia nacional e internacional da China,
envolvendo também sua decisão de entrar na disputa – de longo prazo – pela
supremacia monetário-financeira global. A mesma pretensão e disputa que já
derrubou vários outros candidatos, nestes últimos três séculos. Mas seja qual
for o resultado desta disputa, a verdade é que o mundo está transitando para um
patamar inteiramente novo e desconhecido, e o Brasil precisa se repensar no
caminho deste futuro.
Neste contexto, atribuir apenas ao Fisco
a causa ou a solução do impasse brasileiro é quase ridículo, e tão absurdo
quanto restringir a discussão sobre o futuro do Brasil a um debate
macroeconômico, ou sobre uma agenda remendada às pressas contento velhas reivindicações
libero-empresariais, dispersas e desconectadas. O Brasil está vivendo um
momento e uma oportunidade única de se “reinventar”, redefinindo e repactuando
seus grandes objetivos e a própria estratégia de construção do seu futuro e de
sua inserção internacional, com os olhos postos no século XXI.
Mesmo assim, nesta hora de extrema
violência e irracionalidade, se o Brasil conseguir vencer e superar
democraticamente a crise imediata, já terá dado um grande passo à frente, rumo
a um futuro que seja pelo menos democrático. Mas atenção, porque este passo não
será dado se o governo e suas forças de sustentação não passarem à ofensiva,
começando pela explicitação dos seus novos objetivos, e de sua nova estratégia,
uma vez que seu programa de campanha caducou. Hoje, como no passado, a simples
defensiva “será a vitória de fato das forças reacionárias que hoje investem
contra o povo brasileiro”.
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