Nem Lula-2018, nem novo partido. Para líder do MTST, reconstrução exige trocar palácios pelas ruas, formular novo projeto de país e retomar “trabalho de base”
Entrevista à Redação de Outras Palavras | Imagem: Gabriela Leite / http://outraspalavras.net/
Numa época árida, em que a esquerda brasileira parece incapaz de produzir inovações políticas ou mesmo de se livrar das contradições em que atolou, o MTST – Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto – tem despontado como uma fonte singela, mas promissora, de boas surpresas. Há dois anos, a organização voltou a mostrar que é possível mobilizar a sociedade – em especial, os mais pobres – em favor de mudanças estruturais. Três enormes ocupações de terrenosociosos em São Paulo reacenderam as chamas da Reforma Urbana e de metrópoles para todos.
Pouco depois, os sem-teto assumiriam – em manifestações de rua sempre capazes de reunir milhares ou dezenas de milhares de pessoas – o protesto contra deformação dos “megaeventos esportivos”, convertidos em novo motor da especulação imobiliária. Arrancariamda Câmara Municipal paulistana o reconhecimento do Direito à Moradia, na formulação do novo Plano Diretor do município. Desenvolveriam uma crítica refinada ao “Minha Casa, Minha Vida”, propondo livrá-lo do controle das granes empreiteiras. Demonstrariam na prática que isso é possível, ao aproveitar uma brecha do projeto para erguer, autonomamente, um conjunto de prédios de apartamentos dignos, equipados com serviços públicos avançados e relativamente confortáveis. Jogariam, mais recentemente, um papel destacado na luta contra a agenda de retrocessos sociais e políticos impulsionada pelos conservadores.
Mas até que ponto o MTST tem condições de ir além das lutas específicas por moradia e se converter num ator político universal – ou seja, capaz de inspirar e estabelecer diálogos com o conjunto da sociedade? Para tentar encontrar a resposta, a redação de Outras Palavras conversou por várias horas com Guilherme Boulos, o coordenador dos sem-teto com mais visibilidade pública. O encontro foi o primeiro de uma série que busca sondar caminhos para algo que nos parece cada vez mais crucial: construir um novo projeto de país, que supere os tímidos avanços dos últimos 13 anos, agora bloqueados pela acomodação e pela recusa a enfrentar o ranger de dentes das elites.
O resultado foi uma vasta entrevista, que começamos a publicar abaixo, em quatro capítulos provocadores. Neles, Boulos expõe sua visão particular sobre a conjuntura brasileira. Sua ideia de que o período de conciliações se encerrou. Sua crítica a uma esquerda que se institucionalizou a ponto de associar mudanças na correlação de forças na sociedade à mera conquista de prefeituras, governos de estado ou bancadas parlamentares. Sua aposta num programa de “reformas de base” semelhante ao que eletrizou o país no pré-1964, mas ausente na fase de “mudanças fracas” que marcou os governos a partir de Lula. Sua noção de que, para não sucumbir, o que chamamos de “lulismo” precisaria reinventar-se, ingressando numa fase muito distinta da que assumiu até agora.
Mas o coordenador do MTST vai além. Ao propor que a chamada “esquerda” supere o que foi em sua primeira fase no governo do Brasil, ele não se limita a formulações genéricas. Assume polêmicas. Contesta, por exemplo, duas das visões que mais povoam as esperanças de quem se esforça por enfrentar a ofensiva conservadora.
Para Boulos, não é hora de fundar um novo partido – seria criação a frio, porque ainda falta a mobilização social que permitiu, na Espanha, a emergência de um Podemos. Com a mesma convicção, recusa-se a engrossar o coro dos que creem num sebastianismo brasileiro, num “Lula 2018”, enxergando como grande esperança a reentronização do presidente que supostamente encarna os sonhos perdidos. Seria requentar um café fraco, parece pensar Boulos.
Nas duas partes finais da entrevista, surge o que alguns julgarão mais instigante. Aparece o Boulos que analisa, além do cenário político, a formação social do país e as teorias que podem alimentar sua mudança. Nestas seções, o coordenador do MTST sugere, por exemplo, que é necessário promover um encontro entre o feminismo clássico – abraçado, no Brasil, principalmente pelas classes médias – e as mulheres lutadoras de periferia, que conquistaram menos até o momento, mas desafiam e rechaçam, no coditiano, as leis de ferro de um país muito machista. Ele também revela como bebeu tanto no marxismo quanto na psicanálise, e por que acredita que Marx e Freud encontram-se em certas esquinas – por exemplo, nas conexões entre as teorias da alienação e o papel limitado da consciência e do discurso, na constituição psíquica do ser humano.
Voltado, há cinco anos, a grandes temas da globalização e das alternativas, Outras Palavras busca ligá-los cada vez mais, numa conjuntura difícil, aos desafios brasileiros contemporâneos. A entrevista com Boulos é parte destacada deste esforço. Fique com ela, a seguir. (A.M.)
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